quinta-feira, abril 26, 2007

137 - ACESSIBILIDADES, MOBILIDADES E (IN)SUSTENTABILIDADES URBANAS: A CIDADANIA EM CAUSA – artigo de João Lutas Craveiro - Infohabitar 137

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ACESSIBILIDADES, MOBILIDADES E (IN)SUSTENTABILIDADES URBANAS: A CIDADANIA EM CAUSA

João Lutas Craveiro

(palavras chave: acessibilidades, mobilidades, sustentabilidade, participação, cidadania, problemas de Lisboa, Telheiras, CRIL, planeamento, urbanismo, João Lutas Craveiro, NESO, LNEC)

João Lutas Craveiro é Investigador Auxiliar do Núcleo de Ecologia Social (NESO) do Departamento de Edifícios do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Docente Convidado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Este artigo surge na sequência de uma oportunidade de reflexão, criada no Núcleo de Ecologia Social (NESO) do Departamento de Edifícios do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), a propósito das temáticas inscritas no Plano de Investigação Programada em curso naquele Laboratório Nacional.

Refiro-me ao aprofundamento de uma linha de investigação que tem privilegiado, no NESO do LNEC, a análise sobre as mudanças territoriais, os seus impactos ao nível das comunidades humanas, as pressões sobre os sistemas naturais e os processos de decisão a propósito de novas infra-estruturas. Evidencia-se nesta linha de investigação, justamente intitulada “Mudança social, território, recursos naturais e infra-estruturas de ambiente”, a necessidade do acompanhamento das mudanças territoriais e dos modos de fazer a cidade, sob a compreensão das mútuas dependências entre os ambientes natural e construído.

O presente artigo não pretende desenvolver, neste lugar, uma avaliação daquela linha de investigação, inscrita no Plano de Investigação Programada do LNEC (período 2005-2008). Pretende-se, neste fórum de intervenção e de debate, tão só explorar algumas questões de análise e apresentar uma grelha de leitura acerca das mudanças territoriais e dos modos de fazer a cidade.

Apresenta-se também um conjunto de reflexões (1) a propósito de dois casos de estudo que, durante o presente semestre, o NESO desenvolverá procurando discriminar um campo de pesquisa sobre as mudanças territoriais, envolvendo a sustentabilidade das comunidades urbanas.

Uma das marcas distintivas dos espaços urbanos é a mobilidade que solicita, constantemente, a construção de novas acessibilidades e infra-estruturas. Por sua vez, esta construção reforça e orienta os fluxos das deslocações massivas, transformando de forma inexorável os territórios e as suas identidades, dando lugar a pressões urbanísticas.

A expansão urbana em redor de Lisboa, desde os anos 50 do século passado, constitui um exemplo desta transformação brutal, alargando as áreas de residência na dependência do centro metropolitano e provocando um efeito uniformizador dos campos à volta de Lisboa amotinando as suas identidades: «Os antigos lugares fronteiriços a Lisboa foram tomados por formas de edificação e por populações que introduziram dinâmicas alheias à vida dos arrabaldes de uma cidade tradicional» (BAPTISTA, 2006: 59).

É este jogo dinâmico entre as acessibilidades e as mobilidades, escrutinando-se a cidade como um campo topológico de relações de poder e esclarecendo os processos de decisão política sobre o ordenamento do território, que se pretende focar com o desenvolvimento de dois casos de estudo. Estes dois casos de estudo suportam uma primeira abordagem exploratória à temática mais geral das mudanças dos territórios e da questão da sustentabilidade das comunidades urbanas.

O primeiro caso de estudo abrange uma zona que se pode considerar como uma área (sub)urbana qualificada, o Bairro de Telheiras (2), dentro da cidade de Lisboa, caracterizado por uma população rejuvenescida, enquadrada por elevados níveis de habilitações escolares e profissionais e que escolheu esta área de residência devido à sua qualidade arquitectónica, à exigência de conjugar a centralidade com a acessibilidade e, entre outros factores, à valorização do conforto e intimidade do lar com a distinção dos espaços exteriores (FERREIRA et al, 1990).

Por corresponder a projectos de intervenção urbanística diferenciados, e até antagónicos sob a eleição do espaço público e da amenidade ambiental, seleccionou-se no Bairro de Telheiras o caso da Quinta de Sant’Ana, objecto da construção de um Parque Urbano ladeado por uma nova estação de Metro (3) e por novas edificações. Este caso ilustra bem duas alternativas em jogo, extremando os argumentos urbanísticos (neste exemplo, a favor de novas urbanizações enquadradas por um Parque Urbano e servidas por novas acessibilidades e transportes públicos) dos argumentos naturalísticos (em defesa da sacralização da natureza e da funcionalidade dos espaços rurais como reserva de identidade e lugar de práticas colectivas de amanho da terra).

Estes argumentos encontram portadores institucionais privilegiados: o Metropolitano de Lisboa, a Empresa Pública de Urbanização de Lisboa (EPUL), empresa com responsabilidades de construção na zona de Telheiras e defensora do Parque Urbano, a Associação de Residentes de Telheiras e a Divisão de Projectos e Estruturas Verdes da Câmara Municipal de Lisboa com soluções sugerindo a criação de Hortas Pedagógicas, e de espaços verdes intervencionados pelos moradores, soluções então defendidas pelo Arquitecto Ribeiro Telles.

Os casos de estudo a desenvolver visam equacionar o modo da expansão urbana, aferindo a relação estreita entre a promoção de novas acessibilidades urbanas e o reforço das mobilidades, esclarecendo-se o sentido das alternativas em jogo e a dinâmica das identidades e das imagens dos lugares intervencionados para uma melhor compreensão dos processos de decisão sobre novas infra-estruturas urbanas e das dimensões da sustentabilidade das comunidades e do edificado.

Em relação ao primeiro caso de estudo, refira-se que está em jogo não apenas a oposição entre o ambiente natural e o ambiente construído mas também a questão das decisões políticas sobre o ordenamento do território e a respectiva componente da participação pública no domínio de uma cidadania que é cada vez mais pró-activa e que, por antecipação, procura escrutinar tecnicamente soluções que podem, na sua essência e objectivo, representar um novo modelo de relações de poder que alguns autores apelidam por governação [governance] (4).

As duas Figuras seguintes tipificam o regime de oposição entre ambiente natural e ambiente construído dando lugar a soluções alternativas que, na ausência de um consenso técnico e político, acabam por se excluírem mutuamente sob o prejuízo da negociação para a procura de soluções integradas. Neste caso, as valências dos argumentos urbanísticos e dos argumentos naturalísticos serviram propósitos de antagonismo tornando as soluções, primariamente defendidas, incompatíveis: «A Quinta de Sant’Ana é hoje o Jardim da Praça Central e do Metro, em que os elementos da quinta são meramente decorativos, o moinho e o poço só aparentemente são a origem da água (a água é da EPAL), a latada de vinha, pensada por Ribeiro Telles, é evocada por uma pérgula metálica, os lagos de fontes cibernéticas, de luzes e sons, incomodam os vizinhos com as variantes mecânicas bruscas, e as árvores de grande porte não se sustentam na camada de terra, que cobre os estacionamentos subterrâneos e a estação do Metro» (CONTUMÉLIAS, 2006: 139).

