domingo, março 09, 2008

186 - Paisagens II: algumas notas sobre a árvore na cidade - Infohabitar 186

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Algumas notas sobre a árvore na cidade

Texto de António Baptista Coelho sobre palestra de Maria Celeste Ramos.

A propósito de um relato informal do que nos disse a Arq.ª Paisagista Maria Celeste Ramos na sua excelente palestra no Auditório 2 do Departamento de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa em 14 de Fevereiro de 2008, apontam-se muitas ideias referidas pela palestrante e desenvolvem-se, um pouco, algumas linhas de pensamento sobre a árvore e a cidade.
De forma alguma se faz aqui um apontamento sistemático da muito rica intervenção de Celeste Ramos, apontam-se apenas algumas das ideias expostas, que mútua e minimamente se estruturam e sobre as quais se desenvolvem alguns comentários pessoais. E desde já se afirma que não se está aqui a esgotar o tema da relação entre a árvore e a cidade, previsto para esta sequência de artigos sobre a paisagem.

Falemos um pouco da cidade para começar.

A dimensão da cidade já não é aquela pela qual se optou ao longo de milénios e neste jogo relativo à dimensão da cidade há aspectos fundamentais a considerar, entre os quais um dos mais importantes é que a cidade é tanto um espaço físico como um espaço emocional – e, por vezes, e, hoje em dia, muitas vezes, há um grande esquecimento da dimensão emocional da cidade e das suas partes e elementos constituintes. De certa forma já nos aproximámos desta matéria no primeiro artigo desta série, quando se referiu a importância da paisagem urbana e quando se tentou oferecer uma definição de paisagem, muito ampla e afectiva.

É importante lembrar aqui que, em séculos passados, para além de se tratar de outros tempos e outras realidades, nas quais havia realmente graves problemas em termos de pobreza e de qualidade de vida, e tal como apontou Celeste Ramos, as cidades tinham uma dimensão mais palpável, mais sentimental, mais física. E não será possível recuperar, hoje, um pouco dessa dimensão? Reaprendendo como fazer ruas e praças para as pessoas e pondo de lado, para sempre, o urbanismo feito para ser bonito nos desenhos e para ser útil ao veículo e a uma sociedade que, afinal, nem será aquela que mais nos interessa e que é a mais adequada a um ambiente regenerado?


Fig. 01: Alfama

E desenhar agora, desta maneira, formalizando-se aquilo que muitas vezes se fez de forma relativamente espontânea, mas também, muitas vezes, de forma exemplarmente objectivada e concretizada, será, como indicou a palestrante: desenhar com a natureza, organicamente; e/ou desenhar com uma racionalidade esclarecida. Empenhando-nos, sempre, na nobre e exigente tarefa de criar os ambientes da casa e da cidade.

Um outro aspecto a considerar é que a cidade é também o espaço dos serviços, dos serviços “ao pé da porta” e da rica conjugação de uma grande diversidade de serviços, mas Celeste Ramos defende que até isso está a desaparecer, substituído pela especialização e concentração excessivas. E esta noção de cidade de serviços ao pé da porta, de cidade que se habita entre a casa de cada um e a rua que é de todos, é uma noção de plenitude urbana que se integra bem com os aspectos de ligação à natureza que nos são proporcionados pelo verde urbano, pelo jardim urbano e especificamente pela árvore urbana, que é afinal um pequeno jardim em altura. E teremos, assim, idealmente, as vantagens da civilização, sem perder parte das vantagens da natureza.

Para além destas questões ligadas à concepção e à cidade desenhada, a cidade é também, como referiu Celeste Ramos, o espaço do sonho, o que obriga a ser um espaço condigno e com relações com a imaginação, a criatividade e a diversidade e isto terá sempre a ver com o verde urbano.

Afinal, e tal como referiu a palestrante, um dos elementos da cidade é o conforto visual, e se ele existir sentimos paz, quando percorremos a cidade, e há também os equilíbrios nas alturas e nas cores dos elementos dos cenários urbanos; e se assim acontecer sentimo-nos bem e ficamos mais disponíveis para a cidade e as outras pessoas que também a habitam, e em tudo isto, e tal como afirma Celeste Ramos, o que mais nos atrai e o que mais nos faz sair e flanar na cidade é o belo, e o belo tem a ver com o direito ao belo.

E assim se vai conformando e vitalizando uma cidade mais próxima de nós, humanos, próxima, por proximidade física e por identidade e atractividade, uma cidade que nos distrai verdadeiramente e que nos emociona e, consequentemente, nos convence a sair e a usar os seus espaços e que nos diz, em todos eles, que o que ali nos oferece é um verdadeiro suplemento de alma e de funções ao que temos bem guardado e ali bem à mão nos nossos mundos domésticos.


