quinta-feira, maio 31, 2007

142 - Arquitectura da habitação social portuguesa recente – resenha de Sheila Walbe Ornstein - Infohabitar 142

 - Infohabitar 142

Nota editorial:

Numa singela e informal referência à muito próxima transformação do Instituto Nacional de Habitação (INH) em Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), entidade esta à qual se desejam as maiores felicidades, edita-se no Infohabitar uma resenha referida a um livro recente (editado em 2006 e apenas disponível através de solicitação específica dirigida ao INH), que integra uma síntese técnica da actividade de promoção de habitação levada a cabo pelo INH durante os seus primeiros 20 anos de funcionamento, entre 1984 e 2004, num período total de actividade que atingiu os 23 anos em Maio de 2007.

A resenha que se apresenta, em seguida, foi recentemente editada no portal de arquitectura Vitruvius, um excelente “
periódico online mensal, técnico-científico, com artigos sobre arquitetura, urbanismo, arte e cultura”, que, aliás, é já há bastante tempo devidamente divulgado no Infohabitar – na margem da revista e sob o título geral “Blogs e Sites com interesse para «o Habitar»”.

O endereço electrónico geral do portal Vitruvius é :
http://www.vitruvius.com.br/


O endereço electrónico da secção de resenhas do referido portal é: http://www.vitruvius.com.br/resenhas/resenhas.asp
A referida resenha é assinada por uma boa amiga e colaboradora do
Infohabitar, a Profª. Arq.ª Sheila Walbe Ornstein, que foi contactada no sentido desta edição, que, com o seu consentimento, foi um pouco modificada relativamente à versão original, designadamente, no que se refere à integração de um maior número de figuras.

Sheila Walbe Ornstein, é arquitecta e urbanista, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Especialista em Avaliação Pós-Ocupação (APO) do Ambiente Construído e nas Relações Ambiente Construído – Comportamento Humano (RACs).

A edição do Infohabitar



Fig. 00: capa do livro “INH, 1984-2004 – 20 anos a promover a construção de habitação social”

Uma retrospectiva do que há de melhor na arquitetura da habitação social portuguesa recente, Resenha de Sheila Walbe Ornstein – elaborada para o portal Vitruvius


O Instituto Nacional de Habitação (INH) e o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) de Portugal, nos brindam com esta impecável publicação sobre a produção habitacional de caráter social promovida nos últimos 20 anos em Portugal, incluindo Açores e Ilha de Madeira. Até o momento, tinha-se bom conhecimento sobre as características e as qualidades da arquitetura habitacional de interesse social promovida no país na primeira metade do século XX, passando pelo período de ditadura, apresentando uma boa “arquitetura habitacional moderna popular” nos chamados “anos verdes”.

Todavia, em que pese os meritórios esforços do Núcleo de Arquitectura e Urbanismo (NAU) do LNEC neste sentido, não havia ainda uma obra que revelasse de modo integrado, organizado e crítico, muitas das boas práticas de projeto, construção e uso existentes no país, sobretudo no período de abertura democrática, em que Portugal passa a fazer parte da Comunidade Européia. O trabalho incansável do arquiteto e pesquisador do LNEC, Dr. António Baptista Coelho, autor desta publicação, fez com que a organização e a sistematização desta produção, para efeito de divulgação aos estudiosos, se tornasse uma realidade. Coelho, discípulo de Nuno Portas e de Reis Cabrita, é o atual chefe do NAU-LNEC e profundo conhecedor dos espaços domésticos, suas qualidades arquitetônicas, suas relações com o espaço urbano. Sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, configura-se em testemunha documental desta manifestação (1).

O livro 1984-2004 – 20 anos a promover a construção de habitação social

trata-se na verdade de uma publicação comemorativa dos 20 anos de criação do INH o qual tem entre suas atribuições “ preparar o plano nacional de habitação e os planos anuais e plurianuais de investimento no setor” talvez assemelhado ao nosso extinto Banco Nacional da Habitação (BNH). Investe recursos próprios em ações voltadas à promoção de habitações de interesse social (ou Habitações a Custos Controlado HCC, como são chamadas) nas modalidades municipais, cooperativas e empresas privadas. Nesta linha de financiamento, promoveu entre 1984 e 2004 mais de 126 mil unidades, sendo cerca de 47% para aluguéis e o restante para venda. Também apóia, desde 1993, Programas de Realojamento (o atual PER), os quais totalizaram no mesmo período, aproximadamente 60 mil unidades habitacionais.


Fig. 01: promoção da Cooperativa Coophecave, em Castro Verde; 224 fogos, 1991 (e anos anteriores); projectistas coordenadores Arq. Nuno Portas, Arq.ª Manuela Fazenda e Arq.ª Isabel Plácido (Investigadora do NAU).
A obra ora resenhada, embora datada, inicia-se com uma reflexão crítica sobre a promoção e a produção da habitação de interesse social em Portugal, no século XX, antes da criação do INH, destacando, por exemplo, as práticas das Câmaras Municipais de Lisboa e do Porto, tais como – dentre outros inúmeros exemplos – no caso de Lisboa, o Bairro Social de Alvalade e os Olivais Norte ou no caso do Porto, o Ramalde ou o Bom Sucesso.

Posteriormente, o livro descreve a iniciativa louvável do chamado “Prêmio INH”, realizado desde 1989, cujo júri é constituído por especialistas – arquitetos e engenheiros – no tema, é realizado anualmente e tem como critérios, definidos na página 84:

“ – A salvaguarda e valorização da qualidade da paisagem global;

– O modelo e a integração urbanística com a compreensão da aptidão dos espaços e dos valores naturais e culturais existentes;

– A imagem e a organização arquitetónica;

– As técnicas e a racionalidade construtiva, integrando valores de caracterização local e aplicando soluções, tecnologias e materiais amigos do ambiente que reduzem o consumo de energia;

– A compatibilização das instalações e equipamentos;

– A integração quando for caso disso, de equipamento de exterior de desporto e de lazer atendendo a todas as classes etárias;

– A apropriação pelos utilizadores (usuários, no Brasil), quer no interior quer no exterior dos edifícios.”

O arquiteto Baptista Coelho, tem participado ativamente das atividades do Prêmio INH, o qual se caracteriza não apenas como uma premiação “tradicional” para projetos de arquitetura, mas envolve análises de projeto e visitas ao conjunto construído e em uso, quando o júri tem a oportunidade do contato com os projetistas coordenadores, os promotores, os construtores e representantes de moradores.

Tais procedimentos aproximam esta modalidade de premiação, da Avaliação Pós-Ocupação (APO) pois não prescinde do contato com a realidade física e com os usuários finais. Certamente, as preocupações com a qualidade arquitetônica e o rigor quanto à obrigatoriedade da correta inserção do conjunto habitacional na malha urbana e dos acabamentos definitivos dos espaços públicos integrados ao conjunto de HCCs, Coelho incorporou dos resultados das pesquisas sobre habitação social realizadas no NAU-LNEC (2).

À experiência do NAU-LNEC (3) pode-se somar as pesquisas aplicadas em APO e os estudos voltados à análise de projetos arquitetônicos e seus aspectos funcionais a partir da sintaxe espacial, promovidos pelo Departamento de Engenharia Civil e Arquitetura do Instituto Técnico de Lisboa (4) e os checklists associados a escalas de valores, desenvolvidos pelo Centro Português de Design (5).


Fig. 02: promoção da Câmara Municipal de Matosinhos; 376 fogos, em Guifões, Sendim, 1998; projectista coordenador Arq. Luís Miranda.
O INH convida todos os anos os agentes envolvidos com a HCC cujos empreendimentos foram concluídos naquele ano, a se candidatarem e a Premiação ocorre no ano subseqüente.

No período 1989 a 2004 foram visitados por júris com esta finalidade mais de 500 conjuntos habitacionais, representando, conforme destaca Coelho, cerca de 30% da promoção financiada em cada ano.

Os premiados – muitos deles passíveis de leitura na publicação em questão, a partir de fichas técnicas contendo plantas, cortes, fotos dos empreendimentos e detalhes – podem ser apreciados nas publicações específicas realizadas anualmente pelo INH. Estas apreciações comparativas e de certo modo, competitivas, incluindo as análises e os comentários críticos dos membros do júri, têm auxiliado no incremento dos atributos arquitetônicos e urbanísticos dos empreendimentos que se sucedem, voltados à “nova” habitação social portuguesa.

A fotografia que encabeça esta resenha e todas as outras que a ilustram são exemplos destes conjuntos de HCCs recentemente apoiados pelo Estado português e visualizados em profusão no trabalho de Coelho.

