terça-feira, março 28, 2006

76 - A CIDADE E O EQUINÓCIO DA PRIMAVERA - um artigo de Celeste Ramos - Infohabitar 76

 - Infohabitar 76

A CIDADE E O EQUINÓCIO DA PRIMAVERA

um artigo de Celeste Ramos
Imagens de António Baptista Coelho

Sem consciência do que fomos
e do que somos
nunca saberemos estar
PRESENTES
no que quer que seja que viermos a SER

António Telmo

É dito que de uma gigantesca nuvem rodopiante e formada por poeiras cósmicas e gases que se contraiu, dela saiu, há 4600 milhões de anos, destacada e bem estruturada, uma pequena estrela rodeada de outros corpos celestes que foi denominado sistema solar. Essa estrela que dá energia global ao planeta que habitamos pesa mil vezes mais do que os 10 planetas que giram à sua volta e tem a força gravitacional que determina as suas rotas com grande precisão.
A esse ponto minúsculo do universo, pertence um outro, o planeta Terra em que apenas na sua superfície – a crosta terrestre – habita vida desde há 4 mil milhões de anos, possível depois da formação da atmosfera há 2500 milhões de anos e dos mares onde nasceu a primeira centelha de vida.
Então algures na crosta terrestre um animal de 4 patas se levantou e passou a erectus e do que descendemos e que a partir dessa "verticalidade" emergente continuou a evoluir desenvolvendo a sua caixa torácica para melhor respirar e, sobretudo, emitir outros sons até aí nunca emitidos e que a pouco e pouco se transformaram em "palavra", primeiro oral, mas que só muito mais tarde ganharia a forma escrita iniciada em pequeninos quadrados de barro onde imprimia caracteres, espécie de primeiro "livro" onde definiria o seu quotidiano tendo passado assim a comunicar de forma mais perene e a transmitir cultura e civilização.


Que longe fica sem sermos capazes de ter consciência desse tempo-quantitativo decorrido para que pudéssemos imaginar ter nascido desse pontinho do céu e aterrado sobre Terra firme para aprender a comunicar com os outros homens sobre o que se "via e sentia" nessa dimensão primeira e que, afinal, é a mais importante descoberta do homem, que sucedeu apenas há 6 mil anos, a escrita, já depois da descoberta do fogo e da roda, como se parecesse uma história de total ficção, masque não é.
Tempo-luz que o céu levou a manifestar-se para preparar a vinda do homem e os instrumentos para comunicar entre si e com os deuses. Para agora vermos que tão curta é a vida do homem, distinto dos outros seres vivos habitantes que o precederam para que pudesse existir e viver no Planeta que se engalanou em festa com todos os bens necessários para com suas mãos e inteligência tomar conta da sua “casa-terra."
Depois do trabalho dos deuses pôs-se o homem a construir cidades cada vez mais evoluídas e belíssimas paisagens que "arrumou" a seu jeito observando a plenitude da natureza e tratou, também, de melhorar a qualidade da sua vida, aumentando o conforto e bem estar, cultura e recreio, e tempo, pois que também ordenou o tempo para que fosse mais coerente o uso que dele fazia para executar as tarefas com que se foi comprometendo.
E deste tão devagar de toda a evolução, bem depressa esqueceu de onde e como veio e onde chegou, desligou-se do tempo e do modo e fez imperar sobre a Terra – e os homens – as suas leis inventadas e que, quase do dia para a noite se viraram contra a Terra e todos os habitantes viventes, porque, arrogante, deixou de querer ouvir os "sinais" e delineou outro rumo para todo o seu percurso evolutivo; e, curiosamente, sabendo o que faz e tendo total consciência que destrói esse milagre da vida de que é feito, bem como a sua morada.


De entre esses "sinais" destacam-se como mais óbvios e reguladores da evolução da vida global, os solstícios e equinócios, relação mais íntima, como que visceral, e casamento indissolúvel do Sol e da Terra.
No dia 22 de março de 2006 às 11.57 h o Sol no seu movimento aparente é observado frente ao grau zero da constelação de Carneiro, hora em que cientificamente está estipulado o início do equinócio da primavera, também denominado o início do ano astrológico e que coincide, especialmente no ocidente, com o ano civil actual, relógio cósmico adoptado para gerir os gestos dos homens em todas as latitudes
Por esta razão todas as criaturas nascidas ao longo de um mês pertencerão a este signo e pelas suas energias celestes serão regidas, independentemente de suas crenças, mais do que as que nasceram noutro mês do ano, influenciados pelo Sol e pela Lua e por todo o universo que nos serve de proteccão – chapéu estrelado que abriga o mundo, que serve de "relógio e de memória" para mudarmos os nossos ritmos e atitudes
Da mesma forma é assim influenciada a Terra que revestirá, mais uma vez, as característica do tempo equinocial de um renascimento de toda a vida da natureza animal e vegetal e que, como sempre, se repercute no comportamento físico e psíquico do homem e das suas actividades laborais e económicas e até de férias, muito embora tenha sido em pleno Inverno a demanda das Amendoeiras em flor no Algarve e em Trás-os-Montes em espécie de peregrinação panteísta que a natureza convida a fazer e a que se responde "naturalmente."



