terça-feira, agosto 02, 2005

34 - O Preconceito na apreensão da Cultura da Cidade e do Território - um artigo de Maria João Eloy - Infohabitar 34

 - Infohabitar 34

Breves notas de apresentação
O nosso Infohabitar, uma revista/blog que é de todos os que a fazem e lêem tem, mais uma vez, o grato prazer de apresentar uma nossa nova colaboradora, a Arq.ª Maria João Eloy, através da edição do seu artigo intitulado “O Preconceito na apreensão da Cultura da Cidade e do Território e da Paisagem Urbana”, cujo interesse ficará bem claro logo numa primeira leitura.


Maria João Eloy é Arquitecta e Mestre em Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa (FA/UTL) e não sendo aqui o lugar de fazer a sua apresentação, refere-se, no entanto e de forma telegráfica, que desenvolveu uma carreira diversificada entre o sector privado e o sector público, nomeadamente no FFH, no GAS, na SCML e na DGOTDU, registando-se, ainda, as actividades como profissional liberal e no domínio da pintura.

Finalmente, salienta-se que o texto que se segue constitui a adaptação de um excerto da Dissertação de Mestrado desenvolvida por Maria João Eloy na FA/UTL em 1998 e intitulada "O Preconceito no Conteúdo da Cidade."
A.B.Coelho, Encarnação, 3 de Agosto de 2005

O Preconceito na apreensão da Cultura da Cidade e do Território

Maria João Eloy



1. Pretende-se, com este texto, contribuir para o entendimento das implicações que têm as renovadas gerações de preconceitos para a apreensão da cultura da cidade e do território e da paisagem urbana;

2. Os pre-conceitos ou pressupostos, assumidos como regularidades e crenças e traduzidos em atitudes, aparecem como instrumentos para lidar com a realidade e interferem na gestão dos conhecimentos que fundamentam todo o tipo de intervenções na cidade, ou no espaço urbano;

3. Isto significa que as intervenções de todos os que fazem o espaço urbano, estão inseridas numa situação hermenêutica que consiste em possuir um conjunto de preconceitos que permitem leituras interpretativas, ao desenvolver antecipações de sentido projectadas pela compreensão prévia (Gadamer)1. Compreensão prévia que pertence ao campo da investigação das tendências dominantes julgadas suficientemente significativas;

4. Situação que acontece, tanto aos profissionais e agentes políticos que concebem, desenham e gerem o território e o espaço urbano, como aos habitantes e turistas que os povoam. Que acontece, quer aos cidadãos e funcionários municipais que o protegem, quer aos terroristas que o destroem;

5. Parece-nos fundamental que, na actualidade, a gestão dos conhecimentos que fundamentam todo o tipo de intervenções no espaço urbano, não dissocie os elementos de um discurso da regularidade e da reprodução, dos elementos do discurso da descontinuidade e da rotura (Decouflé)2;

6. Através de imagens, procuraremos mostrar as crenças e os preconceitos, traduzidos em regras de jogo, que são utilizadas, tanto no discurso da regularidade e da reprodução, como no discurso da descontinuidade e da ruptura do urbanismo, na era da globalização;

7. Não poderemos definir essas regras, porque é um problema cuja resolução envolve uma intervenção colectiva e transdisciplinar e exige uma praxis pouco ensaiada em Portugal;

8. Pretendemos apenas suscitar indagações sobre os temas da civilização como cultura urbana e o das implicações do ordenamento do território na paisagem urbana. Estas indagações apoiar-se-ão em registos fotográficos que se pretende possam fornecer sugestões para comentários e debate;

9. Para falar da paisagem urbana, conceito que decorre dos nossos preconceitos em relação à cultura urbana e ao ordenamento do território, recorreremos a imagens fotográficas de diversos tipos de paisagem urbana;


10. Não questionaremos aqui a pertinência da utilização do termo paisagem para os registos da visão do fenómeno urbano como um contínuo uno e indissociável, porque, como afirma Ledrut 3, a cidade possui a sua própria metafísica e a sua particular poesia, não é só prosa e tecnicismo;


11. Admite-se, sim, que a metafísica e a poesia da cidade, assim como a assunção de crenças e de identidades, podem ser pressentidas de diversas formas e constituem, para cada observador, o seu mapa e a sua paisagem do espaço urbano;

12. Espaço urbano que, na actualidade, não é apreendido como um todo tridimensional e compacto, mas como uma rede de lugares múltiplos (Rémy e Voyé) 4, conectados entre si por sistemas de simulação, de programação e de informação, que se podem traduzir num desaparecimento de sentido que é a tonalidade fundamental desses sistemas funcionais;

13. Perguntar-se-á, então, que formas de identidade e de afeição poderão ocorrer nas civilizações das novas redes urbanas, se a melancolia é essa desafeição brutal resultado dos sistemas saturados que as povoam (Baudrillard) 5;