O livro termina, apoiado em boa bibliografia sobre habitação social recente em Portugal e outros países europeus e também com um texto que demonstra de que forma as pesquisas aplicadas realizadas desde a década de 60 no hoje NAU-LNEC puderam impactar efetivamente a concepção, o projeto, a construção e o uso de HCCs, no caso português. Neste capítulo são abordados tópicos importantes como a “qualidade arquitetônica e a satisfação residencial”, as “ tipologias, modos de vida e variedade de programas de vizinhança próxima” e por fim, como “qualificar e humanizar a habitação”.

Nesta obra, um verdadeiro guia sobre as práticas da habitação portuguesa, a ser utilizado como livro texto em disciplinas de graduação e de pós-graduação em escolas de arquitetura e urbanismo, voltadas ao estudo da habitação social e também por profissionais que atuam nestes tipos de empreendimentos, pode-se perceber uma verdadeira preocupação com a moradia digna e que atende as necessidades dos seus usuários.


Fig. 03: promoção da Cooperativa NHC, Nova Habitação Cooperativa, no Plano Integrado do Zambujal, Amadora; 68 fogos, 2003; projectista coordenador Arq. Carlos Carvalho.
É possível se verificar in situ o uso de critérios tais como: escala humana, inserção na malha urbana, harmonia entre elementos urbanísticos, paisagísticos e arquitetônicos, diversidade de unidades habitacionais (1 a 4 dormitórios, no mesmo bloco, em função do tamanho da família ocupante), respeito aos aspectos culturais e aos modos de vida dos moradores, diversidades de blocos de edifícios – em fita, mais horizontalizados ou mais verticalizados, contemplando uso comercial no térreo ou equipamentos sociais como escolas, pequenos serviços etc- gerando paisagens diferenciadas e dinâmicas. Impressiona ainda o grande número de arquitetos, construtores e de promotores cooperativados, municipais e privados envolvidos neste processo (listados ao final do volume) o que pode sugerir uma ampla participação de agentes diferenciados da construção civil portuguesa.

Evidentemente o livro publicado pelo INH não deve ser entendido pelos estudiosos como uma receita sem equívocos para a solução definitiva da questão habitacional, mas certamente oferece pistas consistentes neste sentido. Ou seja, merece um olhar reflexivo e atento à luz das experiências brasileiras recentes voltadas a habitação social, no que tange aos seus aspectos positivos e aos seus aspectos negativos.

Por último, sem tirar o brilho desta portentosa edição e desde já pensando numa próxima, que virá, sugiro a inclusão de alguns mapas de Portugal localizando por tipo de promoção, quantidade de unidades habitacionais e, talvez por tipologia, os conjuntos nos distintos municípios.

Notas
(1) COELHO, António Baptista. Qualidade Arquitectónica Residencial. Rumos e factores de análise. Lisboa, Portugal: Laboratório Nacional de Engenharia Civil, 2000. 475p. [Informação Técnica Arquitectura ITA 8].

(2) COELHO, António Baptista; PEDRO, João Branco. Do Bairro e da Vizinhança à Habitação. Tipologias e caracterização dos níveis físicos residenciais. Lisboa, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, 1998. [Informação Técnica Arquitectura ITA 2].

(3) É oportuno recomendar a consulta ao http://infohabitar.blogspot.com/ denominado Infohabitar – A Revista do Grupo Habitar, gerenciada pela APPQH – Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional, gerenciado por Baptista Coelho. Nele é possível encontrar textos e imagens abrangendo não só o tema da habitação social portuguesa, mas também um amplo debate sobre a requalificação dos espaços urbanos, notadamente aqueles centrais e de valor histórico.

(4) HEITOR, Teresa Valsassina. A vulnerabilidade do espaço em Chelas. Uma abordagem sintáctica. Porto, Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2001.

(5) Centro Português de Design. Do Projeto ao Objecto. Manual de boas práticas de mobiliário urbano em centros históricos. Lisboa, Portugal, Centro Português de Design, 2005, 2ª edição.

Notas editoriais:
Como foi devidamente salientado, no início desta edição, esta resenha foi elaborada para o Portal Vitruvius, e editada neste Portal, em Maio de 2006, com as seguintes referências:

- Resenha 166 / Maio 2007
- Livro resenhado:COELHO, António Baptista. 1984-2004. 20 anos a promover a construção da habitação social. Edição comemorativa do INH – Instituto Nacional de Habitação. Lisboa, INH / Laboratório Nacional de Engenharia Civil, 2006. 455 páginas, 21,0 x 29,7 cm, ilustrado, capa dura, bilíngüe português – inglês. Depósito legal: 242704/06 .

Para consulta directa da mesma resenha junta-se o respectivo link:
http://www.vitruvius.com.br/resenhas/textos/resenha166.asp


As figuras que acompanham o texto foram escolhidas pela edição do Infohabitar e apenas se destinam a ilustrar o texto de uma forma muito genérica e aleatória.

Próxima edição do Infohabitar:
Na próxima edição do nosso Infohabitar e ainda numa referência à transformação do Instituto Nacional de Habitação (INH) em Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), será editado o artigo intitulado “Vinte anos de habitação de interesse social em Portugal, de 1984 a 2004”, elaborado com base na intervenção de apresentação do livro com título idêntico, editado pelo INH e desenvolvido pelo LNEC em estreita colaboração com um amplo conjunto de técnicos do INH; a referida apresentação teve lugar em Lisboa, na Torre do Tombo, em 26 de Maio de 2006.

Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 31 de Maio de 2007
Edição de José Romana Baptista Coelho

sexta-feira, maio 25, 2007

141 - Cidade e habitação apoiadas (II) - artigo de António Baptista Coelho - Infohabitar 141

 - Infohabitar 141

Cidade e habitação apoiadas (II): “Casas individualizadas em alternativa às instituições de acolhimento”, sobre uma Conferência da AEIPS, Associação para o Estudo e Integração Psicossocial


Parte I: introdução e enquadramento à habitação apoiada


Na continuidade da temática da “Cidade e Habitação Apoiadas”, este artigo constitui uma primeira abordagem específica a uma das facetas da matéria hoje em dia já crítica, e “amanhã” crucial, da “habitação apoiada” e tem uma dupla justificação, que tem a ver seja com a referida importância do tema e sua relevância e diversidade de facetas, todas elas bem integradas na temática do habitar, temática esta que estudo no LNEC já há cerca de 25 anos, e que é estudada no LNEC quase há 40 anos, seja no interesse em se sublinharem algumas notas retiradas de uma recente e extremamente interessante conferência internacional sobre a temática da “habitação apoiada”, neste caso mais direccionada para uma perspectiva assistencialista.

Desde já se salienta o carácter pessoal que têm estas notas, bem como a eventual ocorrência de pequenos lapsos ou situações de deficiente explanação das ideias apresentadas na Conferência referida, situações pelas quais se apresenta o essencial e prévio pedido de desculpas, ao qual se associa a plena disponibilidade do Infohabitar para a publicação de artigos que esclareçam e desenvolvam essas ideias, bem como toda esta urgente temática – e para tal bastará um contacto com o autor deste texto ( abc.infohabitar@gmail.com e abc@lnec.pt ).

A conferência intitulou-se “Habitação apoiada - Casas individualizadas em alternativa às instituições de acolhimento, hospitais psiquiátricos, sem abrigo e outras situações de exclusão social”, foi promovida pela Associação para o Estudo e Integração Psicossocial (AEIPS), http://www.aeips.pt/, que comemorou 20 anos de actividade em 2007, e teve lugar em 14 de Março de 2007 na Fundação Calouste Gulbenkian, com apoios da própria FCG, da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e do British Council.


Fig. 01: Lisboa, Alfama.

Desde já lembra-se que, tal como foi apontado no primeiro artigo desta série, a temática da “habitação apoiada” constitui um prolongamento natural da temática do habitação corrente, podendo mesmo afirmar-se que não haverá habitação corrente capaz de “viver” e fazer viver com verdadeira qualidade residencial e urbana, se não estiver “apoiada” em, e por sua vez se não “apoiar”, variados elementos urbanos e ambientais com variadas naturezas – ex., física, social, paisagística, activa.

É assim que podemos afirmar que se vivemos em espaços habitacionais verdadeiramente qualificados, vivemos em habitação apoiada pela cidade e em habitação que apoia a cidade, e esta é uma forma de desmistificar, muito positivamente, a “habitação (mais) apoiada”, abrindo lugar para a sua total integração com a restante habitação e com a cidade; afinal, um desígnio que se impõe e que muito deve “beber” na cidade tradicional, aquela em que o comércio se estende sobre a rua, aquela em que são as próprias portas dos fogos e das lojas que estruturam e vitalizam as ruas, aquelas em que estar em casa é estar perto de poder estar a uma mesa de “café”, aquelas em que estar num jardim é também estar na cidade.


Fig. 02: Lisboa, Alfama.

