domingo, abril 27, 2008

194 - Reabilitação de edifícios habitacionais com valor patrimonial – artigo de Mariana Morgado Pedroso - Infohabitar 194

 - Infohabitar 194


Reabilitação de edifícios habitacionais com valor patrimonial - A importância da aplicação de uma metodologia de boas práticas de intervenção. O caso da Casa Rodrigues de Matos




Mariana Morgado Pedroso

marianamorgadopedroso@gmail.com


Este artigo defende a importância da aplicação de uma metodologia de boas práticas de intervenção na reabilitação de edifícios com valor patrimonial (1),neste caso ensaiada numa habitação palaciana do século XVIII em Lisboa – a Casa Rodrigues de Matos - e fundamentada pela actual dinâmica registada no mercado residencial indiciando uma procura emergente deste tipo de edifício no mercado imobiliário pelos segmentos mais elevados (Barata Salgueiro, 1997).

Pela Convenção para a Salvaguarda do Património Arquitectónico da Europa (Granada, 1985; art.º11) considera-se que a reposição da eficácia física e funcional de edifícios com valor patrimonial reconhecido, implica a definição de uma metodologia de boas práticas de intervenção. Trata-se de uma estratégia que visa a sistematização e aplicação dos conhecimentos sobre reabilitação, de uma forma eficaz, coerente e justificada focalizada no cumprimento das exigências de compatibilidade, durabilidade, reversibilidade e economia. Simultaneamente permite acautelar situações negligentes de intervenções no património construído, que devem ser tidas em conta em intervenções de reabilitação.

Nestes edifícios o programa decorativo é habitualmente rico, o que justifica a integração no projecto global de reabilitação de um projecto específico de restauro. Elaborado à semelhança do projecto de outras especialidades e designado por projecto de reabilitação com projecto de restauro integrado (2), tal como preconizado pela Carta de Cracóvia (2000; art.7º), que permite acautelar e melhorar a capacidade de resposta a imponderáveis verificados em fase de obra, bastante comuns em intervenções deste tipo.

Este artigo foi organizado em três partes: justificação, metodologia e caso de estudo, onde se aborda de forma sintetizada a temática em questão. De tal decorrem as conclusões, onde se sintetizam os princípios para as boas práticas de reabilitação e o resultado da intervenção no caso de estudo.

JUSTIFICAÇÃO

O estado actual do parque edificado em Lisboa e a actual pressão sobre os edifícios com valor patrimonial por parte do sector imobiliário legitima o ensaio de uma metodologia, que permita a sistematização e aplicação de conhecimentos, de forma eficaz, coerente e justificada de modo a combater o estado de degradação do património construído e a inverter as tendências actuais que privilegiam a construção nova face à reabilitação.

O desenvolvimento urbano da cidade de Lisboa seguiu até hoje um padrão de configuração radio-concêntrica, desenvolvida a partir do seu núcleo tradicional, inicialmente dentro dos limites administrativos do concelho e posteriormente por alastramento à periferia. De acordo com Barata Salgueiro (1997) a actual dinâmica espaço-funcional da cidade é marcada por uma acentuada terciarização do centro da cidade e consequente expulsão da função habitacional das áreas de maior centralidade.

Actualmente verifica-se uma mutação da estrutura metropolitana de Lisboa, associada à perda de importância do centro tradicional histórico e à mudança para uma situação de cidade policêntrica e dispersa pelo território. Segundo Barata Salgueiro (1997), estas novas centralidades surgem ligadas ao aparecimento de centros industriais, parques de escritórios e centros comerciais que crescem na periferia de forma aleatória e fruto da especulação imobiliária. As dinâmicas urbanas contemporâneas evidenciam, contudo uma procura de habitações em áreas centrais das cidades por segmentos da população com maior poder económico, contrariando a tendência ocorrida nas décadas anteriores de preferência por zonas periféricas (3). Esta tendência reflecte-se na procura, por parte do sector imobiliário destinado ao segmento médio-alto, de edifícios com valor patrimonial em zonas centrais para reabilitação.

A habitação em edifícios reabilitados no centro da cidade, enquadra-se no tema central deste estudo, e está relacionada com as crescentes vantagens destas áreas, enquanto lugar de residência devido às condições de centralidade conferidas e facilidade de acesso a serviços variados. Segundo Barata Salgueiro (1997) “A habitação nova ou reabilitada em áreas prestigiadas e revalorizadas da cidade suporta o processo de nobilitação correspondente à revalorização da centralidade para residência de grupos sociais abastados.” Daí o crescente interesse pelas habitações palacianas e aumento da procura e oferta deste género de tipologias residenciais (4).