O que está em causa é, pois, a sustentabilidade do edificado e a equidade social dos processos de decisão política, sendo oportuno discriminar melhor o carácter de uma dissensão entre a cidade planeada e a cidade imaginada, e apropriada, pelos seus utilizadores.

Figura 1: Esquisso de projecto para «Espaço Verde em Telheiras/Escola de Jardinagem e Hortas Pedagógicas» (na Quinta de Sant’Ana) da Câmara Municipal de Lisboa.



Figura 2: Parque Urbano e edificado na Quinta de Sant’Ana (situação actual).
Foto do autor (2007)


O segundo caso de estudo elege uma zona residencial de características muito distintas da primeira, e que pode ser classificada como uma zona (sub)urbana desqualificada, originada por um fenómeno de suburbanização intensiva que se estendeu aos concelhos da primeira coroa em redor de Lisboa (é o caso da Amadora).

Esta coroa suburbana caracteriza-se pela elevada densidade do edificado, pelas deslocações massivas casa-emprego (deslocações para fora do concelho de residência), com uma duração relativa e considerável no tempo dos trajectos, pela sobrelotação dos alojamentos e pelos fracos níveis de conforto dos mesmos, para além da sobre-representação, ao nível profissional, de trabalhadores não qualificados do terciário (INE, 2004: 120-122).

Equaciona-se, também neste segundo caso, a envolver a zona de Alfornelos e envolvente, a equação acessibilidades-mobilidades e os seus efeitos no campo das identidades sociais e locais, sob a observação das transformações dos territórios. Neste caso, a construção da IC17, Circular Regional Interior de Lisboa (CRIL), sub-lanço Buraca-Pontinha (incluindo ligações a Benfica), acarreta impactes sociais negativos, pelo efeito-barreira e os níveis de ruído, por exemplo.

É certo que a conclusão da CRIL significa também uma oportunidade para uma melhor gestão das acessibilidades na área metropolitana de Lisboa, nomeadamente prevendo-se o alívio da 2ª Circular em cerca de 40 mil veículos, a redução de 20% do tráfego na Calçada de Carriche e de 4% de veículos pesados no interior da cidade de Lisboa. Em relação ao movimento de tráfego estimado, e em função da sua redistribuição, os impactes da construção da CRIL podem ser considerados positivos.(Quadro 1).



Quadro 1: Movimento de veículos estimado até ao ano de 2009


Fonte: MOPTC, 2006

Subsiste a questão dos impactes negativos, referindo-se aqui os de ordem social. No entanto, mesmo admitindo a mitigação dos impactes sociais negativos já referidos (efeito-barreira e ruído), pois encontram-se equacionadas soluções em túnel (5) e a promoção de medidas de reabilitação urbana (exemplo ilustrado na Figura 3), prevalece a discussão sobre o traçado (Buraca-Benfica) onde uma denominada Associação Cívica de Moradores de Alfornelos (reunidos com as comissões de moradores de Santa Cruz de Benfica e Damaia) apresenta alternativas que considera tecnicamente viáveis (Figura 4).

Figura 3: Exemplo de intervenções a desenvolver na zona da futura CRIL



Fonte: MOPTC, 2006


Figura 4: Dissensão sobre o traçado da CRIL


(A verde: traçado alternativo)
Fonte: Associação Cívica de Moradores de Alfornelos

Ora, assinalam-se algumas questões comuns que se destacam nestes dois casos aqui esquematizados: a dissensão social a propósito de Obras Públicas com base em diferentes percepções sobre a evolução dos territórios e a sua qualidade de vida, o relativo fracasso dos mecanismos da participação pública, que devem ter como missão sufragar, do ponto de vista social e técnico, as grandes Obras e (na ausência desse sufrágio) a consequente litigação ambiental.

Não se defende que as Obras Públicas devam merecer um absoluto consenso social e técnico, o que seria improvável em democracia, mas parece urgente repensar os mecanismos da participação pública, os períodos e os conteúdos da discussão (no diálogo entre técnicos e grupos de cidadãos) dos impactes sociais e ambientais suscitados pelas grandes Obras.

Parece também evidente que os recursos mobilizados por grupos de cidadãos apelam, cada vez mais, a uma legitimidade e racionalidade técnicas na análise dos projectos, o que pode constituir um elemento facilitador de futuros consensos mais alargados, dependendo dos momentos da discussão e da capacidade dos decisores (locais e nacionais) em antecipar os períodos de reflexão pública.

Convenhamos que há sempre um momento para decidir e para agir, e que as grandes Obras que servem o interesse público (já sujeitas a complexas etapas de avaliação e de licenciamento) não podem ficar reféns de interesses bairristas ou que invoquem o privilégio de um sítio em particular por sobre o interesse geral.

Os dois casos resumidos também indiciam as contradições dos protestos organizados sob a mobilização local: num caso parece estar em causa a preservação de uma quinta e de terrenos livres, para a promoção de um uso não urbano, no outro associações locais defendem exactamente uma alteração de traçado da rodovia, alteração essa que afecta as áreas não-urbanas e os terrenos livres, não se advogando aí a sua preservação para actividades de lazer ou utilidades marginais de matriz rural.

Os estudos a potenciar no âmbito dos estágios abertos pelo NESO visam, pois, discriminar um sistema de actores, decisores e stakeholders, a propósito das grandes Obras Públicas com particular incidência para a correlação entre a promoção de novas acessibilidades e o reforço das mobilidades, na área metropolitana de Lisboa. Deve atender-se, ainda, às relações entre as infra-estruturas ligadas aos transportes e a edificação de novas áreas urbanas, porventura marcadas por fortes mecanismos especulativos (NUNES DA SILVA, 2003: 419). Como se sabe, também, a expansão urbana de Lisboa deve muito às configurações das malhas rodoviárias e às redes de transportes (MATIAS FERREIRA, 1987).

Estes estudos constituem-se, assim, como estudos exploratórios para um guião de análise sobre as mudanças territoriais, as questões da cidadania e as identidades locais. Num nível mais epistemológico, os estudos colaboram para a identificação das relações entre a Engenharia e a Sociologia, sob a aferição da sustentabilidade do edificado (Figura 5). A dimensão tecnológica das intervenções e as condições territoriais implicadas no planeamento das mudanças acabam por interpelar, de forma incontornável, a Engenharia e a Sociologia (6).