Tendo-se dito isto e considerando este fundamental novelo de ideias, vai-se, em seguida, fazer, aqui no Infohabitar, uma primeira e muito prática viagem pelos aspectos que devem caracterizar a “habitação (mais) apoiada”, e lembremos, a propósito que o LNEC tem estado e estará envolvido numa acção, promovida pelo Instituto da Segurança Social, de elaboração de Recomendações Técnicas para a construção nova e para a requalificação de diversas valências de equipamentos sociais, entre as quais se destacam, numa primeira linha, os Centros de Dia e os Lares de Idosos.

Parte II: uma nova abordagem da “habitação apoiada”


Desde já se aponta que este artigo não constitui qualquer relato de conteúdos tratados na referida conferência promovida pela Associação para o Estudo e Integração Psicossocial (AEIPS), mas sim usa matérias aí tratadas e aqui apontadas como bases de referência e de partida para o registo de ideias sobre a temática da “habitação apoiada”, seja, neste artigo, numa perspectiva mais direccionada para o apoio a grupos socioculturais com graves carências, seja, em futuros artigos desta mesma série, em perspectivas mais ligadas à consideração da “habitação apoiada” como resposta desejável para uma cada vez maior faixa de população envelhecida, e/ou com diversas carências e problemas específicos, ou, simplesmente, com necessidades e/ou opções específicas de habitar casa e cidade; e será no aprofundamento desta reciprocidade que se poderão resolver muitas das questões que hoje se colocam em termos de falta de vitalidade urbana e de falta de adequação habitacional – considerando aqui a “unidade” fogo/edifício/vizinhança.



Fig. 03: um exemplo da “unidade” fogo/edifício/vizinhança no pequeno bairro de realojamento do Telheiro (44 fogos unifamiliares em bandas cerradas e com pátios), Matosinhos, projecto coordenado por Manuel Correia Fernandes em 2002.

E recorde-se a perspectiva que se pretende inculcar no conjunto destes artigos, que é todos nós vivermos, desejavelmente, em habitação apoiada, designadamente, por uma vida urbana útil e motivadora; só que alguns de nós, hoje, e ainda mais amanhã, precisaremos de mais apoios habitacionais, e assim é fundamental que tais apoios sejam assegurados de forma o mais possível eficaz, sustentável, completa e integrada.

E sobre esta faceta da “habitação apoiada” há que sublinhar, desde já, que ela poderá e deverá proporcionar linhas de desenvolvimento bem ligadas a um reviver da cidade que urge assegurar e a um reviver a vida de cada um a que urge dar atenção nesta sociedade que era a sociedade do lazer – era o que diziam- e que, cada vez mais, é a sociedade da desocupação e até da alienação; e, como se verá, nesta linha de desenvolvimento da muito rica temática da habitação e da cidade apoiadas, há uma forte ligação que é possível desenvolver com a iniciativa cooperativa habitacional e de dinamização de actividades.

Alguns dos novos caminhos de uma “habitação apoiada” (a partir das notas da Conferência da AEIPS)

Considerando, agora, os novos caminhos de uma “habitação apoiada” associada a aspectos exigenciais específicos, vão ser, em seguida, registadas diversas ideias divulgadas na referida conferência intitulada “Habitação apoiada - Casas individualizadas em alternativa às instituições de acolhimento, hospitais psiquiátricos, sem abrigo e outras situações de exclusão social”, promovida pela Associação para o Estudo e Integração Psicossocial (AEIPS), www.aeips.pt, e que teve lugar em 14 de Março de 2007 na Fundação Calouste Gulbenkian, com apoios da própria FCG, da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e do British Council.

Salienta-se que os temas que, em seguida, serão referidos muito devem às seguintes duas intervenções que integraram a referida conferência da AEIPS:

“Supported housing: Theory and research”, por Priscilla Ridgway, PhD – Yale University (EUA).

“Housing first: Ending homelessness and recovering lives for people to live independently”, por Sam Tsemberis, PhD – New York University.

No entanto volta a referir-se que não se fez qualquer relato de conteúdo e que o apontamento das matérias referidas pelos conferencistas é da responsabilidade do autor deste artigo, que aqui registou, naturalmente, a sua “leitura” das matérias comunicadas pelos referidos conferencistas, numa perspectiva de eficaz informalidade e utilidade desta disseminação de ideias.

Parte III: Conferência de Priscilla Ridgway - “Supported housing: Theory and research”


No que se refere às ideias apontadas por Priscilla Ridgway, PhD – Yale University (EUA), na sua intervenção intitulada “Supported housing: Theory and research”, sublinham-se, em seguida, alguns aspectos e em itálico o autor deste artigo integra alguns comentários julgados a propósito.

Considerando a desinstitucionalização de pessoas com diversos problemas se saúde e sociais, acção esta que foi desenvolvida nos EUA há alguns anos, muitas pessoas não conseguiam condições de habitação com autonomia.

E as pessoas precisam de um “lar”, mais do que de um “simples” alojamento, e este mesmo significado de “lar” pode constituir como que uma âncora chave da habitação apoiada. E significa muito poder ter “um lar” depois de se viver na rua ou de se estar institucionalizado.

Ter um lar é ter controlo sobre o seu próprio ambiente de vida, é ligar a luz quando se quer, é escolher o ambiente em que se vive, é ter o seu “kit de identidade”. Muito se passa como que na extensão de cada um de nós e o lar pode e deve ser como que um “estojo” da identidade, que caracteriza e apoia a experiência pessoal e de vida de cada um.





Fig. 04 e Fig. 05: aspectos essenciais de apropriação de um dos fogos de uma intervenção da Câmara Municipal do Funchal (2002); são oito pequenas habitações apoiadas (Habitação a Custo Controlado financiadas pelo INH) do tipo T0 para idosos que vivem sozinhos - projecto da Arq.ª Susana Fernandes.

*Entre habitação e cidade os laços são fortes e mútuos e, tal como referiu Celeste Ramos, num dos seus artigos no Infohabitar, o homem marca a cidade, mas também por ela é marcado; e assim qualquer habitação deveria/deve ser um pouco o “estojo” da identidade de cada um, e qualquer rua ou praceta habitada também o deveria/deve ser.
Todos terem a mesma mobília e os mesmos quadros resulta numa ausência de “sensação de lugar”, numa espécie de não-universo pessoal que não permite nem a orientação no espaço do dia-a-dia, nem uma âncora identitária que nos transporte ao longo do tempo – *e sem lugar de referência até o próprio tempo ganha em crítica relatividade.Dessa forma não há espaço pessoal, as coisas são sempre as mesmas, não há estímulo por exemplo para se convidar alguém, a casa perde o seu papel de espaço de sociabilidade, assim como perde o seu carácter de individualidade, o tal sentido de estojo da personalidade – *e lembremos, já agora, a aplicabilidade desta noção da importância da apropriação e da capacidade identitária também por exemplo na “habitação social” corrente.
E é fundamental tudo aquilo que acentue a possibilidade da sociabilidade e do contacto entre as pessoas e Priscilla Ridgway apontou que nos EUA há instituições em que se exige que se olhe nos olhos dos seus utentes de tempo a tempo.

E, frequentemente, não há também liberdade de apropriação, que também se exerce por exemplo na liberdade de se poderem fazer refeições, e em outras pequenas liberdades domésticas que só num lar têm realmente lugar.

Há reais diferenças entre habitação apoiada (supported) e habitação que apoia (supportive): uma habitação “apoiante” e sustentada. *E uma habitação deste tipo tem estruturalmente muito a ver com uma habitação promovida por uma entidade de apoio mútuo, por exemplo com natureza cooperativa, que proporcione, logo ali depois da porta da casa de cada um e mesmo, se desejado, no interior doméstico, um verdadeiro serviço habitacional, que pode ter variadas valências funcionais e que tem múltiplas valências sociais. E nesta matéria pouco importa a dimensão da casa, pois numa perspectiva como esta uma tal dimensão é fortemente suplantada por esse mesmo serviço habitacional que pode e deve ter inúmeras valências funcionais, culturais e de lazer, tornando-se, assim, o habitar estimulante e socioculturalmente rico, e logo aqui se entendem as vantagens de uma entidade cooperativa com raiz local mas bem articulada e apoiada numa estrutura organizativa eficaz e com um elevado potencial em termos de gestão e de capacidade organizativa.


Fig. 06: o citadino interior de quarteirão da cooperativa Coobital em Faro, onde se integra habitação, comércios conviviais, gestão local, equipamentos de apoio à infância e lazer pedonal – (1991) projecto de Lopes da Costa e José Brito (paisagismo).

A habitação apoiada (HA) tem tido bons resultados relativamente a outras abordagens. São casas correntes, sem pessoal específico, mas com apoios diversos e escolhidos caso a caso. Estimulam a responsabilidade, estimulam mesmo alguma felicidade no habitar, e poupam recursos.

Nos EUA a HA tem apoiado directamente na redução dos sem-abrigo, na redução dos internamentos hospitalares e mesmo na assinalável redução da medicação psiquiátrica. E a propósito desta matéria Priscilla Ridgway salientou a falsidade da ideia de as pessoas quererem morar na rua.

