quarta-feira, agosto 24, 2005

37 - Sentidos lugares II – algumas notas gerais sobre a integração - Infohabitar 37

 - Infohabitar 37

Sentidos lugares II – algumas notas gerais sobre a integração

Artigo de António Baptista Coelho

Noutros textos desta série intitulada “sentidos lugares” irá falar-se da altura dos edifícios na cidade, e, novamente, das árvores na cidade e, naturalmente, de outros importantes elementos criadores do espaço urbano e da sua paisagem, tal como a escala, a continuidade, a equilibrada diversidade de imagens e as múltiplas e vitais facetas da integração.

Salienta-se, também, que estas matérias ligadas aos sentidos dos lugares têm uma dupla importância seja na qualidade habitacional e de vivência de que revestem os diversos sítios urbanos, seja na própria qualidade urbana e cultural desses sítios.

Aqui neste texto vão ser apontadas apenas algumas notas gerais e informalmente preliminares sobre uma dessas facetas; a integração. E sublinha-se, desde já, que a integração, é, provavelmente, um dos principais elementos responsáveis por uma continuada e sempre provada geração de lugares verdadeiramente sentidos e positivamente, caracterizados e caracterizadores.
Regista-se a perspectiva geral e informal desta abordagem, mas desde já se defende que a ausência de cuidados sistemáticos de integração urbana e paisagística é um dos principais males de que padece a sociedade portuguesa actual e desde há várias décadas.

“Há certas qualidades que podem ser consideradas essenciais em todos os géneros de casas: sossego, encantamento, simplicidade, largueza de vistas, vivacidade/seriedade, abrigo na tempestade, economia na manutenção, protecção evidenciada, harmonia com a vizinhança/integração, ausência de lugares escuros, uniformidade de temperatura, fazer da casa o quadro dos seus habitantes. Ricos e pobres, uns e outros, apreciarão estas qualidades” - C. F. A. Voysey, “The English Home”, 1911.

Nesta frase está bem clara a importância da integração no conjunto das qualidades arquitectónicas habitacionais; como se pode constatar apenas a harmonia com a vizinhança – uma outra forma de se dizer integração - se refere a uma qualidade totalmente exterior e, de certa forma, pública.
Cada intervenção tem de ser um projecto e um acto construtivo de síntese da globalidade local, que considere a respectiva paisagem urbana e/ou natural nas suas múltiplas características e condicionantes e tem de se concretizar numa nova ou renovada situação urbana e natural marcada por consistentes, positivas e expressivas condições de integração.

Tão importante como o “objecto” construído em si próprio é a forma como ele dialoga com o local de implantação e a sua vizinhança, contribuindo para a sua caracterização, recheando-os de sentidos, suscitando emoções nas suas vivências e marcando, positivamente, o seu próprio lugar/função na cidade e na paisagem.

Pode-se considerar que é difícil avaliar a integração de uma dada solução num dado contexto. Naturalmente que é. No entanto, por um lado, a importância da integração é de tal ordem que todas estas dificuldades têm de ser ultrapassadas; não faz sentido que assim não suceda, a não a ser que se conceba poder-se aceitar, impunemente, a continuada e quase total destruição do nosso património urbano e natural. E, por outro lado, é interessante termos presente que, entre as várias qualidades arquitectónicas do habitar, umas mais funcionais outras mais de desenho, umas mais quantitativas outras mais qualitativas, a integração é provavelmente aquela que assegura uma maior capacidade de aplicação, capacidade esta a que não é estranha a sua faceta estratégica de apreensão pela própria opinião pública.

Não basta, nunca bastou e, hoje em dia, não é mais possível aceitar, de forma isolada e não fundamentada as tão frequentes palavras ligadas à integração, sempre presentes nas “memórias descritivas” dos projectos; um pouco como que numa “fórmula” para-regulamentar. É sim fundamental, hoje, em Portugal, no que resta, de consistente, das nossas zonas urbanas e das nossas paisagens rurais, e em todas as operações de requalificação - por razão ainda mais evidente -, fazer e refazer realmente integração urbana e natural, na prática, e de forma obrigatória.

E assim se defende que todas as barreiras burocráticas e outras que prejudiquem e compliquem uma rigorosa exigência de integração urbana e paisagística nas obras novas e nas acções de requalificação, devem ser metódica e totalmente anuladas.