14. Bastará atender às imagens apresentadas para distinguir entre paisagens que traduzem um discurso urbano da regularidade e da reprodução e paisagens que traduzem um discurso da descontinuidade e da ruptura do urbanismo, resultantes de uma economia globalizada e de um universo cultural fragmentado, que fazem emergir conflitos marcados pela necessidade de uma defesa da identidade;

15. Se os primeiros exemplos, escolhidos em Portugal, Açores (Fig.1, Fig.2), em Luxemburgo (Fig. 3), na Dinamarca, Copenhaga (Fig. 4) e na área central de Nova Iorque (Fig.5, Fig.6), poderão obter unanimidade de aceitação, será improvável a mesma atitude nos segundos exemplos escolhidos também em Nova Iorque (Fig.7, Fig.8), em Caracas (Fig. 9) e em Grozny (Fig. 10), prevendo-se que nestes seja questionada, quer a legitimidade de um processo urbanístico dominado por uma racionalidade económica que instrumentaliza todas as outras mediações, com o fim de realizar os seus próprios interesses estratégicos, quer os incalculáveis danos a que foram sujeitadas as populações pela mediação da guerra;

16. No entanto, através dos exemplos seleccionados, pretende-se mostrar como cada núcleo urbano tem merecido uma atenção diferenciada dos agentes políticos, mesmo que tendencialmente se constate a padronização das cidades, motivada por uma globalização das redes que alimentam as identidades e solidariedades colectivas da vida urbana actual, as quais reflectem uma nova territorialidade, cada vez mais complexa e codificada;

17. Pretende-se ainda mostrar que, enquanto um espaço pode ser definido como uma forma da nossa relação com as coisas, forma pela qual identificamos um objecto ou o que representa a sua unidade para nós, uma espacialidade (Ledrut, 1968) entende-se como uma forma de espaço culturalmente construída, pela qual um sujeito apreende objectos em relação aos quais ele próprio se posiciona, razão pela qual uma espacialidade nos aparece como uma estrutura a priori em relação a um actor social;

18. Como referido no início deste texto, admitimos que a elucidação do conceito de paisagem urbana remete para os de cultura urbana e espacialidade, reclamando estes a exegese dos fenómenos urbanos e culturais e do que neles faz sobressair o filosófico e o histórico;

19. Esta exegese, só possível pelos preconceitos do intérprete sobre o fenómeno urbano, a filosofia e a história, implica, todavia, que esse preconceito, nas suas diversas formas, bloqueie constantemente a sociabilidade ou a erotização, provocadoras de comportamentos criativos, próprios da vida urbana;

20. Ao pretender demonstrar que o uso efectivo da cidadania, em todas as suas formas expressivas, traduz a gramática do urbanismo, reconhece-se a necessidade de uma aproximação ao urbanismo através de uma pragmática que investigue os graus de uma verdade instrumental; uma verdade que acontece a uma ideia que se torna verdadeira, ou melhor, que se faz verdade por meio dos acontecimentos.

Conclusão:
Convém reflectir na diversidade de intervenções de autores da actualidade no relato instantâneo dos acontecimentos, implícita em cada estremecimento quotidiano da civilização jornalística, que evidencia a destruição da experiência, onde os acontecimentos irrompem desprovidos de história e parecem não se converter em experiência ou ensinamento; esta a razão porque a predominância da descrição de paisagens em registo fotográfico, em planos desenhados e em relatos escritos é um reflexo da destruição da
experiência e da sua autoridade, na construção da sociedade moderna. Autoridade que remete para o ‘contacto’ efectivo de que fala Virilio e do qual, hoje, nos distanciamos inexoravelmente.


Fig. 1: Açores, S. Miguel, Ponta Delgada, Museu Carlos Machado - fot. MJE, 2005


Fig. 2: Açores, S. Miguel, Ponta Delgada, Praça Vasco da Gama - fot. MJE, 2005

Fig. 3: Luxemburgo, Place d’Armes - fot. MJE, 2005

Fig. 4: Copenhaga, New Harbor - fot.
MJE, 2004

Fig.5: Nova Iorque, “ Looking south on ParkAv from 93rd Street”,
NYSocial Diary, 05.2005, fot. JH

Fig.6: Nova Iorque
, “Wollman Rink in Central Park Toward Sunset, Manhattan

Fig.7: Nova Iorque
, “View of Manhattan skyline from the Jersey Turnpike”
2004/12_21_04/socialdiary12_21_04.php

Fig.8: Nova Iorque, “NY blackout, August 14, 2003”

Fig. 9:
Venezuela, bidonville em Caracas, 2005

Fig. 10: Exemplo da devastação da guerra em Grozny

Nota 1: Este artigo corresponde à adaptação e desenvolvimento de alguns capítulos da Dissertação intitulada “O Preconceito no Conteúdo da Cidade”, realizada por Maria João Eloy P. C. Rodrigues, para o Mestrado “Cultura Arquitectónica Contemporânea e Construção da Sociedade Moderna”, realizado de 1994 a 1996 na FA/UTL.