E é fundamental sublinhar que a habitação tem impacto na saúde mental e isto tem muito a ver com os já apontados aspectos do significado e do sentido do lar e com a caracterização de uma habitação que seja mais do que um alojamento estritamente funcional. *Naturalmente esta matéria tem a ver com todo o universo habitacional, e não apenas com a habitação apoiada (HA), mas, provavelmente, aqui, porque se lida, frequentemente, com pessoas muito fragilizadas, este aspecto assume ainda uma muito maior importância; reflexão esta que leva a pensar sobre a sensibilidade de determinadas acções de realojamento, por exemplo, de minorias.
A habitação apoiada reduz significativamente: o número de sem-abrigo; de dias de internamento hospitalar (para metade); e de situações que levam à prisão. E além de tudo isto melhora as condições de saúde, reduzindo a dependência de vícios, reduzindo consumo de fármacos e designadamente de anti-depressivos e promovendo actividades com sentido em termos de utilidade e impacto social, que são fundamentais para um verdadeiro caminho de recuperação pessoal e social.
As casas supportive/apoiantes são preferidas porque associam diversas vantagens pessoais e organizativas, entre as quais se destacam:
  • Disponibilizarem boas condições de privacidade, de liberdade no dia-a-dia e de sentido de pertença e de ligação a uma verdadeira “casa”.
  • Terem custos razoáveis: menores que os ligados à manutenção das pessoas em condição de sem-abrigo e cerca de metade dos ligados a projectos residenciais com equipas próprias.
  • Terem influência muito significativa na redução para cerca de metade dos custos associados a outros programas específicos de integração social.
As casas verdadeiramente supportive/apoiantes exigem, no entanto, uma atenção acrescida e ligada ao apoio social especializado específico e, designadamente, a um apoio específico ao risco do isolamento de cada um na sua casa (o risco do pitfall).
A Habitação Apoiada pode ser, assim, considerada, globalmente, como uma boa prática associada aos seguintes aspectos, *que se consideram como residencial, urbana e socialmente estruturantes:
  • Aplicação do direito de escolha da casa que se deseja (provavelmente enquadrado entre determinados limites).
  • Separação funcional entre casa e serviços de apoio; condição que proporciona seja uma agradável caracterização doméstica e apropriável da casa, seja a maior concentração e especialização dos diversos serviços prestados ao domicílio e fora dele – no entanto há que contar com a facilitação seja da vida doméstica de pessoas muitas delas com limitações funcionais, de mobilidade e de percepção, seja com a facilitação dos referidos serviços domiciliários, seja com o estratégico reforço, mas com a especificidade das tecnologias de informação e comunicação aplicáveis.
  • Desenvolvimento natural da integração social, pois ninguém sabe que uma dada pessoa ou uma dada família é uma pessoa ou família com apoios específicos, é apenas mais um vizinho ou mais uma família vizinha; *o que é excelente em termos de um “anonimato” positivo.
  • Favorecimento de uma excelente relação com um amplo leque de serviços prestados, seja numa perspectiva de voluntariado seja com perfil profissional e de mercado; e sempre numa base de escolha dos serviços que querem ou precisam receber.
Priscilla Ridgway referiu ainda, entre outros aspectos com grande interesse, que se pensava que certas pessoas não tinham capacidade de escolha, não tinham possibilidade de sucesso, e não podiam ter autonomia residencial e de vivência urbana; mas tal não era verdade. E assim a Habitação Apoiada transformou-se numa prova de sucesso para muitas pessoas que, assim todos os dias continuam a partilhar uma vida em comunidade socialmente bem integrada.







Fig. 07, 08, 09 e 10: Vistas gerais e interiores (de uma habitação) de uma promoção da Câmara Municipal do Funchal (2002); oito pequenas habitações apoiadas (Habitação a Custo Controlado financiadas pelo INH) do tipo T0 para idosos que vivem sozinhos, bem integradas na continuidade urbana - projecto da Arq.ª Susana Fernandes em que também se realizou a reabilitação e a reconversão de uma antiga moradia.


Parte IV: Conferência de Sam Tsemberis - “Housing first: Ending homelessness and recovering lives for people to live independently”


No que se refere às ideias apontadas por Sam Tsemberis, PhD – New York University, na sua intervenção intitulada “Housing first: Ending homelessness and recovering lives for people to live independently”, sublinham-se, em seguida, alguns aspectos, e, em itálico, o autor deste artigo integra alguns comentários julgados a propósito.

*Antes de passar a uma síntese informal dos conteúdos apontados por Sam Tsemberis, sublinha-se a própria noção do “housing-first”, “a habitação/casa primeiro”, que se julga ser uma noção que tem grande interesse e actualidade, e que ganha ainda uma importância especial quando associada aos aspectos de caracterização doméstica antes apontados por Priscilla Ridgway e bem patentes no exemplo habitacional no Funchal, que ilustra este texto.
Na fase inicial da sua intervenção Sam Tsemberis esclareceu que as habitações utilizadas nos programas “Housing-first” são apartamentos disseminados por diversas localizações citadinas e arrendados, desenvolvendo-se uma forte separação entre: os aspectos habitacionais; os cuidados de assistência social e de saúde (ex., tratamentos); e o próprio apoio económico. Desta forma, e com esta separação das diversas facetas do apoio, as pessoas são incentivadas a recuperarem o domínio sobre as suas próprias vidas.
Sam Tsemberis, que é director executivo do “Housing-first Programs” apresentou partes do programa “Pathways to Housing”, sublinhou quatro elementos essenciais (i a iv) nos programas de habitação apoiada:
  • Possibilitar a escolha do tipo de “habitação apoiada”.
  • Separar o serviço habitação dos serviços clínicos e assistenciais.
  • Desenvolver serviços orientados para a recuperação.
  • Desenvolver eficácia na prestação dos diversos serviços de apoio.
Em seguida são um pouco desenvolvidos estes quatro elementos, a partir da intervenção de Sam Tsemberis.

(i) Possibilitar a escolha do tipo de “habitação apoiada”


A ideia dos cuidados para a vida desapareceu e, considerando a tendência de desinstitucionalização, há que desenvolver pequenos equipamentos bem integrados e relacionados com o objectivo da prestação de um apoio continuado e sempre presente.

Estes pequenos equipamentos actuarão em parceria urbana e social com o desenvolvimento de programas de “habitação apoiada” disseminada na cidade, havendo que definir adequados critérios de elegibilidade para acesso a essa “habitação apoiada”.

É importante considerar a verdadeira importância da disponibilidade de uma casa como elemento prévio e positivo na reinserção social e mesmo no desenvolvimento de vontades positivas relativamente a tratamentos específicos e, num sentido distinto, importa avaliar e considerar a eficácia dos processos mais correntes de apoio social e clínico, e aqui Tsemberis apontou o caso de uma pessoa com a qual já se teria gasto um milhão de dólares sem êxito em termos da sua recuperação – um caso que deu e dá que pensar.

Sam Tsemberis sublinhou que o desejo dos “consumidores” é terem “a casa primeiro” – designação dos programas “Housing-first” -, querem acesso imediato a uma casa permanente e independente e não querem tratamentos prévios como pré-condição.

O conferencista apontou ainda que deve haver separação entre o risco de interrupção de eventuais tratamentos e o direito da pessoa à habitação, caso contrário quando há problemas eles rapidamente se tornam muito críticos para o dia-a-dia da pessoa.

E associado a este direito básico/“inicial” e específico de habitação, há que apoiar uma verdadeira selecção dos serviços de apoio à habitação, por parte dos respectivos consumidores, e há que aceitar que, nestes programas de “habitação primeiro”, a escolha do consumidor é um processo continuo, e há direito a más escolhas.

Em toda esta matéria Tsemberis salientou a sua natural complexidade e a exigência de uma adequada preparação dos serviços, pois nunca se sabe quem responde bem e há, habitualmente, cerca de um quinto dos “habitantes apoiados” que respondem mal ao processo.

(ii) Separar o serviço habitação dos serviços clínicos e assistenciais


Deve haver separação completa entre o serviço habitacional, o processo habitacional, e os eventuais serviços clínicos e assistenciais prestados aos respectivos habitantes.

Quem, por exemplo, não cumpre um dado programa de tratamentos clínicos não perde, por isso, direito à casa que habita.

Mas, sublinha-se, que para obter “habitação apoiada” e para a manter há que pagar renda e cumprir regras específicas.

Os senhorios (proprietários das casas arrendadas) querem que haja um sistema e/ou uma “agência” que assegure o cumprimento das rendas e que desempenhe o papel de parceiro que o senhorio possa contactar logo que detecte eventuais problemas; e aqui é fundamental a gestão local, que pode obviar a problemas graves por antecipação e por acção imediata. Sendo assim, uma tal capacidade de comunicação, de contacto e de responsabilização evitam, frequentemente, situações extremas de despejo, pois possibilitam a actuação com rapidez face a sintomas e problemas que se podem transformar em crises graves.