Se no equinócio do Outono foi tempo das últimas sementeiras para aproveitar o que resta de água no solo e de fertilidade, quando as folhas caíram e se desnudaram as plantas perenes que atapetaram o chão de todas as cores de oiro e cobre, desenvolvendo-se em húmus antes que a terra arrefeça com o frio do inverno e da neve, porque já esgotara no Verão o máximo da água que continha.
E assim também se iniciará agora o tempo de novas sementeiras de Primavera, mas em que, opostamente, a terra atingirá o máximo de armazenamento de água invernal reaparecendo o calor que se inicia em cada Primavera para que mais tarde se possa tudo repetir e colher os frutos culminantes no Verão, mas depois de passar pelo esplendor de MAIO (e tempo de Nª. Senhora e de Luz de Buda), em que toda a terra estará no máximo de generosidade de água no solo e fertilidade da terra, e de floração a anunciar os frutos e também as sementes para o Verão e que, uma vez ainda, voltarão a cair na terra, num eterno retorno de vida.
Também o céu cinzento dará lugar a céu mais limpo e azul, o Sol estará mais alto e dará mais calor, haverá mais luz e as nuvens terão novas formas de branco imaculado de cúmulos a anunciar, também, mudanças.
Não há sol como o de Maio
nem luar como o de Janeiro
nem cravo como o regado
nem amor como o primeiro
mas lá há-de vir o de Agosto
que lhe dará pelo rosto
O céu que ordena à terra e o homem que gestua quantas vezes sem saber porquê nesses hábitos que lhe estão talvez impressos no genoma biológico e cultural e de memória colectiva ancestral, ajudado pela observação da azáfama das aves migradoras e dos bichos que saem da sua hibernação e se mostram para que se veja que a "vida acordou" do longo sono de Inverno mais uma vez, e mais uma vez vêm cumprir o seu destino no tempo cósmico exacto de se reproduzir para que a vida não acabe e sempre aconteça.



Por toda a terra e mar das zonas mais gelada às mais quentes a debandada de multidões dos mais variados animais cruzam milhares de quilómetros sem parar até chegar ao seu destino para cumprir os seus ciclos programados e inexoráveis e que estão dentro de nós e nos acordam os sentidos ao olhar os frutos de cada estação, ao cheirar os perfumes dos frutos e das flores e da terra molhada, ao olhar as folhas que caem e que de novo rebentam em botão, renovando-nos também alegria que até o tempo nevoento consome e o Sol que reaparece e nos sorri e faz sorrir, só porque lá está e convida a olhar para cima e ver os bandos de andorinhas regressarem aos mesmos ninhos que têm de refazer e que voltaram anunciando vida também, no céu anunciando um grande ciclo climácico e planetário e de nascimento cósmico.
A semente escondida debaixo da terra fértil em esforço para germinar rompe-se até ser vista e porque não a alma do homem em silêncio recolhido para a vida interior volta a procurar o sol. O pólen das flores masculinas encontra o ovário das flores femininas. Os bichos acasalam e os que estavam em hibernação voltam à luz e calor do dia. Saem das tocas. Já nada está escondido, incubado ou hibernado. Tudo sai para a dimensão do visível, renasce e agita-se – mostra-se.
Tempo da Festa da Primavera, sendo 21 de Março escolhido pelos homens para ser o Dia Mundial da Poesia, essa forma superior de usar as palavras, forma também simbólica que toca os arquétipos da alma humana que os compreende para além da própria palavra.
Equinócio da Primavera e da estação primeira – o recomeço da vida global em que a duração do dia é rigorosamente igual à da noite, em que a força do dia iguala a força da noite durante três dias e que, a partir daí, o dia recomeça a crescer até atingir o seu máximo no pino do Verão no solstício e a noite é mínima, opostamente ao solstício do Inverno, dia e noite iguais também no equinócio de Outono mas em que é o dia que desfalece até ao Natal.



Tempo que anuncia a Páscoa e a Ressurreição de Jesus, outra festa intermédia dos ciclos cósmicos anuais, que depois do Natal e do Seu nascimento e do novo sol do coração do homem e celebração da família, depois da purificação da Quaresma, morre então o Homem, para ressuscitar triunfante para glória do Pai e sua glória espiritual e, então sim, ir depois de "férias de verão" num contínuo vaivém das coisas do corpo e do espírito da terra, e do corpo e do espírito do homem ad eternum.
É a Sagração da Primavera e do tempo em que por amor tudo recomeça com toda a força de ser. É a festa da vida. Hino à vida e à alegria do despertar e do existir depois do silêncio e do frio e do jejum.
É a própria Força – força-amor do imanifestado para o manifestado da Criação e da Vida Primordial ritmos e alternâncias revelados pelas paisagens que habitamos e pelo homem recriados.
Ritmos na Terra, no Céu e no Homem, que com a Primavera revela o máximo da força da vida; Primavera - a prova de existência da Vida - Sagração da Vida.
A neve derreteu
Nos píncaros da serra;
O gado berra
Dentro dos currais,
A lembrar aos zagais
O fim do cativeiro;
Anda no ar um perfumado cheiro
A terra revolvida;
O vento emudeceu;
O sol desceu;
A primavera vai chegar, florida.