Remata-se este pequeno texto, com carácter geral, sobre a importância, hoje crucial e urgente, da integração urbana e paisagística no território português no início do século xxi com duas referências simples:
A primeira, que se liga ao texto inicial desta série sobre os “sentidos lugares”, é relativa à enorme importância integradora que pode e deve ser assumida pelo verde urbano, nas suas mais diversas formas, mas sempre numa perspectiva arquitectónica unitária e amplamente coerente.

A segunda salienta o grande apuro arquitectónico, a extrema sensibilidade de análise e de leitura do conjunto de preexistências e a excelência de intervenção, que são fundamentais para se concretizar uma positiva integração urbana e paisagística. Dá vontade de dizer que, provavelmente muitos conseguirão fazer espaços interiores adequadamente regulamentares e mesmo agradáveis e atraentes, mas poucos serão capazes de atingir essa “harmonia com a vizinhança” de que fala Voysey.

E temos de perceber que não basta acreditar que essa harmonia possa vir a ser atingida, pois, de uma vez por todas, há que interiorizar que essa integração, essa harmonia com a vizinhança, capaz de gerar as tão essenciais vizinhanças harmoniosas, atraentes e culturalmente válidas, é um direito que nos assiste a todos nós habitantes e cidadãos e é, assim, um direito que exige processos expeditos para a sua garantia.
E no Portugal de hoje fica bem clara a falta que fazem esses processos, seja no que se faz de novo, seja em tudo aquilo que é vital recuperar, desde que o objectivo seja, como tem de ser, a criação e recriação de sentidos lugares.

“Eu não tenho uma cidade ideal. A minha cidade é uma cidade de cidades, uma colagem de lugares” - António Pinto Ribeiro, “abrigos: condições das cidades e energia das culturas”, p. 13. Lisboa. Edições Cotovia, 2004, 221 pp

Antes de concluir, duas notas finais e práticas são oportunas.

A primeira vem na sequência desta última citação e para as ideias da “cidade de cidades” e da “colagem de lugares”; é importante chamar a atenção para o livro onde se inserem e é muito importante poder ler estas ideias no seu contexto – fica a nota e a promessa de se voltar a outras ideias deste excelente livro.

A segunda refere-se à ilustração deste texto, que foi feita com imagens urbanas de três bairros de Lisboa com características arquitectónicas bem distintas – Bairro Alto (início do Sé. XVI), Alvalade (anos 40 do Séc. XX) e Encarnação/Olivais Norte (anos 60 do Séc. XX); é bom e curioso pensarmos no bem que nos fazem estas paisagens unas e tão bem qualificadas, tão diferentes de tanto “ruído” que por aí vai. Noutros textos haverá oportunidade de mostrar bons exemplos recentes de integração arquitectónica e urbana; dos maus todos estamos fartos.




Lisboa, Encarnação, 24 de Agosto de 2005
António Baptista Coelho

domingo, agosto 21, 2005

36 - Sentidos lugares I – algumas notas sobre o verde urbano - Infohabitar 36

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Sentidos lugares I – algumas notas sobre o verde urbano

Artigo de António Baptista Coelho

Entre continuar o estimulante comentário à temática dos lugares das casas e das cidades, que suscitou, de certa forma, um levantar de eventuais menores articulações entre baixa altura humanizada, verde urbano quase de “camuflagem” e outros problemas das nossas actuais cidades, com destaque para a sempre presente questão da verticalização, suas razões e seus limites; fica, por um lado, a vontade de continuar a aprofundar a questão da criação de lugares, mas não esquecendo a tão actual questão da altura do edificado e da sua caracterização e escala.

O verde urbano é uma ferramenta cuja importância em termos de caracterização e de humanização da paisagem urbana continua a ser descurada, ainda que, felizmente, exemplos históricos e alguns, poucos, novos exemplos demonstrem a potência arquitectónica real que pode ter uma árvore de arruamento, um alinhamento arbóreo e um muro ou uma fachada cobertos por uma trepadeira. Mas atenção, para se fazer isto bem, com respeito pela cultura que é a nossa e pelo sítio da cidade em que se actua, é necessário saber fazer arquitectura da edificação e da paisagem de uma forma simples mas realmente sabedora, sem apêndices inúteis e sem excessos de conteúdo, mas com uma pormenorização muito rica, mas depurada e cuidadosa.

Dá também vontade de dizer que, se o resultado for um ambiente global em que as árvores quase camuflam os edifícios, actuando como verdadeiro cenário de volume/espaço, ou, pelo contrário, se o resultado for um ambiente construído marcante onde qualquer presença natural seja um elemento protagonista, tudo bem, em qualquer dos casos, mas apenas se a globalidade da intervenção estiver bem desenvolvida e acabada, e tal não é fácil, sublinhe-se; mas afinal a boa arquitectura só provavelmente é fácil em aparência, antes de ser fácil para quem a vive na cidade, obrigou a um extenso e aprofundado cuidado de concepção.