O processo de mutação da estrutura funcional da cidade de Lisboa reflecte-se no estado de conservação do parque edificado, já que a principal premissa para a manutenção dos edifícios é o seu uso efectivo. Nas últimas décadas a cidade perdeu cerca de 210 mil habitantes, encontrando-se devolutos cerca de 40 mil fogos, i.e. perto de 14% dos 288 431 alojamentos clássicos que compõem o parque habitacional de Lisboa (Censos, 2001). A partir dos Censos de 2001, calcula-se que pelo menos 61% do parque edificado (56 178 edifícios), necessite de reparações. Destes, cerca de 9% necessitam de obras profundas de recuperação, sendo que 5% se encontram num estado próximo da ruína. Os dados disponíveis apontam uma forte relação entre o estado de degradação e a idade dos edifícios. A maioria destes fogos encontra-se localizado no centro histórico da cidade.



Figura 1: Estado de conservação dos edifícios em Lisboa. Fonte: Seixas (2004, pág. 157).


Num estudo desenvolvido em 2004 (Seixas, 2004) sobre o mercado da habitação na área metropolitana de Lisboa, é evidenciada a clara preferência da classe média-alta em habitar as área centrais de Lisboa. Embora o processo de crescimento da cidade tenha levado ao despovoamento da área central da cidade, com acentuada diminuição do número de moradores, é notória a procura de habitação de qualidade nestas área. Torna-se portanto fundamental responder a esta tendência, através da reabilitação informada do parque habitacional antigo (5).


METODOLOGIA

A metodologia de reabilitação proposta foi desenvolvida com base nos estudos de Garcia (Cabrita et al, 1993, pág.130), Paiva et al (2006, pág.295), Cóias (2006, pág.11) e Feilden (2003) e compreende seis fases:
estudos prévios de reconhecimento > análise > diagnóstico > projecto reabilitação > obra e acompanhamento > monitorização, organizadas conforme esquema apresentado na Figura 1:




Figura 2: Esquema proposto para uma metodologia de boas práticas de intervenção.

Defende-se que as boas práticas de intervenção definidas privilegiam as acções das fases de Análise e Diagnóstico. Destinadas a identificar e caracterizar as anomalias e o estado de conservação do edifício, contribuem decisivamente para se atingir a execução adequada dos trabalhos e o controlo dos custos. Na fase de Análise e Levantamentos, faz-se a aproximação ao caso de estudo, relativamente aos aspectos históricos, arquitectónicos, morfológicos e construtivos do edifício, procedendo à caracterização histórica e documental (que inclui a análise à envolvente urbana e origem do edifício e proprietários), caracterização tipo-morfológica e construtiva (que inclui fichas de levantamento dos compartimentos) e levantamento das anomalias.




Figura 3: Exemplo de uma ficha de levantamento dos compartimentos.

Na fase de Diagnóstico far-se-á um relatório sobre o estado geral do edifício, configurando as necessárias recomendações para corrigir as anomalias detectadas. Estas anomalias deverão ser avaliadas em fichas especificas, com distinção de elementos funcionais e estéticos para posterior avaliação.

Na fase de Projecto deve enquadrar-se um projecto de restauro integrado no projecto global de reabilitação, onde se modelam as medidas correctivas recomendadas de forma a adapta-las às exigências do programa do projecto propriamente dito, tendo em conta os aspectos de ordem metodológica e conceptual, de ordem jurídico/administrativos e de ordem económica.

Na fase de Obra e Acompanhamento, a escolha de uma equipa especializada em intervenções no património (quer para a elaboração do projecto, quer para a execução da obra) complementada por uma comissão técnica de acompanhamento, possibilitam a salvaguarda de valores patrimoniais denunciados durante a obra, contribuindo para o sucesso da intervenção.

Por último, após a conclusão da obra, é importante garantir a Monitorização e Manutenção, já que garantindo um bom plano de manutenção, com intervenções cíclicas de inspecção/intervenção, a maioria das degradações mais comuns podem ser evitadas, evitando-se operações de reabilitação profundas ou a perda de património arquitectónico.