Figura 5: Acessibilidades e Mobilidades, interpelações do território e da tecnologia



As mudanças dos territórios, os processos de decisão política e as avaliações técnicas, como também a questão das identidades sociais e a sodalidade (7) ou a formação de grupos de cidadãos, por interesses próprios e partilhados, renovam as questões da cidadania (8) e da sustentabilidade do edificado na medida em que questionam os modos de fazer a cidade impondo a integração entre os factores humanos, políticos, tecnológicos e territoriais.

A promoção das acessibilidades pode criar também, para além de novas mobilidades e ligações urbanas, novas fragmentações territoriais e desvalorizações de áreas de residência exacerbando as divisões sociais dos espaços urbanos (GRAFMEYER, 1994: 41).

Assim, um urbanismo residencial com a marca da sustentabilidade não pode dispensar, sobretudo nas zonas de interface urbano-rural ou centro-periferia, «a estruturação socioespacial dos espaços livres, o equilíbrio agrourbano […]» (BAPTISTA COELHO, 2006: 368) e o balanço necessário entre a tradição e a modernidade, o ambiente natural e o ambiente construído.


Notas:
(1) Agradece-se o contributo, para a reflexão que se tem vindo a consolidar no âmbito da linha de investigação referida, dos sociólogos Paulo Machado, Chefe de Núcleo, e Álvaro Pereira, bem como das frequentadoras dos estágios no NESO Dianne Ackermann, com formação em Sociologia e com ligação ao Instituto de Urbanismo de Grenoble (França), e Cátia Caseiro, finalista do curso de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa. Os estágios de Dianne Ackermann e Cátia Caseiro inserem-se no desenvolvimento dos casos de estudo que a seguir se enunciam.

(2) Os limites do Bairro de Telheiras podem ser «fechados» entre vias rápidas: 2ª Circular, Eixo Norte-Sul e Av. Padre Cruz (embora as referências a Telheiras possam ser mais «instáveis», estendendo-se quer para a Freguesia de Carnide quer, mais a sul, em direcção ao Campo Grande onde surgem construções identificadas como Telheiras). O caso de estudo situa-se no conflito que envolveu a expansão do Metro para Telheiras e a urbanização em redor da antiga Quinta de Sant’Ana (que contempla, hoje, a nova estação-terminal do Metro para essa zona, e um Parque Urbano).

(3) O Metropolitano expandiu-se até Telheiras, e as obras para a nova estação começaram no ano de 2000 subvertendo, então, o espaço rural denominado por Quinta de Sant’Ana. Não se advoga aqui a manutenção dos espaços rurais, independentemente das transformações urbanas, ou a sujeição dos espaços rurais a uma apropriação simbólica das suas referências, na satisfação de uma nostalgia das origens, mas tão só se apresenta um caso de estudo a potenciar discriminando-se as alternativas mais contrárias em jogo nos modos de fazer (e olhar) a cidade.

(4) No limite, é preciso distinguir entre governo e governação, citando-se James Rosenau (PUREZA, 2001: 241), pode defender-se que «governo sugere actividades que são apoiadas por autoridades formais, pelo poder político, enquanto governação se refere a actividades apoiadas em valores partilhados que podem derivar ou não de responsabilidades ditadas por via legal e formal e que não requerem inevitavelmente o apoio do poder político para superar as reservas e garantir o cumprimento». José Manuel Pureza (op. cit.) tem sido crítico desta concepção. Pessoalmente prefiro o termo empowerment (apoderamento) para traduzir a possibilidade de comunidades territorialmente emancipadas (CRAVEIRO et al, 2005) envolvendo novas dinâmicas de participação pública que não dispensam os requisitos da formalização institucional, antes os solicitam como um instrumento de reforço dos seus argumentos social e tecnicamente determinados.

(5) O estudo realizado pela COBA (datado de Setembro do ano de 2006), referente à avaliação ambiental das alterações do projecto inicial da CRIL (sublanço Buraca-Pontinha), aponta expressamente para soluções em túnel em trechos críticos, ou para a adopção de barreiras acústicas, nomeadamente do lado do Bairro de Santa Cruz.

(6) Não é por acaso que o NESO inscreveu no seu Plano de Investigação Programada, em curso, uma linha de investigação exclusivamente vocacionada para a relação entre as engenharias e as ciências sociais e humanas.

(7) Em Sociologia entende-se a sodalidade como a capacidade humana de constituir grupos, definidos como unidades de actividades (BAECHLER, 1995: 57). Não se deve confundir este termo com o termo comum das sociabilidades. O termo sociológico sodalidade é mais oportuno para a análise da formação de grupos, nomeadamente de grupos de pressão em contacto com o poder político, grupos considerados no seu estado organizado.

(8) O novo conceito de cidades sustentáveis requer, aliás, uma forma de planeamento que contemple a participação dos cidadãos, numa aproximação entre as abordagens top-down e as abordagens bottom-up (MUNIER, 2007: 53).


Bibliografia citada:
BAECHLER, Jean. Grupos e Sociabilidade, in Tratado de Sociologia, Ed. Asa, Porto, 1995: 57-95.

BAPTISTA COELHO, António. Habitação Humanizada, I&D, Programa de Investigação, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Lisboa, 2006.
BAPTISTA, Luís Vicente. Urbanização, Ruralidade e Suburbanidade: Conceitos e Realidades, in Relações Sociais e Espaço. Homenagem a Jean Remy. Ed. Colibri, CEOS, Investigações Sociológicas, Lisboa, 2006: 55-66.

CONTUMÉLIAS, Ana. Um Quadradinho Verde na Aldeia de Telheiras, Plátano Editora, Lisboa, 2006.

CRAVEIRO, João, MARTINS, Marta e ALMEIDA, Ana. Práticas e Processos de Empowerment; a análise das respostas ao Questionário. Nota Técnica 04/05-NESO, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Lisboa, 2005.

FERREIRA, António Fonseca, GUERRA, Isabel e PINTO, Teresa. L’usage et l’appropriation du logement a Telheiras, in Sociedade e Território, Ano 5, Setembro, 1990: 43-51.

GRAFMEYER, Yves. Sociologia urbana, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1994.

INE, INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA. Tipologia Sócio-Económica da Área Metropolitana de Lisboa. INE, Lisboa, 2004.

MATIAS FERREIRA, Vítor. A Cidade de Lisboa: de Capital do Império a Centro da Metrópole, Ed. Dom Quixote, Lisboa, 1987.

MUNIER, Nolberto. Handbook of Urban Sustainability, Springer, Dordrecht, 2007.

NUNES DA SILVA, Fernando. Transportes e Acessibilidades, in Reformar Portugal, 17 Estratégias de Mudança, Oficina do Livro, Lisboa, 2003 [5ª edição]: 399-457.