Temos, assim, por exemplo, e felizmente, ruas urbanas que são verdadeiros jardins e em que a importância arquitectónica do todo se distribui muito equitativamente entre o edificado e a natureza humanizada; mas a ideia que parece prevalecer é que hoje em dia também se perdeu parte da sabedoria de se fazerem estes jardins/ruas. E vamos ligar este tema à questão da altura/escala do edificado: não dá ideia que este tipo de solução, tão humana, na escala/presença das árvores, se aplica preferencialmente em ruas com uma afirmada continuidade de edifícios bem pormenorizados, marcados pela horizontalidade e pela escala humana? Criando-se, de certa forma, um forte acompanhamento entre filas de árvores e filas de edifícios. Fica a ideia, que, naturalmente, merece desenvolvimentos.

Mas o protagonismo do arvoredo urbano, em grande aliança com o edificado, não fica por aqui, como se sabe. Não é por acaso que em importantes acções de requalificação de conjuntos habitacionais franceses “modernistas”, constituídos por edifícios altos (ex., até cerca de 15 pisos) e, em parte, isolados, se aplicaram extensas e pormenorizadas intervenções de arborização e naturalização, naturalmente aliadas a intervenções nos edifícios e na estrutura urbana. E basta pensar nas bases do próprio modernismo arquitectónico, com edifícios altos em grandes jardins com grandes árvores, para se perceber o sentido que tudo isto faz. Infelizmente, como sabemos, muitas vezes não se fizeram esses jardins, ou não se plantaram essas árvores, ou não se pensou na sua vital manutenção, ou até não se desenvolveram muitos dos elementos que fazem parte integrante de qualquer parte de cidade.

Sobre a altura dos edifícios na cidade falaremos noutros textos, em que também se falará, novamente das árvores na cidade e, afinal, do principal objectivo que têm todos estes elementos criadores do espaço urbano: a geração de lugares que possam ser sentidos pelos habitantes da cidade, e para isso é necessário investir no sentido dos lugares.

Provavelmente a identidade fortíssima que caracteriza cada elemento natural como único (presença marcante de uma natureza rica e sempre diferente e renovada) e, paralelamente, o agradável contraste entre esse elemento natural, ali humanizado, e a racionalidade da edificação citadina (fila de árvores, trepadeira sobre muro, vasos de plantas em janelas, etc.), produzem efeitos finais que muito contribuem para dar sentido e carácter aos lugares, ao mesmo tempo que se contribui para condições de estímulo e surpresa nos percursos e na paisagem urbana.

A tudo isto voltaremos e, para que não haja dúvidas, não se está aqui a fazer uma qualquer defesa “cega” do chamado “verde urbano”, mas sim apenas uma defesa forte de um urbanismo feito considerando, realmente, a natureza integrada na cidade, que assim se humaniza e caracteriza.

Realmente, não faz grande sentido falar do verde urbano de forma relativamente isolada. Há sim que falar da boa arquitectura urbana, globalmente e ao nível do pormenor, e nela encontraremos as facetas e os elementos do verde urbano, que, como acima se indicou, são valiosos factores de caracterização e de identidade dos lugares.

Seguem-se cinco imagens de diversas ruas e espaços arborizados do bairro de Telheiras (Telheiras Sul) em Lisboa. Como se poderá ver pretende-se, com estas imagens, ilustrar, com alguma informalidade, a linha de pensamento que se seguiu no texto, ficando em evidência a grande integração entre a edificação, o traçado viário e o verde urbano. As imagens foram recolhidas no início da Primavera (árvores ainda sem/ou com poucas folhas) quando de uma visita técnica do Grupo Habitar, que teve lugar há cerca de dois anos, e que foi orientada pelo nosso associado Arq. Duarte Nuno Simões; é desta visita a fotografia de grupo que também se junta.







O bairro de Telheiras Sul (63,5 hectares para 3.600 fogos) foi promovido pela EPUL e pela Câmara Municipal de Lisboa, entre 1976 e o início dos anos 80, com desenho urbano pormenorizado (projecto de 1973/74) de Pedro Vieira de Almeida e Augusto Pita.