CASO DE ESTUDO
A intervenção na Casa Rodrigues de Matos traduz a aplicação dos conceitos propostos. Tratou-se da reabilitação para fins residenciais de uma antiga habitação palaciana, não classificada, cuja morfologia remete para o segundo quartel do século XVIII, embora as suas raízes remontem ao início do século XVII.

A operação de reabilitação desenvolveu-se de forma pouco intrusiva e atenta à salvaguarda das preexistências e à conservação dos valores acumulados ao longo de várias épocas. Permitiu ensaiar as práticas de intervenção previstas na metodologia apresentada demonstrando a sua mais valia. A colaboração entre os vários especialistas e o constante acompanhamento de obra, permitiram reduzir as intervenções ao mínimo e salvaguardar o património arquitectónico presente (6).

O caso de estudo situa-se na Rua de São José (7).Trata-se do troço inicial do antigo Caminho para Benfica, identificado desde o século XVI e que começava nas Portas de Santo Antão da muralha Fernandina, prolongando-se até Carnide. A partir do final do século XIX, após a construção do eixo da Avenida da Liberdade e das Avenidas Novas, a Rua de São José perde a condição de “estrada de saída da cidade” passando a assumir uma dimensão local de suporte ao bairro. O bairro de São José mantém-se até hoje pouco alterado, suportado em ruas estreitas e tortuosas, condicionadas à topografia e cadastro local. A Rua (direita) de São José não é excepção, sendo que o seu traçado não foi alvo de correcção até à actualidade. Os edifícios que a conformam apresentam uso misto – comércio e serviços no piso térreo e habitação nos restantes pisos. O comércio reflecte alguma especialização constituindo um pólo de venda de antiguidades e restauração.

Através da identificação das anomalias e suas causas, caracterização e diagnóstico, foi possível identificar os problemas existentes, e lançar a ponte para as intervenções necessárias.




Figura 4: janelas de ensaio – fundamentais para a identificação do programa decorativo original.

Com um projecto atento possibilitou-se a resolução de problemas físicos, ambientais e espaciais, assim como a introdução de melhorias através da modernização das instalações e equipamentos existentes, sem adulteração dos valores preexistentes e reduzindo as intervenções efectuadas, em conformidade com a Convenção para a Salvaguarda do Património Arquitectónico da Europa (Granada, 1985, art.º11).

O recurso a materiais e técnicas compatíveis com as originais permitiram adaptar o novo ao antigo, respeitando as principais exigências de compatibilidade, durabilidade e reversibilidade que devem ser tidas em conta numa reabilitação.




Figura 5: Durante a obra –as melhores soluções partem da discussão entre vários técnicos-restauradores.


Figura 6: Durante a obra - intervenção de técnicos-restauradores– Sala dos Pássaros.

No que se refere à integração de um projecto especifico de restauro no projecto de reabilitação geral, seguiram-se as recomendações da Carta de Cracóvia (2000, art.7º). Neste edifício, identificaram-se valores estéticos que justificaram a presença de técnicos-restauradores e uma empreitada de restauro integrada na obra geral, nomeadamente na identificação dos conjuntos decorativos dos tectos das salas da frente do andar nobre e da capela em estuque decorativo relevado policromático (atribuídos à Escola de Lisboa (possivelmente de autoria de João Grossi (1718-1781), embora não assinados) (8).




Figura 7: exemplo do antes e do depois, numa sala nobre do edifício – Sala dos Camafeus antes.




Figura 8: exemplo do antes e do depois, numa sala nobre do edifício – Sala dos Camafeus depois.


CONCLUSÕES
Relativamente à metodologia de boas práticas de intervenção apresentada neste artigo, concluiu-se que as acções da fase de análise e diagnóstico, destinadas a identificar e caracterizar as anomalias e o estado de conservação do edifício, contribuem decisivamente para se atingir a execução adequada dos trabalhos, nomeadamente no controlo de custos. Associando ainda, o enquadramento dado por um projecto de restauro, melhora-se a capacidade de responder às situações mais usuais numa obra desta natureza. Assim, numa acção de reabilitação, dever-se-á sempre partir do princípio de que o novo é que se adapta ao antigo, e não o contrário.