Miguel Torga - Diário XI (1969)
Lisboa-Bairro de Santo.Amaro – 19 Março 2006
Maria.Celeste.Ramos
Imagens de António.Baptista.Coelho

terça-feira, março 21, 2006

75 - Notas ribeirinhas de Lisboa - um artigo de António Baptista Coelho - Infohabitar 75

 - Infohabitar 75

Notas ribeirinhas de Lisboa

um artigo de António Baptista Coelho

Queremos descobrir e ir ao encontro dos desejos e gostos das pessoas e ser coerentes com a nossa cultura e com o carácter do lugar? E a memória? Quais as imagens que recordamos do velho Tejo? Carcaças de hidroaviões? Esculturas de sucata? Vontades de abalar em navios? Viagens mais ou menos sonhadas entre margens e Continentes?
São as memórias dos Portos de muitas gerações, recheando de sentidos as margens, densificando-as e diversificando-as. E sobrevivem, ainda hoje, tantas memórias de ricos e estimulantes cenários, que poderão ser recriadas. Não é crime fazê-lo, recriando as histórias, dos cais das caravelas aos guindastes gigantes, das varandas sobre a praia medieval ao tijolo burro dos grandes armazéns.
E por "detrás" da margem, quanto aos velhos edifícios que parecem esconder-se envergonhados, o que se poderá fazer? Escondê-los, ainda mais, com novos edifícios ou com árvores, com o tráfego da noite ou com a cidade fantasma das alamedas, quase sempre vazias e inanimadas, feitas para se verem "de carro" ou, por cima, à boleia dos pássaros?




Uma grande cidade faz-se de cidades, de troços, de mutação, de coerências e diálogos locais, desde a cor à função, de formas e jogos formais, de poesia e harmonia racional. O que aqui se joga é a oportunidade única de refazer boa parte de uma Lisboa transoceânica e uma tal oportunidade é com certeza irredutível a opções "cinzentas", predominantemente unifuncionais e repetitivas.
E neste sentido vale a pena atender a um conjunto de conclusões/opções retiradas de um concurso de ideias para a margem ribeirinha, realizado já há alguns anos, e que defendem, globalmente, uma densidade equilibrada entre espaço livre e espaço construído e diversas soluções de pormenor, mas notando-se três importantes consensos:
- a opção por um litoral denso do ponto de vista da vida (densidade de uso) e de símbolos;
- a recusa de frentes homogéneas ou barreiras construídas contínuas paralelas à margem e/ou de grande altura;
- e a recusa de zonas livres unifuncionais contínuas.





E quando perguntamos ao lisboeta o que ele gostaria de ter na sua Cidade ouvimos, por exemplo:
- qualidade do espaço urbano e arquitectónico;
- boas acessibilidades;
-valorização das características de Lisboa;
-zonas verdes e espaços para o cidadão;
-e preocupação com o crescimento da cidade, a sua terciarização e a expulsão dos seus moradores de sempre.
Levando tudo isto em conta, o que se deverá fazer será, talvez, muito variado, cuidadoso, coerente com tantos sítios que fazem esta nossa margem de Lisboa, num acréscimo qualitativo ao que já lá está e deverá permanecer, mas também, porque não aqui e ali arrojado, dinâmico, atraente para todos, estimulante pelo sossego ou pela animação, pontualmente recriador da nossa história e expressivo da nossa cultura.





Há espaço para muito, há que ter cuidado com os principais problemas, não se pode perder tempo, mas tem que se fazer com acerto e confiança, e a Cidade pode ganhar espaços de cidadania variados, renovando-se ao voltar a abraçar as curvas do rio.
Deixemo-nos de tabus e vamos fazer um pouco de cidade, com ruas, praças, alamedas e jardins, não mais uma muda urbanização de escritórios, não mais uma nova faixa para os tristes passeios de tarde de Domingo, nem mais uma "zona verde" mais ou menos de enquadramento a novos e majestáticos edifícios e quase sempre insegura, porque verdadeiramente não habitada.
As pessoas, os citadinos e os outros, aqueles que também vivem a cidade de vez em quando, mas intensamente, querem muitas e variadas coisas, cada vez mais e mais diversas e só na extensão de uma cidade completa e complexa elas as encontrarão, não apenas, com certeza, em faixas enfeitadas com restaurantes e relvados.
Trata-se de uma oportunidade única, e com o seu tempo próprio, mas que tem de pertencer a várias gerações, há que ser rápido, sendo lento/cuidadoso, há que pensar e há que fazer já, há que jogar na oportunidade histórica e respeitar/recriar as memórias de muitas cidades e de muitos cidadãos, só assim a cidade poderá vibrar num tema colectivo com a sua margem.




Entre inspirações nas fontes históricas, o respeito pelos ambiente e pelas paisagens, a (re)vitalização do tecido urbano, a coerência de acessibilidades e a integração de e com outras intervenções estruturantes é que serão estabelecidas as bases de uma proposta ribeirinha e lisboeta bem radicada e viável.

Respeitar e recriar a História

A História é nossa será que não podemos beber nela e, por exemplo:
-repotenciar a ligação dos Bairros históricos (e dos novos) à cidade ao longo da margem;
-recriar novos/velhos Rossios comerciais e subtilmente fluviais;
-traçar Terreiros marcados por alas, grandes pátios urbanos e uma grande via paralela a rio donde partam transversais;
-recuperar algumas memórias da Praia de Alfama e dos núcleos ribeirinhos ligados a actividades fluviais e marítimas;
-pontuar a margem com sóbrias sequências edificadas vitalizadas por habitações;
-inventar umas novas "varandas sobre a praia", casas de 2/3 pisos muito fenestradas e em bandas terreamente permeáveis para ir ao rio/"à praia";
-pontuar visivelmente com novos pequenos portos habitados;
-recriar pontualmente alguns perfis ribeirinhos e Lisboetas de antes do Terramoto, cidade/edifício/jardim/(cais)rio;
-voltar a albergar o uso festivo e lúdico das festas populares, e, até, porque não das velhas esperas de touros em espaços que acolham, como outrora, as efémeras arquitecturas de ocasião;
-e, finalmente, recuperar, passados tantos anos, a oportunidade então perdida de fazer a "margem que falece à cidade de Lisboa".