PUREZA, José Manuel. Por um internacionalismo pós-vestefaliano, in Globalização, Fatalidade ou Utopia?, Edições Afrontamento, Porto, 2005: 233-254.

sexta-feira, abril 20, 2007

136 - O CÉU DE LISBOA – artigo de Celeste Ramos - Infohabitar 136

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O CÉU DE LISBOA


por Celeste Ramos
ilustrações/fotografias com participação de António Baptista Coelho

Convidam-se os leitores a apreciarem um novo texto de Celeste Ramos, um texto sobre “o céu de Lisboa”, ou será que não é sobre o céu da cidade, de qualquer cidade amada.
E depois deste texto, e da mesma boa amiga Celeste, um segundo texto se junta, um texto “segundo”, que não é necessário depois do primeiro, mas que será lido, por quem o quiser ler, desde que com um espírito aberto e receptivo, semelhante ao que foi necessário para o escrever.
E os leitores atentos entenderão o contraste entre o céu da cidade, que nos deixa pensar sem limites, e os limites que existem, cada vez mais, em muito do que ainda faz a verdadeira beleza do nosso mundo.

Foi um pequeno e livre comentário do editor,

ABC



O CÉU DE LISBOA

Às vezes tenho ideias felizes
Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam…
Depois de escrever, leio …
Porque escrevi isto ?
Onde fui buscar isto ?
De onde me veio isto ? Isto é melhor do que eu …
Seremos nós neste tempo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos ??

(In: Álvaro de Campos, Edição Ática de 1958)



Fig. 00

Que tarde tão bela e tão luminosa tal que toda a gente deveria estar na rua – sim, na rua – a ver o dia, a ver a luz, a ver tudo o que o olhar pode olhar e "ver" para além do que é visto e se mostra. E a ver também as árvores e os pássaros se é que ainda há pássaros na cidade.

Ver e sentir e, podendo, comunicar com alguém o sentimento de banho de luz na tarde luminosa e fresca de Lisboa.

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras .
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, na verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta com várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas
Quanto mais unificadamente diverso, dispersamente atento
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é tudo,
E fora d'Ele há só Ele, e tudo para ele é pouco

Cada alma é uma escada para Deus
É um corredor-Universo para Deus
Cada Alma é um rio correndo por margens de Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno

Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito



Fig. 01

Olhei para o chão e as pedrinhas dos passeios parecia que sorriam à luz daquele sol rasante iluminando-as e dando-lhe existência na forma, e cor, e luz e vida.


Olhei para as plantas, algumas que sabiam que algo se estava a passar e que iria acabar em breve, despedindo-se do nosso olhar com cor de oiro porque a morte não tem de ser só negro e tristeza porque o negro é a ausências de todas as cores que é também a cor do céu mais escuro e que agora até tem mais cores do que se pode calcular e inventar.

Olhei para a terra tão pouca e cada vez mais rara porque betão e betuminoso a invadem implacável e impunemente mesmo com os Polis que tudo re-qualificam impermeabilizando o inimaginável, mas terra que ainda a há na cidade, e tão castanha e refrescada pela chuva acabada de cair que dava perfume que parecia que respirava e falava com as plantas que segurava bem, porque lhes tinha permitido criar raízes para poderem ali ficar todo o tempo do mundo e serem vistas muitas vezes por muita gente se houver quem para elas goste de olhar e compreender como são vida e alegria da própria terra.



Fig. 02

Mas, e a luz ?
Estava sempre a mudar porque lá mais no alto aquelas nuvens que permitiam o sol e a luz, eram no entanto muito cinzentas e por vezes tão negras, mudando de formas constantemente a desafiar o rosa e o oiro que o sol insistia dar-lhes, como se o céu com os seus caprichos as fizessem dançar e também ouvir muito ao de leve algum diálogo, talvez musical, provocado pela atrito das partículas de água de que se formam e, nunca se sabe, se é sol se é borrasca, se é a maior das tempestades quando as partículas se agridem até faiscar.

No entanto que felizes ainda somos os que vivemos aqui enquanto tudo fizermos individual e colectivamente para que a fricção das partículas de chuva não venha nunca a provocar terríveis perturbações electromagnéticas no céu que fazem tudo desabar - só duas gotinhas de água a friccionar uma na outra, por diferença de temperatura, podem ser o início da pior das devastações e morte pois que sendo embora fenómenos naturais podem ser reforçados na sua violência e ocorrência pela mão humana e mesmo deslocalizados para lugares onde não pertenceria acontecer, como é o caso do país onde até a natureza foi sempre doce e pacífica, mas já não é.

E já não o é, pois que tendo o clima mudado e o país despovoado em benefício das áreas metropolitanas, continua-se a ignorar o constante des-ordenamento de todas as paisagens, mas também a vigilância de áreas remotas e sem habitantes, num eterno esquecimento da dinâmica dos territórios face ao uso humano ou às intempéries, normais ou acidentais, tornando-se assim o ordenamento mais e mais premente não importa em que espaço nacional; diríamos mesmo que a “velha” GNR que a cavalo percorria o país rural, faz falta ela ou outra instituição, que se ocupe de ver “o que se vai passando por aí”.

Mas que felizes podemos ser ainda se percebermos a parte que nos cabe de prevenir e conservar as situações que mantêm o clima que temos ainda, por mais ameaçadoras que já tenham sido algumas situações sobretudo nesta década do novo milénio e mesmo não tendo gravidade maior, o certo é que a nossa cidade começa também e assistir a fenómenos muito fora do que era habitual pois que já neva em Lisboa ou no litoral soalheiro e mesmo no Alentejo.



Fig. 03

Mas que felizes poderemos ser só de ir passear e olhar a luz de todo o ano, olhar a terra e as árvores, olhar as folhas em tempo de despedida mas que deixaram os frutos pendurados e a secar, olhando também para o chão de terra onde caem e logo se transformam em vida, olhar o cais e a água do rio que se entrega ao mar e a luz que dele também vem, e o vento, sim, o vento, a mostrar-se nas ramadas fazendo-o assobiar, e a mostrar-se também na água a ondular, o mesmo vento que faz mudar essas nuvens impacientes que correm pelo céu a anunciar, a anunciar, a anunciar-nos que terra e céu estão ligados e nós de permeio a tentar perceber o que tudo quererá dizer: olhar o chão, olhar o céu, olhar a vida de qualquer lugar.

Sinfonias da terra e céu desdobradas em tudo que a habita, como nós, os habitantes mais cruéis e distraídos das coisas desse eterno diálogo que é imperioso ouvir, ouvir, e não esquecer e escolher ouvir melodia, mas até quando?