Fig. 02: Lisboa, da Graça ao Castelo

Naturalmente que tudo isto não se faz apenas com o verde urbano, mas faz-se sempre considerando e incluindo a natureza e a paisagem natural, de forma integrada com e na paisagem urbana, mesmo quando numa relação paralela ou de contraponto.

Este é o caminho certo, mas há muitos caminhos errados, caminhos que Celeste Ramos foi referindo e sublinhando numa sequência de situações negativas que apontou, referidas a um bairro de Lisboa, onde mora, mas que podem ser infelizmente generalizadas a outros bairros de Lisboa e de outras cidades. E nestas situações destacam-se os crime da gradual impermeabilização dos espaços urbanos, do abate dos pequenos bosques que ainda resistem seja em velhos jardins seja no miolo dos velhos quarteirões, da falta de respeito pelas grande árvores que deviam ser preservadas, e da gradual elevação da altura do edificado que reduz a amenidade ambiental das ruas e que afasta cada vez mais as pessoas dessas ruas; e depois, depois, é a redução do conforto ambiental exterior, é a redução da biodiversidade, é a descaracterização de bairros e vizinhanças, é a redução do interesse funcional e visual dos espaços urbanos e é a contribuição para a desvitalização destes espaços. E Celeste Ramos resume tudo isto ao dizer “que já não há vida na minha rua”.

E não tenhamos ilusões sobre o protagonismo da árvore urbana em todas estas matérias, pois com apontou a palestrante a árvore dá: beleza, natureza viva na cidade, escala, variabilidade e diversidade de cenários e equilíbrio ambiental ao longo do ano. Pois a árvore é um verdadeiro e concentrado micro-jardim vertical.

Disse Celeste Ramos que na cidade antiga não eram precisas árvores, porque a natureza, o rio – no caso de Lisboa e de tantas outras cidades – e as próprias árvores de bosques e de hortas estavam logo ali, pois o campo estava logo ali, e, além disso, não havia poluição urbana significativa que, por exemplo, libertasse CO2, e exigisse uma intervenção específica. Mas hoje em dia, o campo está bem longe, e há muita poluição; logo, o verde urbano e especificamente as árvores são também necessárias como elemento de regeneração ambiental.

E note-se que o verde urbano e especificamente a árvore urbana é elemento positivo não apenas para o clima físico, seja no Verão seja no Inverno, mas também para o clima emocional e mesmo para o clima estético de um dado bairro de uma dada cidade, assim o sublinhou Celeste Ramos; e note-se aqui a importância de tais facetas qualitativas na nossa sociedade da pressa e da descaracterização.

A árvore na cidade foi ainda referida como um elemento urbano que ou se associa à estrutura/organização da cidade, sendo a sua presença imperativa, ou, é de algum modo descartado por determinadas soluções e ambientes específicos. Mas defende-se que, em qualquer dos casos, o verde urbano tem de estabelecer um diálogo continuado com o edificado urbano; numa relação contínuo edificado/contínuo verde, que irá variar, caso a caso, zona a zona, que poderá caracterizar-se em determinados locais por uma quase ausência de verde urbano, mas que, mesmo em tais locais, assim se criarão ambientes em positivo contraponto com a referida relação de continuidade edificado/verde, muito variável e rica em termos de aspecto e de caracterização.


Fig. 03: Campo de Ourique

Este será, provavelmente, um dos principais meios de assegurar a fundamental relação afectiva e efectiva com cada lugar. Uma relação que se ligará à essência primordial que em tudo existe, tal como defendeu a palestrante, que marca todas as bases de conhecimento, e assim também devemos considerar que há uma essência primordial no habitar e no habitar a cidade e parte desta essência liga-se à presença ou ausência premeditadas de árvores nas ruas e praças citadinas.

Na discussão que se seguiu falou-se, ainda, do “subúrbio do subúrbio”, das estradas que foram plataformas de paisagens e hoje são amostras de pequenos horrores, falou-se, assim, de uma macrocidade descaracterizada e inimiga, que destruiu a paisagem ampla em que cresceu e que não tem “espaço” para o verde urbano no seu âmago, uma cidade da pressa e do feio, afinal uma cidade bem diferente daquela onde um qualquer pequeno jardim, bem cuidado mas sem vaidades, pode ser um sítio sobre o qual se diga: “aqui não há tempo, só há calma e beleza”, assim o disse Celeste Ramos.