Relação com o ambiente e a paisagem

Assegurar o conforto ambiental ao nível do tecido urbano existente (insolação e drenagem atmosférica), bem como respeitadas, designadamente, as actuais vistas de enfiamento.
Há técnicos e técnicas que o permitem fazer e tais cuidados parecem poder ser facilitados, porque a margem é um todo heterogéneo e diversificado zona a zona.

(Re)vitalizar o meio humano e urbano

Contribuir para a revitalização da cidade e para a renovação do seu sangue populacional, mas o mais possível completo, nas misturas das múltiplas actividades e dos diversos tecidos sociais. Já existem dezenas de restaurantes, bares, esplanadas e discotecas, e há perspectivas para ateliers e escritórios, mas, e a habitação!? A fundamental habitação, e diversificada.
E quando se trata de revitalização temos de ter um enorme cuidado com a questão estratégica de não ser possível, nem fazer sentido, vitalizar “todo o espaço”, a cidade tem muitos sítios calmos, onde a vida se faz sem festa, mas dignamente e em segurança e conforto; e pensar assim e actuar em conformidade é também ajudar a uma cidade habitada e positivamente regenerada.





Prever e harmonizar uma boa rede de acessibilidades funcionais

Acessibilidades primárias rodo e ferroviárias perfeitamente conjugadas com os tráfegos locais e de atravessamento, com o apoio geral a um uso pedonal estrategicamente apoiado por estacionamentos, e com os eixos de transportes fluviais e as novas circulações perimetrais de Lisboa.
E ter em conta a grande extensão de todo o equipamento "verde" existente e em projecto, privilegiando as deslocações pedonais e ciclistas bem apoiadas em transportes públicos amigos do utente e do ambiente.

O Porto que vai continuar

Não esquecer que a área funcional do Porto continua e até se dinamiza, concentradamente, acolhendo uma maior movimentação de contentores, é preciso que este espaço não seja dissonante, é necessário que ele funcione bem e com o mínimo de más influências na envolvente.




Há que desenhar elementos urbanos ribeirinhos como uma verdadeira arquitectura, baseada no profundo conhecimento de Lisboa e visando uma nova margem da cidade multifuncional, intensa e variadamente habitada, no dia-a-dia, integrando-se totalmente numa zona histórica e de grande beleza natural a preservar, estabelecendo uma continuidade urbana natural com os Bairros vizinhos e valorizando e animando Lisboa com espaços privilegiados para a cultura e o lazer.
Uma tal mistura nega um desenho urbano frio e desumano, e configura um tecido citadino que quer ser complexo, vivo, múltiplo, expressivo, e caloroso, afinal uma parte de cidade, como deve ser uma parte de cidade, não uma parte dessa parte: um jardim para ser visto, uma zona de escritórios, um bairro residencial para privilegiados, uma faixa “ajardinada” de recreio, comércio e restaurantes, etc., etc.




Uma parte de cidade é de tudo isto um pouco e mais ainda, porque é habitação para diversos grupos sociais, é festa e feira em certas alturas da semana e em certos sítios, é o encontro do "passeio perdido" e é mistura viva de tráfegos e espaço urbano vivo e seguro porque vivo e é, também, a harmonia possível entre o que se faz agora e o que se fará no futuro, assim como deve ser harmonia entre o que se faz agora e o que antes estava feito e precisava de intervenções e regeneração, porque a cidade é um organismo com uma vida longa, muito longa, pelo menos assim todos desejamos que o seja, e porque é nas margens, sempre foi nas margens da água e dos bosques, que muito da cidade se passou, pois são sítios de todos os percursos físicos e imaginários, e sítios de todos os inícios e remates de viagens das mais pequenas e de vizinhança, às maiores e até sem fim, pois para lá do horizonte.




Lisboa, Encarnação/Olivais.Norte, 21 de Março de 2006
António.Baptista.Coelho

terça-feira, março 14, 2006

74 - 5ª Sessão do Grupo Habitar, em Évora - Os idosos e a cidade envelhecida - Infohabitar 74


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Finalmente a conclusão da Bouça, de Siza Vieira, pela iniciativa cooperativa




O próximo dia 25 de Abril será marcado pela conclusão do famoso e agora totalmente renovado Bairro da Bouça, no Porto, situado entre a linha do caminho de ferro e a Rua da Boavista, projectado por Siza Vieira, com as primeiras ideias apontadas antes de Abril de 1974 e cuja arquitectura urbana e habitacional foi, depois do 25 de Abril de 74, desenvolvida no âmbito do plano de habitação de emergência SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local), sendo então o conjunto previsto apenas parcialmente construído (1977), seja na parte habitacional, seja nos respectivos espaços públicos.


Em Abril de 2004, portanto há apenas dois anos, foram iniciadas as obras de regeneração urbana e habitacional do pequeno Bairro, que incluíram a profunda reabilitação construtiva e em termos de conforto ambiental dos 56 fogos preexistentes – acção esta feita com os moradores no local –, a conclusão do plano inicial com o desenvolvimento de 72 novas habitações, a criação de um estacionamento subterrâneo e todos os espaços públicos que irão dar coesão urbana à renovada intervenção.