Às vezes tenho ideias felizes
Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam…

Mas ao mesmo tempo que deixo correr as ideias ia vendo, na SIC Notícias, das 02.30 às 03.OOh da madrugada de 23 setembro 2006 , e pela segunda vez em menos de um ano, um programa sobre os apanhadores de bivalves na ponta mais noroeste do Reino Unido, grande planície de areia de ilhotas e braços de mar e estuários, que logo que a maré começa a subir silenciosamente tudo inundando sem se dar por nada. Estes apanhadores de bivalves, chineses, ilegais, são explorados e arriscam a vida, diariamente, num ritmo de marés que em boa parte desconhecem, dormindo em pardieiros em Liverpool, sem direito a planos nem sonhos de vida, vivendo apenas um dia de cada vez; o que me faz lembrar os portugueses dos anos 60 ou os emigrados do Sahel de hoje, destes primeiros anos do III milénio d.C.

Afinal, cada um pode fazer o quê?? Cada um deverá fazer o quê?



Fig. 04

A minha cidade de céu de todas as cores e luz sem imitação, abriga ainda tanta vida mas também tanta indiferença pelo que se passa pelo mundo, e mesmo pelo que nela se passa, de feio e mesmo de belo porque quem toca a beleza quererá certamente partilhá-la.

Nada?? A impotência do homem comum como eu que só posso, ao menos, escrever sobre isso, e depois?? Depois nada!

Cada um por si, cada nação por si, só pode mesmo ser assim?

O céu cheio de nuvens carregadas de negro e chumbo, para uns a morte, para mim, hoje, a beleza incompleta e imperfeita porque não consigo olhar só uma face das coisas, que até vêm ter comigo sem as ter procurado a esta hora tão tardia.

Depois de escrever, leio …
Porque escrevi isto ?



Fig. 05

Porque fui ver a beleza da luz e das nuvens negras, e porque gostava de poder partilhar a grandeza do que vi mas que, entretanto, foi interceptada pelo que acontece, lá mais longe, onde nem nuvens havia, mas a morte reinava, não a das folhas das plantas, mas dos homens e dos seus sonhos que não tiveram tempo de sonhar.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta com várias pessoas,

E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida

Quanto mais unificadamente diverso, dispersamente atento
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,

Sentir tudo de todas as maneiras
Sentir tudo excessivamente
Porque todas as coisas são na verdade excessivas

Mas mais completo serei pelo espaço fora

Sursum corda

E fica a Vida, a que persiste.


Texto segundo:



Fig. 06
In:www.dias-com-arvores-fevereiro 2007

Semente de sobreiro: na terra caiu uma semente que ninguém semeou, que dará uma grande e milenar árvore de onde o homem retirará grande riqueza mesmo sem ter de a regar ou adubar, no entanto sempre ameaçada pelo betão e betuminoso, mesmo sendo a árvore protegida por lei há mais tempo no país, mas que os “Polis” em vez de requalificar, abatem.

Olhar o céu, para quê??
Só o céu??
O que o céu dá vê-se cá em baixo no chão!
O país orgulha-se de ser o maior produtor de cortiça e, dela, a melhor para rolhas para o champanhe francês e apesar de ser o sobreiro a árvore há mais tempo protegida, é constante o abate de milhares de árvores, as que se sabe serem abatidas mas, pior, as que não se sabe porque é escandaloso as abater “ao sol”

Porém, esta árvore que nem de água quase precisa porque o que é “grande” muito dá e nada pede, precisa no entanto de um mínimo pois que não é “palmeira-de-oásis”

Acontece que com a generalização sem nenhum critério da eucaliptização do país desde o vale à montanha escarpada, desde o norte chuvoso ao sul seco, acontece que mesmo no norte onde por enquanto ainda chove, onde ainda há manchas de sobreiro no seu estado de floresta natural, nesta “primavera de 2007” quando as folhinhas novas a nascer deviam, como qualquer outra, ser de verde claro, já são amarelas, o sub bosque é pobre porque as plantas bravas do seu ecossistema já não aparecem, nem os pássaros, a atestar o empobrecimento do conjunto e a ausência de água no solo, dada a envolvente de eucaliptal que lhe retira a água que lhe pertenceria, que retira água e vida e desenvolvimento, anunciando assim a morte em directo do que em breve irá acontecer, talvez para justificar o seu “abate” por estarem velhos e podres, esta árvore mais do que centenária e fonte de silêncio e beleza e por fim de bens para as economias pois que sem natureza não há economia a prosperar e não consta que desertificando se encontre petróleo.

A ONU já revelou que em 2050 não haverá água potável para toda a população mundial e, em cada lugar da terra, a água potável é a maior riqueza pois que sem ela nem indústria haverá, mas apenas morte e, quem sabe se em breve a guerra entre os homens deixará de ser o petróleo, mas sim a ÁGUA? – veremos bem cedo que assim será.

E, para já, o aumento de preço da água canalizada aumenta a quantidade de água disponível? E será de direito a água de quem a pode ainda pagar? E será de direito esconder a quantidade que se perde nas canalizações de captação e distribuição? E será de direito o uso da água armazenada em barragens para desporto motorizado e poluente? Valerá perguntar o que são direitos e deveres de Cidadania? E se teremos de ter algum “ensino-especial” para os aprender e fazer aprender?

Valerá a pena?
Por mim, esta sabedoria ainda existe, mas apenas, nos analfabetos-ignorantes-rurais que vão morrendo e envelhecendo e com eles desaparecerá a ética e estética das paisagens que as universidades não sabem ensinar, para além de outros conhecimentos que a Cidade despreza.

Acabei!

Maria Celeste d'Oliveira Ramos
Lisboa - Bairro de Santo Amaro
Setembro 29 – 2006 + Fevereiro 11-2007 + Abril 04-2007 (COR)
Revisto e ilustrado para publicação no Infohabitar em 2007-04-06 (ABC)
Editado no Infohabitar em 2007-04-19 (JBC)

135 - Sobre Alvalade, um comentário – de Pedro Taborda - Infohabitar 135

 - Infohabitar 135

Pedro Taborda



O Bairro de Alvalade, que tem por base o " Plano de Urbanização da Zona Sul da Avenida Alferes Malheiro", de autoria do arquitecto Faria da Costa ainda nos anos 40, é um verdadeiro laboratório de propostas habitacionais (mais de 25 anos de período de urbanização).

As várias unidades de urbanização constituem estrutura urbana de raiz projectada por vários arquitectos mas com o acompanhamento do autor do plano, permitindo por esse motivo uma forma de planear aberta, aferindo as diferentes fases, evoluindo de acordo com as exigências da arquitectura, pela forma nas unidades morfológicas projectadas tendo em conta os aspectos ambientais, culturais, lúdicos e desportivos.