(1) Gadamer, Hans-Georg - Verité et Méthode (1969) – Seuil, 1996
(2) Decouflé (1972) - A Prospectiva, Bertrand, 1977
(3) Ledrut - Sociologia Urbana, 1968
(4) Rémy e Voyé (1992) - A cidade: Rumo a uma nova definição, Afrontamento, 1994
(5) Baudrillard, Simulacros e Simulações (1981) - Relógio D’água, 1996


4 comentários :

RAM disse...

“A modernidade europeia é o outro de si mesma, um complexo processo de passagem de particularismos contextualizados a universalismos sem contexto, processo designado, em suas múltiplas facetas, por racionalização, secularização, burocratização, formalização jurídica, democratização, urbanização, globalização, etc.”

Max Weber


A propósito do preconceito na apreensão da cultura da cidade e da paisagem urbana, reli Boaventura Sousa Santos, a propósito das identidades.
Diz ele: "as práticas identitárias deixam no ar a dúvida sobre se a concepção hegemónica da modernidade se equivocou na identificação das tendências dos processos sociais, ou se tais tendências se inverteram totalmente em tempos recentes, ou ainda se se está perante uma inversão de tendências ou antes perante cruzamentos múltiplos de tendências opostas sem que seja possível identificar os vectores mais potentes".
No fundo, muitas vezes me questionei se "as dúvidas são acima de tudo sobre se o que presenciamos é realmente novo ou se é apenas novo o olhar com que o presenciamos".

No fundo, e deixo-lhe esta questão para debate/reflexão: não traduzirão as diferentes paisagens, mesmo quando "encerram um discurso de descontinuidade e de ruptura" uma reprodução de realidade já pré-concebidas, mas não interiorizadas.
Não será todo o discurso urbano um discurso de regularidade e de reprodução de uma sociedade cada vez mais dinâmica e diversificada?

Cordialmente,

Anónimo disse...

Caro RAM

Grata pela sua atenta leitura.
Das possibilidaes avançadas por BSS, admito a que indica estarmos perante cruzamentos múltiplos de tendências opostas sem que seja possível identificar os vectores mais potentes.

A propósito, já Remy dizia que a cidade tornou-se numa rede de lugares múltiplos que supera o seu significado patrimonial.

Acreditando, por experiência, que olhamos as mesmas coisas mas com os novos olhares dos nossos novos pressupostos, concordo absolutamente com a sua última afirmação.

MJ Eloy

amok_she disse...

(mt provavelmente vou dizer algumas das minhas patetices, mas...é o q penso e sinto em relação à Arquitectura)

De Arquitectura percebo nada!; mantenho a ideia (algo romântica) do Arquitecto como sendo um artista, embora lhe "exija a obrigação" de nos embelezar o quotidiano, mas que...se "vende" fácilmente(?!?), tendo em conta as barbaridades que se vão construindo pelo nosso país fora, em especial nas cidades...não se respeitam os hábitos e culturas de quem habita, não se tem em atenção as necessidades de quem vai viver no espaço arquitectado...quer se fale em habitação, quer se fale em edifícios públicos, etc...dos "monumentos" que se têm construido, na maior parte das vezes, percebe-se mt pouco do que o artista queria arquitectar...para quê?, porquê?...

Depois, sabe-se como tudo funciona neste país e percebe-se (adivinha-se ou vai-se sabendo) que, tantas vezes, se subverte o artista perante valore€ que mais alto se levantam...

Mas...não se pode implodi-los...???;-)

E eu continuarei a perceber nada de Arquitectura...apenas sentindo-lhe os (quase sempre) nefastos efeitos...e não sou portadora de nenhuma limitação física; e não sou elemento de nenhuma minoria étnica; e não tenho nenhuma predilecção especial por casas...o meu espaço é o espaço aberto...e livre!...mas gosto(gostaria muito!) de ficar embasbacada perante a obra do Homem...

Foi só um desabafo...

Ly

Anónimo disse...

Ly, agradeço o comentário, que me motivou bastante a pensar em 'arquitectura', embora o artigo trate também de paisagem urbana.

Para mim, a frase "percebe-se mt pouco do que o artista queria arquitectar...para quê?, porquê?..." é suficiente para traduzir a 'charada' que, mesmo a boa arquitectura, pode representar para o cidadão-observador que reaje "apenas sentindo-lhe os (quase sempre) nefastos efeitos".

Que fazer, que ensinar ou que aprender? Por mim, só recorro à atitude crítica se conseguir relembrar, rever e fornecer uma exemplificação de casos 'bons' e bem 'contextualizados'.

A título de exemplo e para não sair deste blog, convoco toda arquitectura de Fernando Távora, que te sugiro visitares, quanto mais não seja, em fotografia.