Faz-se ainda um especial destaque a uma cuidadosa, sistemática e eficaz acção de gestão e enquadramento social de uma intervenção de elevada complexidade, seja pela mistura entre obras de requalificação e novas obras, seja pela harmonização de situações sociais e familiares extremamente diversificadas, seja pela necessária harmonização formal de inúmeras apropriações feitas pelos habitantes ao longo de quase trinta anos, seja ainda pelo objectivo de conciliar o controlo de custos, pois trata-se de uma obra financiada pelo INH, com o acabamento de uma obra charneira e marcante da arquitectura portuguesa do século XX e designadamente da história da habitação de interesse social em Portugal.



O perfil deste artigo é apenas alertar para este evento único, pois passados uns muito escassos dois anos após o início desta iniciativa, a Cooperativa Águas Férreas, especialmente constituída para o efeito pelas cooperativas CETA e Sete Bicas e pela Associação de Moradores da Bouça, marca o 25 de Abril de 2006, com a conclusão da Bouça de Siza Vieira.


Para este resultado muitos contribuíram, mas faz-se aqui uma referência especial, ao nível da obra, para o Arq. Álvaro.Siza.Vieira e o seu gabinete, e neste designadamente para o Arq. António.Madureira, na coordenação da obra para o Eng. José.Coimbra e no desenvolvimento da obra para a FDO Construções SA. Ao nível dos promotores têm de ser nomeados os incansáveis José.Ribeiro, Arnaldo.Lucas e Guilherme.Vilaverde, por parte das cooperativas, aos quais muito se deve, mas também deverá ser destacada a colaboração do INH, desde a primeira hora e designadamente o empenho do Director da Delegação no Porto, Defensor.de.Castro e do próprio Presidente do INH, Teixeira.Monteiro.
No próximo dia 25 de Abril de 2006, pela manhã e marcando este evento, o INH – Instituto Nacional de Habitação, e a FENACHE – Federação Nacional de Cooperativas de Habitação Económica, decidiram promover, a partir das 10.00h, uma mesa de debate sobre as experiências do SAAL, que conta com a participação dos Arquitectos Álvaro.Siza.Vieira e Nuno.Portas.
O Grupo Habitar (GH) já esteve na Bouça, numa fase avançada da sua construção, em Maio de 2005 (juntam-se imagens dessa altura) e conta vir a fazer um artigo pormenorizado e ilustrado sobre este novo exemplo de inovação e de eficácia da cooperação habitacional, agora numa intervenção complexa de regeneração urbana e habitacional a custos controlados; para já ficam os sinceros e entusiastas parabéns do GH a todos os que para mais esta excelente obra cooperativa contribuíram.
António.Baptista.Coelho
Pres. Dir. Grupo.Habitar

sexta-feira, março 10, 2006

73 - A Cidade e o Carnaval, festa de antecipação do Equinócio da Primavera - um artigo de Celeste Ramos - Infohabitar 73

 - Infohabitar 73

A Cidade e o Carnaval, festa de antecipação do Equinócio da Primavera

um artigo de Celeste Ramos
Imagens de António Baptista Coelho
O homem vive dia a dia os seus gestos quotidianos apercebendo-se de que são ritmados pelos ciclos do sol e do dia, da lua e da noite e é também pelo sol que se apercebe do ritmo das estações, o que o faz mudar os seus comportamentos nos períodos e ritmos de trabalho mas também de férias, aproveitando o sol no pino de verão para enxamear as praias um pouco por todo o mundo, podendo actualmente ir cada vez mais longe com a profissionalização da organização da viagem, o desenvolvimento dos transportes e das comunicações tornando o planeta cada vez mais pequeno e mais perto.
Assim o homem atento aos movimentos humanos aproveita-os para desenvolver economias algumas derivadas das novas circunstância e regenerando outras que adormeceram ou mesmo se extinguiram.