Regista-se, ainda, que a última imagem se refere à rua residencial projectada por Duarte Nuno Simões e Maria João Cardoso, onde altos edifícios integram tipologias habitacionais diversificadas e com áreas limitadas e dialogam intensamente com um verde urbano muito expressivo, criando-se agradáveis condições de caracterização urbana e natural.


António Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação, 20 de Agosto de 2005

quarta-feira, agosto 10, 2005

35 - Entre o lugar da casa e os lugares da cidade - Infohabitar 35

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entre


O lugar da casa

Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.”

Eugénio de Andrade -
“O SAL DA LÍNGUA precedido de TRINTA POEMAS”, Associação Portuguesa de Escritores (APE), Bibliotex SL, Biblioteca Prestígio, Prémio Vida Literária, 2001, p. 40.
.
e os lugares da cidade
“Mesmo reconstruída e apetrechada com todas aquelas árvores (na maioria plátanos e castanheiros), bancos e quiosques idênticos, Paris ainda exerce sobre a pessoa que saiu para perambular a tentação de andar só mais cem metros, e depois mais outros cem. Embora o metro seja o mais rápido, eficiente e silencioso do mundo, com estações que nunca ficam a mais de cinco minutos a pé de qualquer destino, o visitante vê-se sob o encanto do campanário elevando-se sobre o casario que vem logo abaixo, e da lojinha de brinquedos da próxima esquina, e da série de portas de antiquários, e daquela pracinha ensombrada.”

Edmund White
– “O Flâneur – Um passeio pelos Paradoxos de Paris. São Paulo, Companhia das Letras, Colecção “O Escritor e a Cidade”, 2001. O excerto foi retirado do artigo de Andréia Azevedo Soares, intitulado “O Flâneur – Um passeio pelos Paradoxos de Paris – Passear por uma Paris menos óbvia”, saído no suplemento “Fugas” do jornal “ Público” de 2002/09/28. Este mesmo livro foi, entretanto, editado entre nós pela editora ASA na Colecção “O Escritor e a Cidade.”


Imagem: bairro de Campo de Ourique, Lisboa
A ideia destas citações e excertos de textos é, naturalmente, proporcionar, a cada um, mais algumas reflexões, mais ou menos cruzadas, sobre matérias com características distintas mas com uma expressiva plataforma comum de conteúdos; e sendo assim não fará grande sentido juntar aqui muitas palavras, até porque as palavras acima falam realmente por si próprias pelos múltiplos e ricos sentidos e ligações que proporcionam.
Para mais tarde e para outras oportunidades ficam muitas ideias despertadas por essas palavras, mas, desde já se regista que é fortíssima a ligação entre a casa/o habitar, a natureza e o carácter do lugar e que é igualmente forte a ligação entre uma cidade habitada e os múltiplos lugares e cenários vivos que a constituem ou devem constituir.
De fora ficam, sem dúvida, aquelas casas que não existem em lugares humanizados e naturalizados, e aquelas cidades e partes de cidade que não são feitas de sítios e cenários vivos e estimulantes.

“Uma casa ... que nem casa fosse ...” e o flanar por Paris são apenas motivos, embora excelentes motivos para falar de muitas casas e de muitas cidades.

Lisboa e Encarnação, 10 de Agosto de 2005
António Baptista Coelho

terça-feira, agosto 02, 2005

34 - O Preconceito na apreensão da Cultura da Cidade e do Território - um artigo de Maria João Eloy - Infohabitar 34

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Breves notas de apresentação
O nosso Infohabitar, uma revista/blog que é de todos os que a fazem e lêem tem, mais uma vez, o grato prazer de apresentar uma nossa nova colaboradora, a Arq.ª Maria João Eloy, através da edição do seu artigo intitulado “O Preconceito na apreensão da Cultura da Cidade e do Território e da Paisagem Urbana”, cujo interesse ficará bem claro logo numa primeira leitura.


Maria João Eloy é Arquitecta e Mestre em Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa (FA/UTL) e não sendo aqui o lugar de fazer a sua apresentação, refere-se, no entanto e de forma telegráfica, que desenvolveu uma carreira diversificada entre o sector privado e o sector público, nomeadamente no FFH, no GAS, na SCML e na DGOTDU, registando-se, ainda, as actividades como profissional liberal e no domínio da pintura.