*Esta capacidade de gestão local em tempo real, em proximidade e “sensível” pode também aproveitar capacidades locais múltiplas, nos mais variados campos e com ganhos seja para os próprios, seja para o micro-tecido económico local, seja para a apropriação e caracterização de cada sítio. E, naturalmente, esta capacidade de gestão local em tempo real, em proximidade e “sensível” encontra excelentes agentes nas cooperativas de habitação.

*A separação entre serviços habitacionais e assistenciais é, também, como já se apontou atrás, importantíssimo factor de real integração, coesão e adequada diversificação social e urbana.


Afinal é fundamental não saber qual é o “estatuto” social de quem habita, por exemplo, o 2.º direito ou o rés-do-chão esquerdo, se, por exemplo, foi sem-abrigo ou não; e esta forma de actuar e de integração é essencial pois a mudança de estatuto que assim se obtém é positivamente drástica e imediata.

*No entanto, sublinha-se, tal positiva possibilidade tem de ligar-se a uma muito eficaz gestão de proximidade, que vele pelo adequado cumprimentos das regras habitacionais previamente definidas e que se ligam, entre outros aspectos de responsabilidade, à manutenção de boas relações de vizinhança; caso contrário todo este processo ficará rapidamente comprometido, podendo mesmo provocar condições de insegurança reais ou sentimentos de insegurança.

Suplementarmente ou paralelamente ao serviço habitacional há o serviço assistencial, desenvolvido por equipas multidisciplinares de atendimento e apoio multidisciplinar, que, privilegiam o serviço a pessoas com necessidades mais críticas.

Tais serviços estão sediados na comunidade, têm raios de influência específicos, e estão acessíveis também por chamada a partir de cada e numa base de 7 (dias por semana) -24 (horas por dia) – 365 (dias por ano).

A caracterização e o perfil de actuação destas equipas estão ligados ao desempenho das acções mais desejadas pelos respectivos consumidores (“habitantes apoiados”), sendo tais acções especificamente marcadas pela amigabilidade.

(iii) Desenvolver serviços orientados para a recuperação


Os serviços são orientados para a recuperação dos “habitantes apoiados” e são caracterizados por uma perspectiva global de apoio a quem precisa, marcada pela ideia de que, por exemplo, mesmo as pessoas com doenças mentais críticas podem viver vidas independentes na comunidade.

Destaca-se que, ao considerar-se o referido objectivo fundamental da recuperação, os serviços podem ter disponibilidade para apoiarem um número alargado de pessoas, que, em cada caso, deixam de apoiar ou mudam o perfil de apoio, logo que deixa de haver necessidades ou há nelas mudanças significativas.

As bases de actuação de todos os serviços associados à disponibilização de “habitação apoiada” são, designadamente, as seguintes: instilar esperança; oferecer escolha; interiorizar e expressar paciência; oferecer apoio específico, empenhado e recuperador; expressar uma verdadeira atitude de compaixão e de respeito; procurar e estimular capacidades específicas; criar e recriar possibilidades de actuação positiva e de vida diária gratificante.

* E em tudo isto há uma actividade social e económica local que pode ser estimulada ou mesmo criada, e na qual os “habitantes apoiados” podem e devem participar.

(iv) Desenvolver eficácia na prestação dos diversos serviços de apoio


Os programas são desenvolvidos numa base de avaliação e melhoria contínuas e desenvolvem-se, habitualmente, ao longo de períodos alargados (ex., 6 a 12 meses). Há, assim, que contar com esta natural “demora”, mas há que lembrar que as pessoas também entraram em espirais negativas comportamentais não de um dia para o outro.

E tem sempre de haver capacidade efectiva de escolha: de onde ficar; e de participar ou não. Pois só assim as pessoas podem (re)ganhar sentido de respeito próprio e de sentido ou desígnio de vida, e de arbítrio e mesmo de liberdade pessoal e cívica.

Nestes programas há que tirar o máximo partido do voluntariado e da vocação que certas pessoas têm para apoiarem os outros, e há que assegurar uma aliança de parcerias entre as autarquias locais e o voluntariado.

* Nesta matéria da identificação de agentes privilegiados para o desempenho das acções de apoio habitacional e especificamente daquelas que não requerem conhecimentos especializados, há que contar, como já se referiu, com as capacidades das estruturas cooperativas habitacionais, que são já experimentados actores locais bem habituados ao contacto com os moradores. E mesmo ao nível da gestão local e global de tais processos também importa aproveitar a capacidade de gestão instalada das mesmas cooperativas e especificamente daquelas que têm já praticado acções de apoio social diversificado.

Parte IV: (muito) breves notas finais sobre apoiar o habitar


São apenas duas palavras para referir que se pretende reflectir, em próximos artigos desta série sobre “a Cidade e a Habitação Apoiadas”, num quadro muito amplo e muito flexível que associe as perspectivas, já apontadas, de uma habitação apoiada pela cidade e de uma habitação que apoia a cidade, o que é simultaneamente, uma forma de atacar os principais problemas da cidade sem habitação e da habitação sem cidade viva, e, como já se referiu, uma forma de avançar na verdadeira integração, física e social, daquela habitação que tem de ser necessariamente mais apoiada, abrindo lugar para a sua natural ligação com a restante habitação e com a cidade; afinal, desígnios que se impõem e que muito “bebem”, seja na cidade tradicional, seja na boa arquitectura residencial e urbana.

Lisboa, Encarnação/Olivais-Norte, 24 de Maio de 2007
António Baptista Coelho ( abc.infohabitar@gmail.com )

Editado por José Romana Baptista Coelho

quinta-feira, maio 17, 2007

140 - LIBERDADE IDENTIDADE – artigo de Celeste Ramos - Infohabitar 140

 - Infohabitar 140


LIBERDADE IDENTIDADE: História de vida confundida com a história do país


Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do ser

Sophia de Mello Breyner Andresen


Fig. 01

Palavras chave: liberdade-identidade, dignidade, identificação, evolução do ser, criatividade e alegria, responsabilidade, existência, libertação, intencionalidade, sonho, realização – capacidade de pensar – desformatação – auto encontro e auto-realização – consciência – libertação da alma individual e colectiva – inteligência pragmática – inteligência emocional – segurança – dever – formatação – caminho espiritual – países sem fronteiras – a guerra da conquista – a guerra de libertação – versus libertinagem – medo e insegurança – irresponsabilidade – fazer tudo o que apetece – enlouquecimento – ignorância – arrogância – violência e crime à solta individual e colectivo – intolerância – fundamentalismo – xenofobia – fanatismo – desigualdade económica e cultural – policia e justiça ineficazes – comércio clandestino e economia paralela – produção, comércio e indústria alimentar descontrolada e novas doenças individuais e problemas de saúde pública – doenças nas culturas alimentares sem lei nem controle – sistema escolar deficiente ausente de ensino de novas realidades sócio-culturais – enriquecimento ilícito – abandono dos hábitos de leitura – ausência de programa escolar integrado de desporto e cultura – iliteracia individual e colectiva


Penso – vivo olho e recordo como quem pensa como quem sente.

Desde pequenina que fui educada com um determinado alinhamento de comportamentos como se houvesse um “catecismo” que determinava normas e, de temperamento dócil e de pronta obediência, até parecia que a vida corria fácil porque obedecer dava alegria a ambas as partes, contente por cumprir e ter agradado, o que fazia parte do crescimento e desenvolvimento pessoal/colectivo.

Nunca senti falta de liberdade em “casa”, no Colégio ou em outras situações públicas como se a qualidade da memória tivesse a ver exclusivamente com a “idade”.

O crescimento físico acompanhava o crescimento intelectual e ía dando lugar ao desenvolvimento psíquico e emocional derivado também do desenvolvimento da vida social e cultural e até aqui não há novidades para ninguém.

Mas uma vez na universidade sopravam ventos de contestação em Abril de 1962, inéditos no país e até no mundo (pois que é país que sempre em algo foi e continua a ser pioneiro), sobretudo por estarem na origem movimentos estudantis, o que viria culminar no Maio 68 tão badalado.

Mas como não há bela sem senão do lado de lá do atlântico no início dos anos 70, outro movimento começava em S.Francisco, por mais diferentes que já fossem as motivações mas igualmente confinado aos jovens – make love not war/flower power – que seria o início da expansão pelo mundo inteiro não apenas do “amor livre” mas também do uso de droga que destruiria pessoas e mesmo países e daria lugar a outro tipo de guerra que ficou sem controle nacional ou internacional ainda hoje.