Nesta oportunidade, seria então reivindicada a renovação dos conceitos arquitectónicos e urbanísticos, segundo os princípios racionais da arquitectura moderna internacional, ainda que nos anos posteriores à realização do “ 1ª Congresso Nacional de Arquitectos” em 1948 o desejo de afirmação entre nós de uma arquitectura moderna, fosse marcado ainda com as imposições de uma pretensa arquitectura nacionalista, há muito imposta pelo regime, à imagem das primeiras casas de renda económica de 45 no exemplo das células I e II pelo Arq. Miguel Jacobetty.

Em todo o caso, nas várias células e Planos de Detalhe apresentavam já na primeira fase, de influência francesa, uma clara visão de complementaridade social: habitação a custos controlados; espaços livres e zonas de equipamentos primários, serviços públicos e comércio, apresentando também projectos-tipo para blocos de habitação que nelas se integravam.

Patente estes fundamentos ainda na primeira proposta, abandonando a caracterização minuciosa do desenho urbano, em detrimento dos novos conceitos que estabeleciam claramente o esquema viário e o zonamento de preenchimento menos especificado; posteriormente o bloco de habitação colectiva em altura integra a manifestação de uma linguagem moderna apoiada nas novas técnicas, resolvendo os problemas da necessidade de habitação na ideia da “rua corredor”, ao sabor da Carta de Atenas e dos cinco postulados de Le Corbusier.

Em todos os casos o Bairro de Alvalade constitui-se como paradigma do urbanismo Português: demonstra-se o claro interesse expresso em fazer cidade, perceptível numa ideia de conjunto em criar motivação ao modo de vida consentâneos com os aspectos sociológicos ao tempo, a revisitar várias vezes como lição do desejo da arquitectura experimentar as novas soluções urbanísticas e assim fazer vivenciar a possibilidade da abertura do poder Público e das suas Instituições à defesa quer do interesse colectivo do espaço colectivo, quer da coesão social, visando a concepção de modelos para o planeamento das áreas de expansão das cidades.
Face ao crescimento que a cidade nos revela actualmente, o esquecimento a que foram votadas as experiências urbanas de grande qualidade como as do Bairro de Alvalade conduziram ao preterido e à falta de qualidade reveladas no primarismo de conceitos que traduz a fraca formação técnica daqueles que efectivamente construiriam as cidades: quer renegando a validade em assimilar o conceito de projecto-tipo, quer renegando os conceitos urbanísticos no desenvolvimento dos programas de planeamento dos destinos das cidades. E este esquecimento é de uma enorme gravidade para todos nós.

sexta-feira, abril 13, 2007

134 - Cidades desejadas e seguras (I): o problema da habitação tornou-se o problema da cidade – artigo de António Baptista Coelho - Infohabitar 134

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( palavras chave: cidade, segurança urbana, urbanismo, cidade habitada, fazer cidade com habitação, arquitectura cívica, humanização, vitalização, periferia, bairros inseguros, bairros perigosos)


Cidades desejadas e seguras (I):

o problema da habitação tornou-se o problema da cidade

António Baptista Coelho

O subtítulo deste artigo é uma frase do Arq.º Luis Fernández-Galiano, retirada de um dos seus excelentes editoriais na revista espanhola “Arquitectura Viva” (n.º 97), expressivamente intitulado, “Habitação sem cidade” (“Vivienda sin ciudad”). Foi aí que ele sintetizou, e muito bem, que “ o problema da habitação se tornou o problema da cidade.”

Fernández-Galiano explicou esta ideia, ao referir que ”durante o século XX, a transformação urbana provocada pela mecanização da agricultura e os fluxos migratórios do campo para a cidade provocaram o chamado «problema da habitação»... No princípio do século XXI, e no contexto do mundo desenvolvido, o alojamento não é já uma preocupação quantitativa ou sanitária, mas sim qualitativa e ambiental: garantidas as dimensões mínimas, a ventilação eficaz e a saudável insolação, a habitação contemporânea padece de mediocridade visual, programas rotineiros e envolventes anorécticas.”



E concluiu salientando que. “A habitação não é hoje um problema que precise de experimentações estéticas ou inovações estilísticas; é um problema urbano, da civitas ou da polis, o que quer dizer, um problema de cidadania e político. Precisamos de mais arquitectura; mas, acima de tudo, precisamos de mais cidade.”



Fig. 01

Aponta-se que o presente texto teve como motivação, mais directa, um excelente artigo saído em 7 de Abril de 2007, no semanário Expresso, sobre as condições de insegurança urbana num número significativo de “bairros sociais” e de outros bairros citadinos ou periféricos na Área Metropolitana de Lisboa; o artigo é de Valentina Marcelino e Jorge Simão e intitula-se “Alto risco na zona oriental - Número de bairros violentos sobe 50%”, e logo em destaque o artigo salienta: “Autoridades evitam a força face ao aumento do crime violento. Preferem estudar os bairros e criar vínculos”.

Importa referir, desde já, que a ideia que baseou o presente texto foi desenvolver, a partir de algumas ideias presentes naquele artigo, uma aproximação muito global e eficazmente informal aos aspectos de segurança e insegurança urbana. No entanto há que confessar que, à medida da elaboração foi este mesmo texto “fugindo” das matérias mais específicas da segurança urbana, às quais havemos de voltar em breve e de forma atenta e o mais possível completa, para uma perspectiva que encara a cidade como sítio que desejavelmente proporciona o espaço mais adequado e mais naturalmente protector das actividades humanas e designadamente daquelas que mais exigem em termos de adequadas condições de exercício; como será a possibilidade da fácil escolha entre o convívio e a privacidade e entre a animação e o sossego.

E diria mesmo que é este livre e agradável arbítrio, caldeado com a riqueza cultural, a diversidade da imagem urbana e a existência de empatia entre espaços urbanos habitados e os seus habitantes, que constituem um conjunto de condições de vida diária fortemente propiciadas por partes de cidades naturalmente seguras, porque agradavelmente envolventes, conviviais, vivas e apropriadas.



Fig. 02

Não é, no entanto, possível deixar de sublinhar, que, infelizmente, em Portugal, os aspectos quantitativos associáveis à qualidade do habitar e à qualidade da cidade não estão ainda resolvidos, seja porque os velhos problemas, como os “bairros de barracas” ainda persistem pontualmente, seja porque outros problemas estão aí bem presentes; alguns deles velhos, como a sobre-ocupação e a vetustez de partes do parque habitacional e outros novos e associados, por exemplo, seja à imigração, seja à “nova” pobreza urbana, que tem muitas facetas, mas onde se salientam os sem-abrigo. E como se verá, ainda que sinteticamente, muitos destes aspectos têm ligações fortes com as questões da cidade bem, ou mal, habitada, bem, ou mal, desenhada.

E talvez que a questão fundamental da cidade de hoje esteja aqui nestas questões do melhor ou pior habitar, portanto da maior ou menor vitalidade urbana – e atente-se que se fala de vida urbana não de bairros-dormitório –, e do melhor ou pior desenho do habitar – e sublinha-se que aqui desenho se refere à concepção arquitectónica num sentido verdadeiro, portanto amplo e bem fundamentado.