Focadas nas novas "peregrinações" o turismo é sempre o maior provocador mas também o responsável pela desmultiplicação de actividades económicas ligadas à cultura e religião, ao desporto mais descomprometido ou de valor internacionalizado, sendo que em paralelo nascem as indústrias do design e do vestuário específico para as diferentes ofertas de férias, para além da promoção da agricultura e da gastronomia locais e também renascimento de tradições.
Aproveitando o sol e as praias ou as bancas montanhas da neve nos locais já consagrados ou nos que se preparam, há uma imensa troca de usos e costumes pagãos e religiosos.
A distribuição do tempo de férias passou a ser feita ao longo de todo o ano e ao longo do planeta aproveitando-se também as festividades calendarizadas de cada país visitado provocando no caminho reverso, o conhecimento de outras partes do mundo através desses viajantes e ainda das mais modernas formas de comunicação e de publicidade da "oferta aliciando o prazer de viajar para locais antes exóticos" acordando lugares recônditos e esquecidos e que o "viajante identifica" e passa a cartografar num espécie de outro mapa mundi do que de mais belo e interessante, e diferente, o mundo oferece, tornando esses locais cada vez mais apetecíveis e de que os mass media também se apropriam para divulgar, para além de provocar também a publicação de livros de viagens, tornando tudo mais fácil e acessível.
Quem diria assim que só a partir dos meados do séc. XX estar queimado pelo sol deixou de ser sinal de inferioridade social atribuída aos trabalhadores do campo e do mar passando para o oposto como sinal de exibição das classes superiores "com o seu ar de mais saúde no corpo e na bolsa" e que a partir daí também são agentes de criação de novas economias de construção de transporte privado por terra ou mar, passando o turismo de massas e de transporte colectivo a ser feito em meios individuais de que os iates serão um exemplo notório, mas a que bem cedo a indústria naval e turística respondeu com a oferta de verdadeiras cidades flutuantes do mais luxuoso e inesperado, como se todos os ciclos da natureza que provocam o movimento diário de cada homem se transmitisse aos seus actos mais inesperados de criação contínua de riqueza e de bem-estar material a par do bem-estar em tempo de descanso e de férias desbravando o planeta por terra e pelo mar, movimento que não se confina nunca mais a um só país porque o homem quer ir sempre mais longe ou ao mais fundo do mar.
No solstício de verão o medo ocidental transformou-se em movimento económico, cultural e lúdico a que mais tarde se seguiu em paralelo o desenvolvimento das mais variadas indústrias ligadas ao solstício de Inverno com as Festas de Natal e de férias na neve.
As festas cósmicas das 4 estações foram interpretadas pelos homens primeiro pelos ligados à exploração da terra e do mar e posteriormente pelo homem urbano que acrescentou algo mais para o seu desenvolvimento e mesmo aproximação humana de classes e de raças e de linguajares, por sua vez redistribuindo mercados e saberes de que serão "mensageiros" os homens de negócio.
No solstício de Verão a terra culminou na sua oferta mais generosa de sol que tanto doira a nossa pele como doira os frutos e lhe acrescenta perfumes, enquanto no solstício de Inverno que culmina no Natal com nascimento de novo sol no coração do homem e quando a terra está mais despojada porque também ela parece precisar de fazer o seu descanso maior, mas continuando a formar o seu húmus para o período que se lhe seguirá no equinócio da primavera, se também o homem "acumulou no verão como a formiga bens para o Inverno", terá ainda a possibilidade de usufruir da beleza da neve e da cultura dos lugares frios de oferta diferente mas igualmente generosa, ciclos eternos do homem e da natureza cada vez aproveitados de forma mais consciente, fechando ciclos, mas alargando-os a cada vez mais homens e mais lugares, ao planeta inteiro que parece assim "conquistado"
Mas entre estes grandes ciclos equinociais e solsticiais, e os ciclos diários, há ciclos intermédios de que o Carnaval é um deles e que constitui festa de antecipação do equinócio da Primavera.
Calendarizado no mundo ocidental, poder-se-ia dizer que são três dias de folia em que "nada parece mal", espécie de limite de manifestação colectiva que fecha um "ciclo de compromissos e de trabalho porque as férias também já ficaram para trás" mas que imediatamente abre outro ciclo – o da Quaresma – , em que outro tipo de recolhimento é pedido ao homem, diferente do que foi pedido em tempo de Natal.


Do "excesso carnavalesco" em que Carnaval significa despedir da carne (carne-aval), passa-se ao oposto em que o homem religioso faz jejum e mesmo abstinência a partir da quarta-feira-de-cinzas (redução a pó e nada), para se preparar espiritualmente para a Páscoa da Ressurreição que se lhe seguirá, e se o corpo físico foi preparado no verão e de energias renovadas, é agora a vez da preparação espiritual durante 40 dias (os 40 dias que Cristo passou no Deserto que segue à Epifania depois do natal e do Dia de Reis) até ao Domingo de Ramos ou Domingo das Palmas em que cristãos e ortodoxos festejam a entrada de Jesus em Jerusalém a anunciar a Paz no mundo se houver Paz em Jerusalém.
Os calendários mundiais das festividades são os mais variados e focados na cultura e crenças locais havendo porém alguns que são praticamente comuns a todos os homens essencialmente ligados à religião como o Natal e Páscoa e o Carnaval, sobretudo no mundo ocidental.
O Carnaval em Portugal tem largas tradições por mais aculturado que tenha sido por outras culturas, e as suas origens perdem-se nos tempos para além da nacionalidade pois que pode remontar a milhares de anos, sobretudo em Trás-os-Montes, à cultura Celta, parecendo actualmente revestir o "desígnio da alma e do prazer" tendo no entanto por essência remota não apenas festejar o fim do Inverno mas também a morte (o pai velho que se queima na fogueira para que possa nascer o Pai novo), como antecipação do equinócio da Primavera de Abril.
O Carnaval é também motivação de grandes fluxos turísticos internos e internacionais e também um pico de dinâmica em vários sectores de actividade económica.
Ciclos e sub-ciclos do céu e da terra, do homem e da cidade.
Lisboa e Bairro de Santo Amaro
28 de Fevereiro de 2006
Maria Celeste d'Oliveira Ramos
Imagens de António Baptista Coelho

quinta-feira, março 02, 2006

72 - As sociedades envelhecem, mas somos humanos – um artigo de Celeste Ramos e Baptista Coelho - Infohabitar 72

 - Infohabitar 72

As sociedades envelhecem, mas somos humanos

Artigo de Celeste Ramos e Baptista Coelho
Umagens de A. B. Coelho

Até aqui a Sociedade tem institucionalizado a maioria dos problemas ligados à terceira idade sobretudo no que respeita ao alojamento, à saúde e ao encontro, ou tem deixado cair essa realidade no esquecimento, considerando-o um problema resguardado dentro das fronteiras de cada país e de cada cidade.