E imaginemos, apenas, o bem que fará podermo-nos refugiar, por momentos muito longos, em tais ambientes, e consideremos imaginemos a simples possibilidade de poder ter também alguns simples jardins de árvores ao longo das ruas, árvores que, tal como apontou Celeste Ramos, nos dizem: “sou natureza, sou abrigo, dou sombra, sou diferença, não tapo as fachadas, sou beleza.”

A propósito de uma palestra falámos um pouco da cidade, da árvore e da árvore na cidade. Tal como sublinhámos no princípio do texto desenvolvemos apenas algumas notas breves sobre um tema apaixonante e hoje crucial nas tantas tristes cidades que temos e nas megacidades que teremos, e, portanto um tema a que se voltará várias vezes, e talvez sob perspectivas específicas, nesta série de artigos sobre as paisagens, pois as árvores são quase sempre as protagonistas da paisagem natural e muitas vezes partilham protagonismo com os edifícios na paisagem urbana, não lhes retirando o papel principal e muitas vezes valorizando-o, uma capacidade que dota a árvore urbana com uma capacidade de extrema utilidade quando pensamos em acções de regeneração e melhoria amplas do tecido urbano.

É ainda muito interessante aprofundar a importância do papel da árvore na cidade, afinal o sítio dos edifícios, mas árvores e edifícios talvez tenham pontos comuns, e muitas vezes as cidades sucederam aos bosques nas orlas das florestas e nas margens de rios e de mares, e, além de tudo isto, que longe nos levaria, é ainda importante referir, desde já, que tal como disse Levi-Srauss: “É lícito comparar, e não de maneira metafórica (...), uma cidade com uma sinfonia ou com um poema; são objectos com a mesma natureza. Possivelmente mais pormenorizada(preciosa), ainda, a cidade situa-se na confluência da natureza e do artifício (...). É tanto objecto natural, como sujeito cultural; indivíduo e grupo; vivida e sonhada; a coisa humana por excelência.”
O sublinhado, relativo a estar a cidade na “confluência da natureza e do artifício” foi nosso e a citação foi retirada do belíssimo artigo de Rafel Toriz, intitulado “Cartografias: Las ciudades – el lenguaje – y la voz que las habita”, um artigo editado no excelente site “Antroposmoderno”, recomendando-se vivamente o artigo e o site.


Fig. 04: Graça

E sobre uma tal confluência citadina entre natureza e artifício parece ser, desde já, fundamental apontar que se ela existe então ela tem de ter presença efectiva e afectiva, e se não existir então essa cidade não é a cidade dos homens, não é a cidade onde nos podemos rever e que nos apoia e motiva todos os dias, desde os aspectos de pormenor aos de orientação, pois, como já se disse atrás, mesmo quando na cidade não há pontualmente verde urbano pode e deve haver uma forte presença da natureza na relação com a paisagem e com o ambiente do local (como acontece, por exemplo, nas ruas da Baixa de Lisboa abertas ao Tejo) e pode e deve haver um excelente contraponto ou com partes da cidade caracterizadamente naturalizadas ou com margens da cidade muito marcadas pela natureza e numa tal caracterização a árvore é realmente protagonista, pois além de constituir um verdadeiro jardim vertical e concentrado ela de certa forma é um edifício vivo que boa companhia faz aos de pedra e cal pois suaviza-os e dá-lhes escala, isto para além de habitar verdadeiramente o espaço público e aí ela é de certo modo parceira e amiga do homem.

E já agora acabemos esta primeira e pequena reflexão sobre uma cidade naturalizada e habitada pelas árvores, com as primeiras palavras de Rafel Toriz no referido artigo:
“É uma certeza: estamos condenados a viver nas cidades, a desprezá-las e a adorá-las com horror e simpatia.(...)”

Sem dúvida que as árvores poderão ajudar-nos a desprezar muito menos e a adorar muito mais as nossas cidades, mas para isso há que pensar, objectivamente, em tudo aquilo que podemos e devemos fazer para melhorar as suas respectivas condições de instalação e tratamento, pois as árvores não são adereços citadinos, são sim elementos vivos e protagonistas urbanos de pleno direito, que muito nos darão, bastando para isso serem apenas minimamente cuidadas e respeitadas; e se passarmos destes mínimo e entrarmos na arte da paisagem, então ficaremos e ficamos deslumbrados com o verdadeiro e caloroso espectáculo de certas árvores na cidade.

Nota:
http://www.antroposmoderno.com/

Texto desenvolvido a partir da palestra de Maria Celeste Ramos, na Universidade Nova de Lisboa em 14 de Fevereiro de 2008, concluído em 1 de Março de 2008 na Encarnação – Olivais Norte, e ilustrado posteriormente.

Editado em de Março, por José Baptista Coelho

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