Estes movimentos tão leves, e apenas juvenis, radicam com certeza em todos os movimentos de libertação dos homens que por alguma razão se sentem aprisionados no seu viver pessoal e colectivo e, assim, até poderemos remontar à revolta dos escravos de tempos que nos ficam para trás na memória e parcos na informação escolar, e ao movimento das mulheres operárias da indústria têxtil nos Estados Unidos, no virar do século XIX para o XX, que por apenas reivindicarem horário e salário foram queimadas vivas.

Mas voltemos um pouco atrás, mais atrás, especialmente à Revolução Francesa que iria revolucionar o mundo ocidental pois que para entender o presente é necessário ir tão atrás quanto necessário para entender que tempo se vive e de onde vem a semente de revolta que nunca mais ficaria esquecida, porque há sempre um fio condutor da mesma ânsia humana de se libertar da opressão (porque há sempre um opressor) de não importa que tipo.

Resultante da sanguinária revolução francesa e com a tomada da Bastilha em 14 Julho de 1789, é promulgada pela primeira vez a Declaração dos Direitos do Homem em 27 Agosto do mesmo ano; ano em que se inicia a grande revolução social com o fim dos privilégios da nobreza e da Igreja francesas, começando a esboçar-se e a implantar-se os direitos dos homens e a construção das novas sociedades. Ponto de viragem irreversível para o nascimento da sociedade contemporânea influenciada pelas ideias do Iluminismo e a independência americana (1776), tendo sido abolida a escravatura e os direitos feudais proclamando-se os princípios universais de Liberdade, Igualdade, Fraternidade, por mais guerras e convulsões sociais que se lhe seguissem, mas que construíram os países tal qual foram até à I Guerra Mundial, representando o primeiro passo para o igualitarismo.



Fig. 02

No que respeita ao nosso País, ele também esteve envolvido nas três Invasões Peninsulares por Napoleão pois que Junot entrou em Espanha em 1807 e chegou a Abrantes e Lisboa (é célebre o banco de Junot na Tapada da Ajuda), sendo a segunda invasão em Março de 1809 com Soult ocupando o Porto a 24 de Março mas derrotado com a ajuda dos exércitos de Inglaterra comandados por Wellesley na Batalha do Douro, tendo os invasores saído para a Galiza e sendo a terceira invasão iniciada em 1810, com André Messéna conquistando o Forte de Almeida e depois Lisboa, com novo confronto dos exércitos nacional e inglês em 27 de Setembro na Batalha do Buçaco e, ainda, encontro nas Linhas de Torres em Outubro para se retirarem de vez, mas agora também com os exércitos de Espanha entre Maio e Agosto de 1813 com a Batalha da Vitória e a dos Pirinéus, acabando esta definição europeia ainda com a Batalha de Toulouse em Abril de 1814.

Tendo a guerra peninsular debilitado a França, levou à consolidação em definitivo da hegemonia inglesa, até ao outro lado do Atlântico, mas determinou o início da independência dos países da América espanhola e portuguesa, porque o rei de Portugal se havia refugiado no Brasil aportando à Bahia e, ao tentar voltar para re-colonizar, levaria também à sua independência em 1822 e assinaria o Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas dando à Inglaterra privilégios de relações comerciais em ambas as margens do atlântico, mas enquanto os países beligerantes já recuperavam, o país entrava em grande crise económica e institucional favorecendo o desenvolvimento de ideias liberais que conduziriam à revolução do Porto (1820) fazendo do país um campo de Batalha e de cidades pilhadas.

Fazendo do país um campo de Batalha e de cidades pilhadas.



Fig. 03

Mais tarde já depois das duas Guerras Mundiais, Inglaterra rendia-se à inevitabilidade dos movimentos independentistas de praticamente todas as suas colónias, seguindo-se-lhe todos os outros países colonizadores, sendo Portugal o último a aceitar a evidência; libertação que só viria com o 25 de Abril de 1974 com o denominado Movimento dos Capitães, eles também punhado de jovens soldados quase meninos, cansados de guerra em terra alheia que a história recente mostrava ser irreversível e, a partir daí, o país entra, finalmente, em PAZ e em evolução imparável económica e social, mas sobretudo cultural, ganhando mais uma vez o respeito do mundo Livre, pois que saía do regime político opressor mais longo da Europa, saía do “orgulhosamente sós”.

Libertava-se enfim a alma portuguesa que tinha a porta aberta para partir à conquista da sua real identidade e criatividade.

No entanto, uma coisa é o que se passa entre países que por razões de expansionismo ou de saque dos bens naturais entram em guerras, e a Europa conheceu todas e entre elas a Guerra dos 100 anos, outra coisa é o regime político de cada país já estabilizado nas suas fronteiras, que não oprime com armas mas de outras formas igualmente demolidoras da condição humana e que tem a ver com repressão interna para com os cidadãos que não correspondem aos ideais do “catecismo” dos governantes; pois que não há liberdade em mentes aprisionadas, deformadas e formatadas por uma cultura estatal.

Esteve nestas circunstâncias também o ex-bloco da URSS de regime comunista tão repressor como o regime nazista ou de capitalismo absolutista, que um dia também caiu com Gorbatchev e Yeltsin, fazendo desmoronar o elo artificial que existia entre todos os países que tinham sido agregados à força, caminhando cada um na procura da sua identidade cultural e étnica e finalmente para o seu desenvolvimento e lá andam à procura, o mesmo acontecendo à Jugoslávia e a todos os países “de Leste” que ainda hoje oscilam entre identidade e poder, estabilidade e desenvolvimento.

Vão caindo todos os “Muros de Berlim” que enclausuram os homens sendo apenas uma questão de tempo e, curiosamente, o mesmo sucede com cada indivíduo que isoladamente é aprisionado pela família ou mesmo pela sua própria mentalidade, mesmo vivendo em país livre porque, por mais que o ambiente ajude, o crescimento até à liberdade interior depende tão somente da sua inteligência e grau de consciência e de um trabalho individual e, para tanto, diríamos que o grau cultural adquirido pode ser uma ferramenta de valor invulgar pois, quanto mais sábia for a mente mais longe irá até
à sua alma livre, mas sempre com o reverso da moeda, pois que entretanto outros “muros” se levantam, seja a oriente seja a ocidente.

Curiosamente, os países europeus que durante séculos se degladiaram, estão hoje unidos por interesses económicos, formação que se iniciou logo após a II Guerra Mundial com a União do Ferro e do Aço, semente da CEE dos 6 através do Tratado de Roma (1957), depois Tratado de Maastricht que alarga as competências económicas e inclui as do emprego e formas de cooperação, depois Portugal e Espanha que aderem em 1985 e já são 12 membros, em 2003 já há 15 e, hoje já são 27, não parando o número de países que solicitam entrar para Comunidade Europeia, agora União Europeia, de governação única no mundo com rotatividade, cabendo a Portugal a Presidência no 2ª. semestre de 2007, numa tarefa gigantesca de afirmação da sua capacidade de abrir ainda mais a sua capacidade de engenho e arte no encontro de consensos agora de tantos países; afinal, no reassumir de uma vocação humanista milenar.

E há 40 anos que a Turquia espera e se prepara para ser aceite na Comunidade e, no entanto, é o único país que já pertence a outro continente e até a outra cultura; mas espera!

E assim, da união económica dos países do Ferro e do Aço, chega-se, por exemplo, hoje, na fundamental Educação, ao Tratado de Bolonha, que unifica competências universitárias, visando-se a livre circulação no espaço comunitário; o que por um lado parece interessante e, por outro, “aligeira” de tal forma a exigência de qualidade intelectual, como se anunciasse mais uma fragilização por ter atingido tal dimensão com a abertura de fronteiras que tudo globalizou em termos de economia mas também, por exemplo, de violência e de crime, como se se tivesse atingido um limite sobre o qual é necessário repensar este mundo onde tudo parece estar à solta e com pouca eficácia de aplicação de leis universais de comportamentos, como se se atingisse uma outra fase de aprendizagem do viver colectivo, agora alargado a quase um continente.

Por isso em 2006 a tentativa de existência de uma Constituição Europeia, gigantesca e irrealista, chumbada por dois países membros. E, assim, para onde caminha esta Europa Unida? Veremos!

Um pouco em paralelo Portugal tem ainda o “brinde” de ter um Alto Comissário da ONU para os Refugiados (2006) e, este ano, outro Alto Comissário da ONU para a Aliança das Civilizações (26 de Abril 2007, data curiosa! Depois do 25 de Abril e curiosa a designação de “santa” aliança!), cargo recentemente criado pelo ganês Cofi Annan em 2006, no temo do seu 2º mandato de Secretário Geral, tendo já tido também um português o cargo de Presidente da Assembleia Geral, e não esquecendo, naturalmente, a própria presidência da União Europeia.