Finalmente, salienta-se que o texto que se segue constitui a adaptação de um excerto da Dissertação de Mestrado desenvolvida por Maria João Eloy na FA/UTL em 1998 e intitulada "O Preconceito no Conteúdo da Cidade."
A.B.Coelho, Encarnação, 3 de Agosto de 2005

O Preconceito na apreensão da Cultura da Cidade e do Território

Maria João Eloy



1. Pretende-se, com este texto, contribuir para o entendimento das implicações que têm as renovadas gerações de preconceitos para a apreensão da cultura da cidade e do território e da paisagem urbana;

2. Os pre-conceitos ou pressupostos, assumidos como regularidades e crenças e traduzidos em atitudes, aparecem como instrumentos para lidar com a realidade e interferem na gestão dos conhecimentos que fundamentam todo o tipo de intervenções na cidade, ou no espaço urbano;

3. Isto significa que as intervenções de todos os que fazem o espaço urbano, estão inseridas numa situação hermenêutica que consiste em possuir um conjunto de preconceitos que permitem leituras interpretativas, ao desenvolver antecipações de sentido projectadas pela compreensão prévia (Gadamer)1. Compreensão prévia que pertence ao campo da investigação das tendências dominantes julgadas suficientemente significativas;

4. Situação que acontece, tanto aos profissionais e agentes políticos que concebem, desenham e gerem o território e o espaço urbano, como aos habitantes e turistas que os povoam. Que acontece, quer aos cidadãos e funcionários municipais que o protegem, quer aos terroristas que o destroem;

5. Parece-nos fundamental que, na actualidade, a gestão dos conhecimentos que fundamentam todo o tipo de intervenções no espaço urbano, não dissocie os elementos de um discurso da regularidade e da reprodução, dos elementos do discurso da descontinuidade e da rotura (Decouflé)2;

6. Através de imagens, procuraremos mostrar as crenças e os preconceitos, traduzidos em regras de jogo, que são utilizadas, tanto no discurso da regularidade e da reprodução, como no discurso da descontinuidade e da ruptura do urbanismo, na era da globalização;

7. Não poderemos definir essas regras, porque é um problema cuja resolução envolve uma intervenção colectiva e transdisciplinar e exige uma praxis pouco ensaiada em Portugal;

8. Pretendemos apenas suscitar indagações sobre os temas da civilização como cultura urbana e o das implicações do ordenamento do território na paisagem urbana. Estas indagações apoiar-se-ão em registos fotográficos que se pretende possam fornecer sugestões para comentários e debate;

9. Para falar da paisagem urbana, conceito que decorre dos nossos preconceitos em relação à cultura urbana e ao ordenamento do território, recorreremos a imagens fotográficas de diversos tipos de paisagem urbana;


10. Não questionaremos aqui a pertinência da utilização do termo paisagem para os registos da visão do fenómeno urbano como um contínuo uno e indissociável, porque, como afirma Ledrut 3, a cidade possui a sua própria metafísica e a sua particular poesia, não é só prosa e tecnicismo;


11. Admite-se, sim, que a metafísica e a poesia da cidade, assim como a assunção de crenças e de identidades, podem ser pressentidas de diversas formas e constituem, para cada observador, o seu mapa e a sua paisagem do espaço urbano;

12. Espaço urbano que, na actualidade, não é apreendido como um todo tridimensional e compacto, mas como uma rede de lugares múltiplos (Rémy e Voyé) 4, conectados entre si por sistemas de simulação, de programação e de informação, que se podem traduzir num desaparecimento de sentido que é a tonalidade fundamental desses sistemas funcionais;

13. Perguntar-se-á, então, que formas de identidade e de afeição poderão ocorrer nas civilizações das novas redes urbanas, se a melancolia é essa desafeição brutal resultado dos sistemas saturados que as povoam (Baudrillard) 5;

14. Bastará atender às imagens apresentadas para distinguir entre paisagens que traduzem um discurso urbano da regularidade e da reprodução e paisagens que traduzem um discurso da descontinuidade e da ruptura do urbanismo, resultantes de uma economia globalizada e de um universo cultural fragmentado, que fazem emergir conflitos marcados pela necessidade de uma defesa da identidade;

15. Se os primeiros exemplos, escolhidos em Portugal, Açores (Fig.1, Fig.2), em Luxemburgo (Fig. 3), na Dinamarca, Copenhaga (Fig. 4) e na área central de Nova Iorque (Fig.5, Fig.6), poderão obter unanimidade de aceitação, será improvável a mesma atitude nos segundos exemplos escolhidos também em Nova Iorque (Fig.7, Fig.8), em Caracas (Fig. 9) e em Grozny (Fig. 10), prevendo-se que nestes seja questionada, quer a legitimidade de um processo urbanístico dominado por uma racionalidade económica que instrumentaliza todas as outras mediações, com o fim de realizar os seus próprios interesses estratégicos, quer os incalculáveis danos a que foram sujeitadas as populações pela mediação da guerra;