A declaração de 1999 como o Ano Internacional do Idoso fez desencadear o interesse por este tão "moderno" problema sobretudo nas sociedades em que aumentou extraordinariamente a esperança de vida do cidadão, sobretudo nos países mais ricos e evoluídos.
De entre os cerca de 10 milhões de portugueses, 2 milhões têm mais de 65 anos correspondendo a 17% da população e considerados "os grandes esquecidos", sendo que de entre eles 1 milhão aufere menos do que 300 euros mensais; mas já foram apresentados valores muito diferentes, pelo que esta discrepância informativa esconde que há vários milhares de velhos cujos rendimentos estão muito abaixo do ordenado mínimo, que em Portugal representa cerca de um quinto do ordenado mínimo médio da UE.
Em 2000 o índice de envelhecimento ultrapassou pela primeira vez os 100 idosos por cada 100 jovens entre os 0 e 14 anos, e em 2004 existiam quase 108,7 idosos por cada 100 jovens.
Só em Lisboa existem cerca de 35 mil velhos a viver sozinhos, e de acordo com as projecções para 2050, Portugal será o 4.º país mais velho da Europa dos 25, tendo sido também já considerado um dos três países mais pobres da União Europeia.
Valores mundiais revelavam, há cerca de uma dezena de anos, que apenas 5% da população mundial aufere 75 % da riqueza mundial global e Portugal encontrar-se-á nessa média, apesar de estar na 23.ª posição de uma escala dos 27 países considerados desenvolvidos, de acordo com inquéritos realizados por empresas internacionais especializadas e credíveis, já que com a comunicação global os países parecem aproximar-se mais e, igualmente, comparar-se também nas suas riquezas e misérias.
O presidente da república cessante deu relevo à temática do envelhecimento e da pobreza, por exemplo, em Novembro 2005, no decurso das Jornadas sobre Envelhecimento e Autonomia, promovidas pela Santa.Casa.da.Misericórdia.de.Lisboa, e no Congresso de Gerontologia, também em Novembro de 2005, entre os múltiplos temas apresentados, destacaram-se os respeitantes à arquitectura na cidade, ao impacto do envelhecimento na sociedade e na qualidade de vida e a questão da integração dos mais velhos no actual quadro da União Europeia.



Sabemos que a nossa sociedade, bem ou mal, vai respondendo a muitos dos problemas inerentes à terceira idade, mas estão cada vez mais longe de ser satisfatórias tais respostas, porque o envelhecimento e o empobrecimento avançam mais depressa, e ainda porque há que, no "fim da linha da vida", procurar ser feliz sem se "esperar sentado" até que chegue esse fim, e não há sociedade que possa divorciar-se desse problema sob pena de se ter chegado à situação de uma espécie de “nova escravatura do século XXI."
Sempre os governantes portugueses se mostraram incapazes de solucionar, em tempo, os problemas mais prementes da nossa sociedade. E é agora em pleno século XXI que aos problemas anteriores nunca resolvidos, ou mal resolvidos, se acrescenta o da 3.ª idade e todo o tipo de situações que acarreta e a que a cidade não consegue responder porque nem nunca se reorganizou com as migrações das década de 70 e de 80/90, nem as populações encontraram forma de se instalarem homogeneamente pelas cidades do interior, que foram esquecidas pelo desenvolvimento, mesmo depois da integração na UE, em que se recebia por dia um milhão de contos, que foram utilizados para construção de vias-rápidas que não levaram as populações para o interior, mas apenas facilitaram a sua deslocação mais rápida para o litoral onde se amontoa 70% dos portugueses que, antes, tão bem distribuídos estavam por todo o território, mesmo no local mais montanhoso e inacessível; tão inacessível que o desenvolvimento nunca lá chegou e agora “envelhece e apodrece”, porque os que teimaram lá ficar, até aos anos 80, já envelheceram sem serem renovados.
As cidades e as povoações envelhecem com os cidadão e com a sua juventude se revitalizam. Mas, por exemplo, os quase últimos locais de emprego nas Beiras fecharam desde 2003 a 2005; e assim, que novos e acrescidos problemas de envelhecimento da população irão ser criados e reforçados?
É impressionante dizer que uma das mais importantes cidades de interior como é Bragança tem, actualmente, cerca de 70% de velhos, porque nada se renovou em termos de instalação de sistemas de dinâmica das economias para que as famílias aí se pudessem desmultiplicar, em vez de abandonarem o local de nascimento, restando só os que aí foram envelhecendo.
O povo português anónimo é em geral amável e solidário, e se não fosse assim, o quadro social vigente relativo aos crescentes problemas da terceira idade, atingiria dimensões de catástrofe.
O país envelhece em todos os sentidos, nos monumentos patrimoniais e na habitação antiga que não são restaurados, nas economias que não são renovadas e revitalizadas nos locais onde se nasce e se habita, no planeamento urbano que não acompanha os fenómenos socioeconómicos, caminhando-se para o drástico envelhecimento em todos os aspectos de destruição de paisagens urbanas e rurais, bem como mesmo para a erosão social e, principalmente, para a erosão das próprias ideias, que não se renovam para resolver os grandes problemas de uma sociedade em que as populações quase nunca são chamadas a participar na solução dos problemas que lhes dizem respeito.
Ideias de desenvolvimento de novas formas de actuação sociocultural, habilitando os idosos a serem auto-suficientes em muitas situações, e, mais do que auto-suficientes, a participarem numa grande diversidade de acções socialmente válidas e úteis para eles próprios e para outros grupos socioculturais, que podem sem dúvida obter nas experiências de vida e profissionais dos idosos um apoio inestimável; desde que contando, gratuitamente, com locais físicos municipais ou mesmo particulares e desactivados, para se organizarem e desenvolverem tais acções, pois "terceira idade" deverá, urgentemente, significar também a definição que se lhe quiser dar, em termos de direitos, deveres e, essencialmente, oportunidades de ser útil, de participar. E isto é o que é mais necessário ao país em geral, à população em geral e aos velhos, em particular: oportunidade para viver e ser útil.
E talvez que as universidades de Braga, Viseu, Aveiro, Vila Real, Covilhã e Évora, por exemplo, possam constituir-se não apenas em pólos de saberes, mas também de criação de novas oportunidades de fixação e de repovoamento humano e económico dessas regiões de que são capital, e assim se promova uma nova imigração, que retire, a longo prazo, população de locais saturados e desqualificados, ajudando a povoar, novamente, o interior hoje tão envelhecido, pois o equilíbrio da população e de cada célula familiar conduz ao desenvolvimento e equilíbrio global de cada local.
O problema dos velhos, sobretudo de mãos dadas com o da pobreza e em parte também com o do analfabetismo e o da crítica carência formativa e cultural, é da maior acuidade e requer soluções rápidas, além de outras estruturais, porque se prepara a velhice nas idades de maturidade, porque se prepara a qualidade de vida em geral com os cuidados tidos desde o nascimento, porque se prepara a evolução social com a atitude de alguns, poucos, que são semente de mudança social.
Mas o facto é que não têm os responsáveis, a qualquer nível central e regional, dado uma resposta exaustiva a uma situação tão grave e urgente, limitando-se, com frequência a uma atitude marcada pelo "faz-se o que se pode", como se o poder tivesse, igualmente, envelhecido e desmoronado e ficado sem qualquer ideia de como fixar e dinamizar populações, que sejam agentes e motores de desenvolvimento, nem que seja, por exemplo, confinado apenas ao turismo de todo o ano e à produção dos bens da terra e de artefactos locais e regionais; o que já seria meio caminho andado para a auto-sustentabilidade da actividade económica, desmultiplicadora de muitas outras que lhe tendem a suceder.