Que país tão pequenino e agora tão debilitado económica e culturalmente, e no entanto com tantas personalidades com cargos do mais alto valor mundial, como se fosse um país de personalidades e o “povo” uma massa anónima deixada nas suas lutas quase exclusivamente de sobrevivência, diária, país de extremos e de abandonos, forçado talvez a novo engenho e arte.

A Europa, farta de guerras, é hoje contudo um exemplo de paz e de desenvolvimento económico, social e cultural, considerada mesmo a maior potência económica do mundo com os seus 494 milhões e 700 mil habitantes, provando que em paz os países prosperam e desenvolvem-se, embora com crescente índice de envelhecimento da população, minimizada pela população imigrante que não pára de aportar à “terra da abundância e da paz”.

Acontece ainda este ano a I Cimeira Euro-Africana, em Lisboa, parecendo ser 2007 um ano único de afirmação portuguesa, já que não lhe caberá tão cedo a presidência desta super-potência chamada UE.




Fig. 04

A União Europeia atravessa enormes dúvidas não apenas quanto à sua Identidade mas até sobre o tão almejado progresso económico que se agrava com mudanças profundas ocorridas nos últimos anos: de entre elas adopção de uma moeda única e a adesão de novos países, levando a que os seis países originais que celebraram 50 anos, sejam agora 27.

Até há poucos anos – talvez com a Europa dos 15 – havia maior homogeneidade na União Europeia que Portugal tentava acompanhar, mas que cedo (2000) o fez descolar não apenas por razões da adopção do Euro, mas por várias contingências internacionais e nacionais conjuntas. “Mas foi o último crescimento do grupo que fez mudar essa situação, com novos países-membros que têm uma memória histórica muito diferente dos últimos 50 anos”, explicou em entrevista António Missiroli, chefe dos analistas políticos do European Policy Centre, centro belga de estudos da União Europeia, sendo que também o fenómeno mais recente e óbvio da globalização apanhou desprevenidos os países mais distraídos, embora esse processo de globalização se processasse mesmo dentro da União desde a adesão de Portugal em 1986, e mesmo com a suculenta atribuição de subsídios para o desenvolvimento económico de infraestruturas gerais, bem como do sector da agricultura e das pescas, que Portugal desbaratou e distribuiu mal do ponto de vista económico, social e ecológico.

Esta situação, criada em 1986, pareceu ser uma grande benesse para todo o país, redistribuindo os proventos europeus para o desenvolvimento de cada canto habitado, não apenas com infraestuturas, viárias mas reforçando pólos de desenvolvimento para gerar mais e melhor emprego, mais e melhor formação profissional, mais e melhor ensino, mais e melhores cuidados de saúde; para que o país não ruísse. Mas o país ruiu, e em apenas 20 anos.

Os grandes subsídios contemplaram apenas novas estradas e os grandes latifundiários e a população mais jovem e activa demandou o litoral e aí criou os seus filhos, que pelo litoral ficaram dando lugar ao fenómeno da litoralização, que destruiu o país mais do que desenvolveu, já que com a chegada da população do interior, foi necessária a construção de habitação e de todas as infraestruturas para a sua sustentação.

Assim nasceram as duas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, e assim o caos do Algarve foi adicionado ao caos de todo o litoral, ficando o interior vazio de população activa, e sendo que os que ficaram morreram ou envelheceram, perdendo qualquer capacidade de manter as suas actividades económicas e culturais.

Morreram os habitantes e morreram sobretudo as freguesias rurais, morreu a paisagem e a floresta ardeu, tudo isto na ausência da população, pois que o país nunca ardeu como nos últimos 20 anos com um acelerar na década de 90, e em 2003 foi até “espectáculo mundial”, e a TV mostrou ao mundo um fogo sarcasticamente atribuído aos foguetes das Festas e Romarias dos emigrantes que no Verão ainda voltam “à terra” e a alguns loucos que fugiram do manicómio e que “foram apanhados e identificados”! Dizendo-se tudo isto, embora a questão dos fogos tenha muito a ver com a ausência de água nos níveis freáticos, não apenas por razões climáticas naturais, mas por destruição dos sítios que são, por excelência, locais de inflitração, e com a generalização da eucaliptização em áreas de vale ou montanhosas, numa arborização que consome toda a água no solo; e, assim sendo, a terra e a floresta secam, ficando a árvore sujeita a arder mais facilmente, para além de secarem as poucas manchas de vegetação natural existentes e que na Primavera mal se regeneram, caminhando-se, assim, para a desertificação imparável.

De todos os exemplos que se podem dar, cito apenas um dos mais dolorosos e que respeita à aldeia histórica de Piódão, construída num dos mais altos e severos declives do país, e parecendo um presépio em área de xisto, e que tem actualmente 70 idosos reformados, em que o mais novo tem 50 anos (reportagem de Pedro Almeida Ribeiro na apresentação do seu livro “Estrago da Nação” no programa SIC “Perdidos e Achados” de 3 de Maio de 2007).

Sem hospitais nem escolas foge a massa cinzenta, e não havendo regeneração da população não há condições para implantar o turismo de que aquela aldeia poderia beneficiar, pois que há anos não beneficia de coisa nenhuma, porque os políticos não se focam nas zonas que não lhe dão votos e, para o turismo, é necessária população com determinada formação para que o turismo seja realidade e novo ponto de partida para não desabar, como desabam os telhados de xisto, caminhos e paredes, pois que já não há quem possa e saiba trabalhar com essa velha arte da pedra.

Piódão não tem peso eleitoral, aliás como todo o interior pois que em 60% do território vive apenas 15% da população e nem sequer se investe em adução de água e esgotos como se se tratasse do III mundo – o 25 de Abril passou por lá só nesse longínquo dia de 1974 mas a flor morreu em 33 anos nesses territórios esquecidos onde a população vive e morre anonimamente.

A pouca população idosa que existe (média 60 anos), não tem sequer uma farmácia (apenas um café que é o único ponto de encontro) e só tem acesso à saúde em Arganil, que dista 40 km da aldeia, e em muitos casos até terá de se deslocar a Coimbra.

O governo deu no fim de 2006 e início de 2007 o golpe de misericórdia ao interior fechando milhares de escolas primárias e de centros de saúde, e sem escolas não há crianças, nem os seus risos, e sem saúde não há alegria.

Os muitos Piódão(s) de Portugal só terão vida turística se tiverem vida com verdadeiros habitantes e não apenas com agentes de turismo a fazer floclore como em muitas aldeias da Europa. O interior só terá vida humana e de natureza se tiver habitantes e actividades próprias, como a agricultura; e sem agricultura e sem agricultores, resta o fogo e a acumulação ou depósito de lixos industriais, e o resto é tristeza, abandono e morte das pessoas e das pedras por eles postas de pé e a que deram vida e beleza.

Porque nunca os decisores usaram bem os fundos comunitários recebidos ao longo de, exactamente, 20 anos, o país viu também, e mais recentemente, aumentar o desemprego, depois da destruição do tecido económico do sector primário (agricultura e pescas), indústrias agro-alimentares e serviços derivados e, mais tarde (2002-2007), mesmo boa parte do restante tecido industrial, quando este entrou em crise agravada com o advento da globalização da China; tentando-se uma recuperação, que não está à vista dadas as circunstâncias de obrigação de convergência do valor de crescimento conveniente e do limite do déficit do PIB nacional imposto pela UE.

De tantos diálogos diários e já obcessivos, que são moda nestes anos do início do séc XXI, em vários programas de TV pública e privada, diálogos esses entre quase todos os maiores empresários e gestores e também todos ministros e ex-ministros da economia, e não só, e em tantos artigos de jornais, não há uma só observação que não seja técnica e politicamente correcta, sendo pura perda de tempo de antena e esvaziamento da própria palavra, que se tornou VAZIA, mas não deixam de se mostrar nem recusam a entrevista porque mostrar-se passou a ser importante.

O mesmo sucede com todos os discursos dos partidos políticos, não interessa qual partido, em que tudo se resume a conversa de manutenção do lugar de poder e de alimentar diálogo para que se não pense que já não existem, sem no entanto nunca ser referido o grande país rural e, deste, o interior, como se fosse assunto arrumado, e fechando nos últimos dois anos o que aí ainda restava de apoio de infraestruturas colectivas; o que vem aliás na linha do pós 1986, em que Portugal tendo 43% de população activa no sector agrícola, constituía este o seu grande índice de subdesenvolvimento. Sò que nenhum país da UE matou a sua agricultura; embora recentemente o país recomece a exportar frescos e fruta para o norte europeu dada alguma qualidade que entretanto se perdeu na Europa e que finalmente se renova em Portugal.

Se a Europa tentou maior homogeneidade a partir da formulação de uma Constituição Europeia, que acabou por ser recusada pela França e pela Holanda, por outro a duplicação de países ajudou a degenerar em crise que é fatal serem os mais frágeis e inábeis a pagar; e Jacques Delors, o primeiro presidente da UE (1985-1995) já afirmou que haveria a possibilidade de desmembramento da actual União.