Por último, conclui-se que as linhas orientadoras da presente intervenção, deverão ser um exemplo a seguir na reabilitações de edifícios desta natureza, ficando garantida a salvaguarda, para as gerações vindouras, de um edifício com valor patrimonial indiscutível. O critério de preservar o mais possível permitiu reduzir as intervenções ao mínimo. Recorrendo a materiais e técnicas originais (ou compatíveis) foi possível adaptar o novo ao antigo. Identificando as anomalias e suas causas foi possível solucionar os problemas existentes, considerando sempre uma possível reversibilidade futura.


O artigo baseia-se no trabalho desenvolvido em:
PEDROSO, Mariana Morgado, Reabilitação da Casa Rodrigues de Matos. Um ensaio de aplicação de uma metodologia de boas práticas de intervenção, Dissertação para obtenção do Grau de Mestre em Recuperação e Conservação do Património Construído, IST, UTL, Lisboa, 2007

Notas:

(1) A definição de edifício com valor patrimonial, remete para o conceito de património arquitectónico. Para edifício com valor patrimonial adopta-se a definição apontada na Convenção para a Salvaguarda do Património Arquitectónico (Granada, 1985, art. 1.º) “(…) a expressão ‘património arquitectónico’ é considerada como integrando os seguintes bens imóveis: (…) todas as construções particularmente notáveis pelo seu interesse histórico, arqueológico, artístico, cientifico, social ou técnico, incluindo as instalações ou os elementos decorativos que fazem parte integrante de tais construções; (…)”, reiterando a definição anterior da Carta Europeia do património arquitectónico (1975, ponto 1) onde o conceito de património arquitectónico tinha alargado o seu domínio tradicional, para ser “constituído não só pelos nossos monumentos mais importantes, mas também pelos conjuntos de construções mais modestas das nossas cidades antigas e aldeias tradicionais inseridas nas suas envolventes naturais ou construídas pelo homem.”

(2) Derivado da descrição do ponto 7 da Carta de Cracóvia, “a decoração arquitectónica, as esculturas e os elementos artísticos, que fazem parte integrante do património construído, devem ser preservados mediante um projecto específico vinculado ao projecto geral de restauro.”

(3) A escolha de áreas residenciais destinadas às classes média-alta também está associada ao processo de transformação urbana em curso. De acordo com esta autora (Barata Salgueiro, 1997), está associada ao o desenvolvimento de três produtos distintos, sobretudo a partir do final do século XX: os condomínios fechados, os apartamentos reabilitados no centro da cidade e as moradias unifamiliares na coroa suburbana ou periurbana.

(4) Como por exemplo o Palácio da Flor da Murta (agora Palácio Studio Residence), o Palácio Alagoas, o Palácio da Junqueira, o Palácio do Prior do Crato são todos reabilitações de habitações palacianas para condomínios residenciais de luxo.

(5) Analisando os Censos 2001, dos 288 431 alojamentos clássicos existentes em Lisboa, só 86% se encontravam ocupados, e dos que se encontravam devolutos 67% (26 634) não tinham qualquer tipo de destino previsto, sendo primordial colocá-los no mercado.

(6) A obra esteve a cargo da firma Ludgero de Castro, Lda.

(7) Esta via surge identificada desde o período romano como um eixo de saída da cidade em direcção a Norte.

(8) Tal como refere Silva (2007, pág.50-52) “Como já referimos, existe uma semelhança formal nos vários programas decorativos efectuados por Giovanni Grossi e os membros da sua oficina, analogia que permitiu confirmar algumas atribuições por afinidades estilísticas.” (…) “O mais fascinante neste tecto (Palácio dos Machadinhos) é a sua semelhança formal com o tecto da Casa de Fresco do Palácio da Vila, em Sintra, o tecto da Sala dos Troféus do Palácio do Correio-Mor, em Loures, ou ainda com um outro tecto de um edifício na Rua de São José, em Lisboa.”

Bibliografia referida no artigo:

BARATA SALGUEIRO, Teresa, Lisboa, metrópole policêntrica e fragmentada, in Finisterra XXXII – revista portuguesa de geografia, Nº63, 1997, pp.179-190.

CABRITA, A. Reis, AGUIAR, J. e APPLETON, J., Manual de Apoio à Reabilitação dos Edifícios do Bairro Alto, CML/LNEC, Lisboa, 1993.

FEILDEN, Bernard, Conservation of historic buildings, Architectural Press, (1ª ed. 1982), Oxford, 2003.

CÓIAS, Vítor, Inspecção e Ensaios na Reabilitação de Edifícios, IST Press, Lisboa, 2006.