Parece que a filosofia não foi apenas sequestrada pela economia e gestão que rege o actual mundo ocidental e o desinteligente e irracional economicismo nacional que, essencialmente, "esconde" os grandes dramas humanos. Parece que a filosofia foi sequestrada também pela impotência e desistência, dada a grandeza da acumulação dos problemas aos quais se foi virando costas nestas curtas décadas de democracia. E curiosamente os meios de comunicação social também se cansaram de expor que problemas haverá por aí e a que portas batem, como se não se passasse nada.
Não se passa nada! Mas passa-se, tal como nos foi dito em Évora, por uma técnica de Serviço Social, numa sessão do Grupo Habitar, que nos disse que há muitos casos de idosos praticamente abandonados pelas respectivas famílias e a viverem, muitas vezes, em condições sub-humanas; abandonados pela família e esquecidos pela sociedade.
E enquanto isto se passa os países europeus “desenvolvidos” estão a aumentar o tempo de trabalho da população activa, num recuo das regalias anteriormente conquistadas (menos tempo de trabalho e mais tempo livre - grande slogan dos anos 80); um recuo que nos países do sul, mais pobres, tem o sabor a um sonho nunca concretizado.
Mas, entre nós, muito mais urgente e crítico do que pensar em sonhos de reformas douradas, hoje provavelmente impossíveis, é dar resposta imediata e adequada a essas situações de abandono, que não podem ser admitidas. É portanto urgente um programa especial dirigido para a eliminação dessas situações e, em segunda linha, um programa especial que vise a maximização do aproveitamento da experiência e da vitalidade dos cidadãos seniores em tantos campos em que podem ser úteis à sociedade, à cidade e a si próprios.
Não é apenas uma questão de bom senso e de boa gestão de recursos humanos, é também uma questão de ética e de justiça social e, acima de tudo, é, na prática, uma questão de sobrevivência, pois uma sociedade que não toma conta dos seus mais frágeis e uma sociedade que não aproveita a experiência onde ela está, em quantidade e com tempo de ser útil, é uma sociedade suicidária.
O homem moderno, o sapiens-sapiens, dominou o mundo, sabe-se hoje, quando passou a contar com a experiência acumulada e complementar dos seus mais velhos, quando estes começaram a tomar conta das crianças e a ensiná-las, provavelmente, enquanto os jovens adultos caçavam e procriavam; a arte nascida nas grutas e depois na cerâmica e na decoração dos utensílios, também não é uma actividade de grupos apressados e sem histórias, e a arte é o fulgor da invenção e da criatividade; e acima de tudo o tomar conta dos mais velhos e o dialogar com eles é um sinal de afectividade, de emoção e de verdadeira humanidade. E sendo assim, o caminho que devemos seguir está claramente traçado.

Este artigo foi elaborado pelos autores entre as seguintes datas
Lisboa, Bairro.de.Santo.Amaro, 21 de Novembro de 2005
Lisboa, Encarnação/Olivais.Norte, 26 de Fevereiro de 2006
Maria Celeste d’Oliveira.Ramos
António Baptista Coelho
As imagens são de António Baptista Coelho