Um outro aspecto a ter em conta como base de todas estas reflexões é a questão de para quem se faz cidade e habitação. Uma questão que parece evidente, mas que perde essa evidência quando visitamos conjuntos ditos residenciais onde o automóvel é rei e onde, por vezes, existe um quase total divórcio entre o interior do conjunto e a sua envolvente “dita” urbana. São questões fundamentais estas e que devem ter resposta, pois assim como não se fazem habitações com as características de arquivos e arrumações industriais, porque aí vivem pessoas, com as suas necessidades e os seus hábitos; também o espaço público não pode ser feito para o veículo e para a simples passagem de infraestruturas, tem de ser feito com, pelo menos, dois objectivos fundamentais:

(i) O espaço público tem de ser feito para a pessoa a pé, para a pessoa a pé que precisa de ser devidamente apoiada em termos funcionais, acompanhada e motivada em termos urbanos, estrategicamente abrigada do sol a mais e da chuva, estrategicamente relacionada com as outras pessoas e com as actividades urbanas, e estrategicamente orientada e dotada de condições de visibilidade de segurança e de auto-controlo espacial – e atenção que o perfil do cidadão tem de ser pensado e realizado à escala da criança e do velho; caso contrário para quem é que se está a fazer cidade?



Fig. 03

(ii) E o espaço público tem também de ser feito para a cidade, para a cidade como construção comum e representativa da nossa cultura e aqui se irá exigir mais, mais desenho, mais qualidade, mais trabalho, mais imaginação, mais cuidado, pois a cidade é memória e será memória e ninguém pode viver sem memória ou com uma memória corrompida ou deturpada.



Fig. 04

Dito isto, afirma-se que construir um espaço público como esse, um espaço de vivência de uma cidade que seja como que uma grande casa, da qual gradualmente vamos conhecendo os mais pequenos recantos e os aspectos mais sugestivos e os pormenores mais subtis e marcantes, uma grande casa feita para uma grande diversidade de habitantes e de usos, é uma construção que exige uma elevada qualidade de concepção; e tal como referiu Charles Moore, em um dos seus textos, estamos ainda a procurar garantir a esta escala urbana habitada a qualidade que já atingimos no edifício isolado.; são, realmente, em muito maior número os “grandes” edifícios do que os “grandes” conjuntos urbanos, e são estes os grandes protagonistas da cena urbana, não tenhamos dúvidas.

Mas dá vontade de dizer e mesmo de repetir e de sublinhar que uma tal procura da qualidade à escala urbana habitada tem de começar a chegar, obrigatoriamente, hoje em dia, e de forma sistemática, a resultados claramente positivos, pois não é mais possível continuar a destruir tanto do que outrora foi bem feito e a construir tanto e tão mal feito, e designadamente a esta fundamental escala urbana vitalizadora de relações coesas de proximidade e de relações estruturantes de uma cidade viva.

Para tal é muito urgente e necessário que a arquitectura seja feita por arquitectos, mas tal condição não chega para o referido objectivo; há que exigir, também aos arquitectos, que a qualidade da sua arquitectura tenha verdadeira valia urbana e humana, há que exigir uma verdadeira qualidade de desenho pois queremos voltar a fazer cidade culturalmente fundamentada, humanizada e atraente, uma cidade que nos orgulhe e onde gostemos realmente de viver e conviver.



FIg. 05

Lembremos, agora, que o fazer cidade viva que apoie funcionalmente, estimule e proteja o peão é fazer cidade mais segura, seja nas questões ligadas à urgente negação das vias que são pistas de automóveis – e depois de o serem, então, marcam-se com sinais de controlo da velocidade e outras medidas de redução da mesma -, seja na criação de partes de cidade com continuidade urbana e de actividades, estruturadas por percursos agradáveis, memorizáveis, acompanhados por actividades e funções que vão polarizando as suas sequências de espaços.

E só assim teremos cidades que, física, funcional e ambientalmente, propiciem segurança urbana; uma segurança que mais do que sentida directamente, estará, naturalmente embebida num meio urbano que nos satisfaz e nos atrai e que, consequentemente, é factor de uso mais intenso do espaço público, sendo assim factor de convívio e de potencial de ajuda mútua – condições estas também fundamentais para a segurança urbana, mas antes disso, e na base disso, para a construção de uma verdadeira cidade do encontro e da comunidade.

Afinal, e tal como referiu Jane Jacobs (“Morte e vida das grandes cidades”, 1961), há que ter em conta que “a ordem pública não é mantida basicamente pela polícia... É mantida fundamentalmente pela rede intrincada de controlos e padrões de comportamento espontâneos… e o problema da insegurança não pode ser solucionado pela dispersão das pessoas... Numa rua movimentada consegue-se garantir segurança; numa rua deserta não…”

Que isto não seja entendido como a negação da importância dos serviços de segurança, mas estes mesmos serviços têm de avançar e têm avançado no sentido da acção de proximidade e do apoio específico e diário à qualidade de vida; temas a que voltaremos em próximos artigos e a propósito lembremos que já no referido artigo no Expresso se indicava que as “autoridades evitam a força ... Preferem estudar os bairros e criar vínculos.”



Fig. 06

É, sim, fundamental que as sábias e pioneiras palavras de Jane Jacobs sejam literalmente entendidas, como relevadoras da vital importância de uma cidade com continuidades urbanas e com regularidades urbanas “correntes”, como são (por exemplo) os enfiamentos e as sequências de ruas, as esquinas habitadas, as correntezas de edifícios com entradas bem ligadas à rua e bem assinaladas e apropriadas, as montras de lojas atraentes e regularmente distribuídas, as pracetas acolhedoras que integram pequenas esplanadas, as excelentes galerias comerciais que tornam os troços citadinos mais coesos, e, naturalmente, uma escala urbana que privilegie edifícios não muito altos nem muito grandes, capazes de proporcionarem muitos desses acontecimentos urbanos vitalizadores e muitas janelas de habitações não muito longe do que se passa na rua.



Fig. 07

Pelo contrário, se pensarmos na negação de muitos desses aspectos de forma e função urbana, deixamos de ter cidade com continuidades públicas, e até por vezes deixamos de ter ruas minimamente coesas, e deixamos de ter esquinas que marquem ritmos e funções de percursos, e assim, o pouco comércio que aí tentará sobreviver, pode ir morrendo, instalando-se uma espiral de desvitalização e de abandono do espaço de uso público; e aí, em “ruas” desertas, não é possível garantir segurança, e, mesmo antes disso, não é possível proporcionar conforto e gosto de habitar, porque antes da insegurança e em parte da sua génese está o desamor pelo espaço público e pelo sítio que se habita, afinal defendemos muito mais, ou só defendemos, aquilo de que gostamos, aquilo de que nos apropriamos.

