quarta-feira, agosto 10, 2005

35 - Entre o lugar da casa e os lugares da cidade - Infohabitar 35

 - Infohabitar 35

entre


O lugar da casa

Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.”

Eugénio de Andrade -
“O SAL DA LÍNGUA precedido de TRINTA POEMAS”, Associação Portuguesa de Escritores (APE), Bibliotex SL, Biblioteca Prestígio, Prémio Vida Literária, 2001, p. 40.
.
e os lugares da cidade
“Mesmo reconstruída e apetrechada com todas aquelas árvores (na maioria plátanos e castanheiros), bancos e quiosques idênticos, Paris ainda exerce sobre a pessoa que saiu para perambular a tentação de andar só mais cem metros, e depois mais outros cem. Embora o metro seja o mais rápido, eficiente e silencioso do mundo, com estações que nunca ficam a mais de cinco minutos a pé de qualquer destino, o visitante vê-se sob o encanto do campanário elevando-se sobre o casario que vem logo abaixo, e da lojinha de brinquedos da próxima esquina, e da série de portas de antiquários, e daquela pracinha ensombrada.”

Edmund White
– “O Flâneur – Um passeio pelos Paradoxos de Paris. São Paulo, Companhia das Letras, Colecção “O Escritor e a Cidade”, 2001. O excerto foi retirado do artigo de Andréia Azevedo Soares, intitulado “O Flâneur – Um passeio pelos Paradoxos de Paris – Passear por uma Paris menos óbvia”, saído no suplemento “Fugas” do jornal “ Público” de 2002/09/28. Este mesmo livro foi, entretanto, editado entre nós pela editora ASA na Colecção “O Escritor e a Cidade.”


Imagem: bairro de Campo de Ourique, Lisboa
A ideia destas citações e excertos de textos é, naturalmente, proporcionar, a cada um, mais algumas reflexões, mais ou menos cruzadas, sobre matérias com características distintas mas com uma expressiva plataforma comum de conteúdos; e sendo assim não fará grande sentido juntar aqui muitas palavras, até porque as palavras acima falam realmente por si próprias pelos múltiplos e ricos sentidos e ligações que proporcionam.
Para mais tarde e para outras oportunidades ficam muitas ideias despertadas por essas palavras, mas, desde já se regista que é fortíssima a ligação entre a casa/o habitar, a natureza e o carácter do lugar e que é igualmente forte a ligação entre uma cidade habitada e os múltiplos lugares e cenários vivos que a constituem ou devem constituir.
De fora ficam, sem dúvida, aquelas casas que não existem em lugares humanizados e naturalizados, e aquelas cidades e partes de cidade que não são feitas de sítios e cenários vivos e estimulantes.

“Uma casa ... que nem casa fosse ...” e o flanar por Paris são apenas motivos, embora excelentes motivos para falar de muitas casas e de muitas cidades.

Lisboa e Encarnação, 10 de Agosto de 2005
António Baptista Coelho

1 comentário :

Anónimo disse...

Os convincentes "lugares humanizados e naturalizados" que este post apresenta não parecem exemplificar o "lugar de estímulo e surpresa" (v. post Jun, 1, 2005), que a cidade é e continuará a ser, porque esta não se compadece apenas da baixa altura e da presença discreta de volumes construídos escondidos em arvoredo.

"O porquê do continuar a aumentar a altura" - diria com alguma precaução - não remete exclusivamente para a venalidade do (des)ordenamento urbanístico e do incumprimento de planos, mas para o desejo [(in)confessado) da grandiosidade e da monumentalidade que é próprio do homem e inexoravelmente se reconfigura em cada estremecimento da civilização dita urbana.

Seria interessante que este blog pudesse suscitar, entre outros, o nunca esgotado debate sobre a pertinência da elevada altura das edificações na cidade.