É dito que 44% da população da UE afirma que o nível de vida piorou, acompanhado do envelhecimento da população e mesmo da crise de valores da “velha” Europa Humanista e Solidária, que começa a pôr em causa as vagas de emigrantes do continente africano, que passam a ser maltratados e mesmo expulsos ou, de novo, reduzidos a mão de obra escrava como no séc.XVIII, acontecendo isto mesmo com os portugueses que trabalham em “países” amigos, situação já denunciada oficialmente.

Aliás não fará grande diferença da escravatura actualmente perpretrada no Dubai (zona franca), para com os que saem do seu país (chineses, nepaleses e indianos), que nele assinam contrato com a empresa para que irão trabalhar mas que, ao chegar, lhes é retirado o passaporte, os obrigam a assinar novo contrato em que consta que não têm sindicato nem assistência social nem sequer de saúde, e que tudo corre por sua conta e risco sendo “prisioneiros” das empresas, sendo que as respectivas embaixadas nada fazem, ou podem fazer porque a lei do país é intocável; no século XXI, no país onde se compram ilhas artificiais como quem compra uma casa, a escravatura foi assim levada ao inimaginável.

Acabam a guerra e os conflitos e logo homens arranjam outras formas de humilhação cada vez mais cruéis e de imposição do seu poder para com a maioria mesmo no regime político mais civilizado denominado democracia. Ninguém quer distribuir o bolo ou pagar o valor do trabalho de outrém, seja ou não bolo comum e toma para si o que não lhe pertence, sem lei.



Fig. 05
O dia de comemoração do Homem livre e libertado da escuridão do fascismo ou totalitarismo, o dia em que os portugueses têm “braçadas de cravos” e cheira a Primavera e a esperança, não tem sido objectivo e concreto para real desenvolvimento do país inteiro e totalidade da população mas, pelo contrário, apenas para cada vez menos grupos cada vez mais coesos e fechados, que tendo já sido privilegiados, detêm agora ainda mais, depauperando e defraudando mais pessoas, os seus sonhos e mesmo direitos inscritos da Constituição Portuguesa, que revestia, na forma escrita, a revolução dos cravos porque dela foi consequência.

O Dia de comemoração do Homem Livre não chegou a todo o país nem a várias partes do mundo.

Como nunca, porque não usou bem o que havia recebido, o país viu aumentar o desemprego e destruir o seu tecido económico. E quando começa um ciclo de destruição e ausência de valores éticos e estéticos e humanos – e a memória dos povos já não vale nem num papel escrito –, ele acaba por estender-se aos valores da própria Terra, desmantelando-a na grandeza das paisagens construídas durante milénios, seja paisagem rural seja urbana, como se soprasse vento de destruição sem olhar a quê e porquê, e que abarca todos, desde os mais pequenos nos infantários.



Fig. 06

Abril de sim, Abril de Não Manuel Alegre

Eu vi Abril por fora e Abril por dentrovi o Abril que foi e Abril de agoraeu vi Abril em festa e Abril lamentoAbril como quem ri como quem chora.Eu vi chorar Abril e Abril partirvi o Abril de sim e Abril de nãoAbril que já não é Abril por vire como tudo o mais contradição.Vi o Abril que ganha e Abril que perdeAbril que foi Abril e o que não foieu vi Abril de ser e de não ser.Abril de Abril vestido (Abril tão verde)Abril de Abril despido (Abril que dói)Abril já feito. E ainda por fazer.

É como não se ser português só por se ter nascido aqui.

Que bom é afinal o Abril que permite tudo dizer até o mais incongruente!

Não há preço para a Paz e para a Liberdade e no dia 1 de Maio 1974 na rua estavam mais de 500 mil pessoas a festejar o movimento dos jovens capitães – que se espalhou ao país os cravos que floriram porque todos, afinal, estavam desejando que acontecesse.



Fig. 07

Em 1974 já era adulta mas sem qualquer direito de cidadania, pois que a diferenciação de género tudo anulava excepto no direito de existência e de empurrar a porta e saltar muros altos para conquistar um lugar que só dependia de mim já que, do género feminino, votar era irreal, sair do país era quase impossível, porque havia um “Muro de Berlim” e, se saísse, só com a aprovação do “género” masculino.

Ir atrás na Memória e repensar tudo, repensar os últimos 50 anos mas sobretudo estes 33, é como viajar de uma galáxia para outra, mas por mais fronteiras que se tenham aberto e muros que se tenham derrubado, outros muros se levantam se calhar porque o homem ainda não está pronto para viver em liberdade e consciência e sentido da Vida; e se calhar estou a confundir a evolução individual com a colectiva, mas estou também a desejá-la, a evolução colectiva.
Porque eu vivi esse dia como um sonho que, afinal é e tem de ser possível, senão nada vale a pena; e recordo como quem pensa, como quem sente o que só esses, desse tempo, sentiram; e que pena tenho de não saber onde está, uma bela fotografia, que fiz, de um velhote muito velhote que só tinha por companhia um cão, mas ambos exibiam o seu cravo vermelho porque a alegria não é pensada, é sentida e intransmissível.

Curiosamente, e não será por acaso, o Ensino do português a qualquer nível encontra-se no mais alto grau de degradação e de irresponsabilidade quanto à formação intelectual e de cidadania e em quase tudo vejo o 25 Abril como uma grande CRUZ NEGRA passada por cima do que ficou além dessa data.

Mas, “privado da sua História um povo entra em degradação” (Sakarov).

Que pena, pois que parece que pouco mais ficou do que o “símbolo” que, no entanto, foi único no mundo e fez aportar ao país, sobretudo a Lisboa, um número inimaginável de reporteres de todo o mundo; e Portugal foi notícia no mundo pela mais bonita e nobre das razões e na mão que pegava a arma havia flores.

Os jovens de hoje, ao estudar História de Portugal, nem ao menos teoricamente sabem como a “passagem” desse DIA, constituiu a passagem da noite para o dia, do silêncio para o grito, da pobreza de espírito para a possibilidade de enriquecimento sem limites, e que o limite só está em cada um.

Mas é até certo ponto compreensível que os jovens não saibam, porque eu também não vivi o tempo da conquista de Lisboa por D.Afonso Henriques e não o sei imaginar; mas alguém passou testemunho que ficou escrito e cada geração vive o seu tempo e com ele constrói a sua memória e com a memória dos homens se faz a História, mas passados 33 anos os livros de História não contam a história do tempo livre em que os meninos hoje nascem e vivem.

Porque se apagou o 25 de Abril ? Aqui tão perto?

No entanto, neste ano de 2007 houve algo inédito na comemoração do dia dos cravos, que foi votada a um ser que tudo deu pela Liberdade – Zeca Afonso –, que mereceu uma homenagem nunca imaginada com um programa luso-galaico e transmitido na televisão, de grande qualidade histórica e estética em que a música foi rainha, música de cá e música de lá, espectáculo só possível porque mesmo que o Alto Minho e Galiza estejam há muito unidos pela sua historia galaico-duriense, e se para eles 25 de Abril é a revolução das flores, também para todos todos os castelhanos foi o prelúdio da sua libertação política e início de um desenvolvimento económico e sociocultural único na Europa. E, ao menos isso, ao menos ter sido farol de tantos outros!

Também todos os países, hoje independentes e estáveis politicamente, terão tido um dia o seu 25 de Abril.

Mas nenhum com flores e só com flores.

Abril há-de de novo florescer, mesmo do pântano, que também dá flor – a cheirar de novo a esperança e de vida a renascer.

MAS FALTA LIBERTAR O PLANETA DA OPRESSÃO HUMANA


Maria Celeste d’Oliveira Ramos

Acabei!

Lisboa, Bairro de Santo Amaro
25 de Abril de 2007



Fig. 08

Em Abril, por uma vez,Um dia se fez verdadeE jorrou de quem o fezA palavra Liberdade.Foi num Abril já distanteQue do cravo nasceu vidaNa espingarda floridaDe soldado militante.Foi um Abril muito breve ...A brisa da madrugadaDe tão solta, de tão leveFicou à porta de entrada.Mas na alma cintilouO fulgor desta saudade.Foi um cuco que cantouJustiça, pão e verdade ?
Amadeu de Carvalho Homem – 20 abril 2007

Fontes de imagens utilizadas:
O HERÓI EXEMPLAR
http://2rosas.weblog.com.pt/arquivo/25%20abril.jpg http://www.pcp.pt/actpol/temas/25abril/25anos/foto09.jpg
http://cc25a.utopia.com.br/fotos/foto72.jpg

Ilustrações escolhidas pela autora; procurou-se referir as respectivas fontes.
Revisão para edição em 2007-05-08, por ABC.
Preparado para edição, por José Baptista Coelho, em 2007-05-10.