Assim voltamos ao tema “nuclear” deste artigo: “o problema da habitação tornou-se o problema da cidade” e, muito provavelmente, o problema da insegurança no habitar tornou-se no problema da insegurança na cidade. Uma insegurança no habitar que radica também em condições de habitar e de vida urbana pouco humanizadas, pouco ligadas ao que a cidade pode e deve proporcionar de positivo e de diversidade funcional e cultural. E acresce, hoje em dia, a esta problemática que os principais problemas da cidade de hoje são os das megacidades, matéria pertinente que também fica para outros artigos, mas, sobre a qual, desde já, se sublinham as virtualidades das vizinhanças de proximidade e dos pequenos conjuntos urbanos como elementos de manutenção da escala humana e de dinamização estratégica e reforço da coesão, também, nas grandes urbes.



Fig. 08

Em toda esta matéria não devemos nunca considerar de forma menos atenta e adequada a questão real da insegurança, tal como ela é sentida, “na pele”, infelizmente, em tantos casos que, depois, surgem na comunicação social, por exemplo em artigos como o de Henrique Machado, no Correio da Manhã de 6 de Março de 2005, onde sob as palavras “Bairros de crime”, o jornalista refere que eles “fazem lembrar territórios sem lei, onde mandam os senhores do crime que trazem em pânico moradores que ainda resistem à marginalidade.”

E há, também, que reflectir sobre os parâmetros que baseiam a construção das listagens dos bairros “perigosos”, onde se conjugam, por exemplo (caso do estudo referido pelo artigo que saiu no Expresso), “condicionantes arquitectónicas e densidade populacional”, com “número de residentes com antecedentes criminais, número de casos de desordem pública, número de agressões a elementos policiais e número de casos de crimes praticados por residentes fora do bairro”. E há que reflcetir sobre estas matérias, porque se considera que, na base de tudo está, evidentemente, o desenho urbano e habitacional ou, frequentemente, o não-desenho – no sentido de concepção urbana integrada (neste caso desintegrada) – que marca tantos dormitórios suburbanos. E um não-desenho ao qual se associa uma não-cidade em termos sociais, porque socioculturalmente homogénea e desintegrada.

E aqui é já possível afirmar que seria muito acertado realizar um estudo prático deste universo da nossa vergonha urbana e para ele tentar e aplicar, de forma expedita, as melhores receitas para lhes aumentar urgentemente a qualidade de vida e naturalmente lhes reduzir a insegurança e a intolerância; e um tal estudo também ajudaria a não repetir e, provavelmente, a remediar os erros urbanísticos, como ainda vai acontecendo, embora menos frequentemente do que aconteceu, entre nós, designadamente, no período entre o início dos anos 70 e meados dos anos 80.

Há que dizer, de uma vez, que muitos conjuntos de edifícios onde muitas famílias e pessoas isoladas vivem, em periferias citadinas sem vida, não são mais do que “edificação habitacional”, não são nem cidades, nem partes de cidade, nem casas, nem partes de casas. São elementos humana, citadina e ambientalmente negativos com dimensão excessiva, são tipos de edifícios por vezes inteiramente inadequados a quem lá habita – quando são “tipos” de edifícios e não apenas construções com uso habitacional –, são espaços exteriores pouco acabados, mal acabados ou mesmo quase inexistentes em termos de funções e de forma pública, e são afinal sítios, que não são sítios, sem identidade e sem cidade, seja por falta de continuidade urbana, seja por falta de transportes públicos, seja por falta de desenho (concepção); seja, finalmente, por vezes, por falta de tudo isto, e, tantas vezes, numa má mistura física tornada realmente patológica, quando contém uma mistura social que nada tem da normal e rica diversidade sociocultural da cidade.

Lembram-se as impossíveis misturas habitacionais que só integram grupos socioculturais com diversos tipos de carências e de problemas de integração, como se uma verdadeira parte de cidade pudesse viver assim, truncada de parte do seu sangue. E se tudo aquilo que aqui não há é essencial para que a cidade se faça com habitantes e habitação, aqui não se faz cidade, e na ausência de cidade quem lá mora fecha-se em casa, o último reduto, enquanto as ruas “fazem lembrar territórios sem lei”.

Conclui-se, como se começou, com palavras de Luís Fernandez-Galiano: “A habitação ... é um problema urbano, da civitas ou da polis, isto quer dizer, de cidadania e político. Precisamos de mais arquitectura; mas acima de tudo precisamos de mais cidade.”



Fig. 09

Em próximos artigos desta série, estruturada pelo tema “o problema da habitação tornou-se o problema da cidade”, serão considerados, entre outros, os aspectos de urgência e de complexidade imbricados nestas matérias da negação social da “não-cidade” e da insegurança de que essa não-cidade é sítio próprio; e desde já se afirma que, evidentemente, o ambiente físico e arquitectónico é apenas um dos factores aqui em jogo, mas, no entanto, é em casas com paredes de “pedra e cal” e em ruas com correntezas de edifícios com janelas reais que se vive e se trabalha, e, portanto, será sempre do quadro físico que se terá de partir e ao quadro físico que se terá de chegar nesta urgente e pacífica batalha.

Ao contrário do que é já um hábito que se acarinha no Infohabitar, as imagens que ilustram o corpo deste artigo não foram especificamente identificadas, quer relativamente aos sítios “visitados”, quer relativamente aos respectivos autores projectistas. Pretendeu-se desta forma chamar mais a atenção para o fio de pensamentos no texto e menos para tais referências. No entanto escolheram-se, premeditadamente, apenas bons exemplos de habitação que faz cidade e de cidade viva e qualificada, portanto amada e tendencialmente segura, exemplos estes apurados em diversos bairros de Lisboa, entre os quais se destacam os sempre incontornáveis Alvalade e Campo de Ourique e os também sempre incontornáveis e mais recentes Tellheiras e o “velho” excelente Alto do Restelo da EPUL.



Fig. 10

Como se verá, em próximos artigos desta série sobre os tão imbricados problemas da habitação e da cidade, mais do que de uma tipologia habitacional e urbana específica, a qualidade do habitar uma cidade viva depende, numa primeira linha, da verdadeira e bem fundamentada qualificação do seu desenho, numa segunda linha, de preocupações específicas com aspectos de definição e responsabilização territorial e, em linhas paralelas, depende de se visar uma verdadeira parte de cidade convivial e com diversidade sociocultural, aspectos estes que, por sua vez, tem de interagir com a concepção da forma-função. Mas estes são aspectos que terão de ficar para próximos artigos.
Lisboa, Encarnação, 11 de Abril de 2006


Edição: José Baptista Coelho