16. No entanto, através dos exemplos seleccionados, pretende-se mostrar como cada núcleo urbano tem merecido uma atenção diferenciada dos agentes políticos, mesmo que tendencialmente se constate a padronização das cidades, motivada por uma globalização das redes que alimentam as identidades e solidariedades colectivas da vida urbana actual, as quais reflectem uma nova territorialidade, cada vez mais complexa e codificada;

17. Pretende-se ainda mostrar que, enquanto um espaço pode ser definido como uma forma da nossa relação com as coisas, forma pela qual identificamos um objecto ou o que representa a sua unidade para nós, uma espacialidade (Ledrut, 1968) entende-se como uma forma de espaço culturalmente construída, pela qual um sujeito apreende objectos em relação aos quais ele próprio se posiciona, razão pela qual uma espacialidade nos aparece como uma estrutura a priori em relação a um actor social;

18. Como referido no início deste texto, admitimos que a elucidação do conceito de paisagem urbana remete para os de cultura urbana e espacialidade, reclamando estes a exegese dos fenómenos urbanos e culturais e do que neles faz sobressair o filosófico e o histórico;

19. Esta exegese, só possível pelos preconceitos do intérprete sobre o fenómeno urbano, a filosofia e a história, implica, todavia, que esse preconceito, nas suas diversas formas, bloqueie constantemente a sociabilidade ou a erotização, provocadoras de comportamentos criativos, próprios da vida urbana;

20. Ao pretender demonstrar que o uso efectivo da cidadania, em todas as suas formas expressivas, traduz a gramática do urbanismo, reconhece-se a necessidade de uma aproximação ao urbanismo através de uma pragmática que investigue os graus de uma verdade instrumental; uma verdade que acontece a uma ideia que se torna verdadeira, ou melhor, que se faz verdade por meio dos acontecimentos.

Conclusão:
Convém reflectir na diversidade de intervenções de autores da actualidade no relato instantâneo dos acontecimentos, implícita em cada estremecimento quotidiano da civilização jornalística, que evidencia a destruição da experiência, onde os acontecimentos irrompem desprovidos de história e parecem não se converter em experiência ou ensinamento; esta a razão porque a predominância da descrição de paisagens em registo fotográfico, em planos desenhados e em relatos escritos é um reflexo da destruição da
experiência e da sua autoridade, na construção da sociedade moderna. Autoridade que remete para o ‘contacto’ efectivo de que fala Virilio e do qual, hoje, nos distanciamos inexoravelmente.


Fig. 1: Açores, S. Miguel, Ponta Delgada, Museu Carlos Machado - fot. MJE, 2005


Fig. 2: Açores, S. Miguel, Ponta Delgada, Praça Vasco da Gama - fot. MJE, 2005

Fig. 3: Luxemburgo, Place d’Armes - fot. MJE, 2005

Fig. 4: Copenhaga, New Harbor - fot.
MJE, 2004

Fig.5: Nova Iorque, “ Looking south on ParkAv from 93rd Street”,
NYSocial Diary, 05.2005, fot. JH

Fig.6: Nova Iorque
, “Wollman Rink in Central Park Toward Sunset, Manhattan

Fig.7: Nova Iorque
, “View of Manhattan skyline from the Jersey Turnpike”
2004/12_21_04/socialdiary12_21_04.php

Fig.8: Nova Iorque, “NY blackout, August 14, 2003”

Fig. 9:
Venezuela, bidonville em Caracas, 2005

Fig. 10: Exemplo da devastação da guerra em Grozny

Nota 1: Este artigo corresponde à adaptação e desenvolvimento de alguns capítulos da Dissertação intitulada “O Preconceito no Conteúdo da Cidade”, realizada por Maria João Eloy P. C. Rodrigues, para o Mestrado “Cultura Arquitectónica Contemporânea e Construção da Sociedade Moderna”, realizado de 1994 a 1996 na FA/UTL.

(1) Gadamer, Hans-Georg - Verité et Méthode (1969) – Seuil, 1996
(2) Decouflé (1972) - A Prospectiva, Bertrand, 1977
(3) Ledrut - Sociologia Urbana, 1968
(4) Rémy e Voyé (1992) - A cidade: Rumo a uma nova definição, Afrontamento, 1994
(5) Baudrillard, Simulacros e Simulações (1981) - Relógio D’água, 1996