PAIVA, J. Vasconcelos, AGUIAR J. e PINHO, A. Guia Técnico de Reabilitação Habitacional, 2 vol., ed. INH e LNEC, Lisboa, 2006.

SEIXAS, João, Habitação e mercado imobiliário na Área Metropolitana de Lisboa, CML - Departamento Licenciamento Urbanístico e Planeamento Urbano, Lisboa, 2004.

SILVA, Hélia Tomás da, Giovanni Grossi e a evolução dos estuques decorativos no Portugal setecentista, Dissertação para obtenção do grau de Mestre em Arte, Património e Restauro, texto policopiado, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Lisboa, 2005.

Relativamente às Cartas e Convenções Internacionais:

LOPES, Flávio e CORREIA, Manuel Brito,Património Arquitectónico e Arqueológico.Cartas, Recomendações e Convenções Internacionais, Horizonte, Lisboa, 2004.

Preparado para edição no Infohabitar em 2008-04-25, por António Baptista Coelho
Editado no Infohabitar em 2008-04-27, por José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação – Olivais Norte

domingo, abril 20, 2008

193 - A CIDADE HABITÁVEL (II) - Infohabitar 193

 - Infohabitar 193

Fiquemos então com a segunda e última parte da “cidade habitável” de Reis Cabrita, que, depois de, numa primeira semana, ter desenvolvido uma perspectiva amplamente introdutória e estruturante da temática, esta semana nos oferece um avançar claro nos vários aspectos que o autor considera fundamentais na mesma temática.
Para uma melhor estruturação da leitura em qualquer das semanas é apresentado, em seguida, o índice geral, marcando-se a bold a parte do texto que é, em seguida, editada.



A CIDADE HABITÁVEL

António Manuel Reis Cabrita
Índice geral

1. INTRODUÇÃO
O âmbito físico
A inabitabilidade
A habitabilidade
A qualidade habitacional a nível urbano
A formulação exigencial da qualidade da habitação
A formulação da qualidade do espaço público
Avaliação da satisfação dos moradores
A Qualidade Arquitectónica Residencial (QUAR)
Aplicação dos factores de QUAR á escala urbana
Outros estudos habitacionais á escala urbana
Em resumo e concluindo esta Introdução

2. A CIDADE HABITÁVEL
Conjugar Habitabilidade e Urbanidade
A Qualidade Arquitectónica Residencial (QUAR) a nível urbano e citadino
A Habitabilidade Citadina
A Urbanidade Residencial
A Cidade Habitável – Objectivos e estratégia
Sistema conceptual para a Cidade Habitável
A - Enquadramento contextual
B – Enquadramento em aspectos conceptuais e de conteúdo
C - Enquadramento técnico político como suporte ao projecto de Intervenção Urbanística.
CONCLUSÃO





(fig. 21)

2. A CIDADE HABITÁVEL

Conjugar Habitabilidade e Urbanidade


Estamos, portanto, perante um desafio interessante que é o de identificar continuidades, sobreposições e diferenças entre os conceitos de Habitabilidade e de Urbanidade tradicionalmente afastados entre si. Esta aproximação resulta essencialmente da evolução que um e outro conceito tiveram no final do séc. XX, embora também do que uma certa pós-modernidade tem pensado sobre eles ao longo daquele período e agora no séc. XXI.

A cidade deverá humanizar-se e naturalizar-se para se tornar sustentável. A par da habitação doméstica e familiar surge também a residencialidade dinâmica, fugaz, interactiva com a vida urbana intensa e com as actividades socioeconómicas e culturais.

Trata-se uma nova residencialidade citadina resultante de uma nova cultura urbana que favorece atitudes de abertura á cidade vividas por novos perfis sociodemográficos de agregado familiar ou de coabitação. De certo modo retoma-se uma simbiose antiga que esteve na origem e desenvolvimento da cidade histórica e da habitação citadina intramuros.

O séc. XX, e particularmente o 2º pós-guerra, deu origem aos grandes bairros habitacionais e, nessa linha, criou-se uma doutrina e uma ciência que foram qualificando esse ambiente urbano residencial denso, exclusivo, repetitivo. Este apoio conceptual e instrumental deu-se, em primeiro lugar, á produção habitacional quantitativa visando a melhor relação custo qualidade técnica; deu-se depois no sentido da maior qualidade habitacional, face á insatisfação generalizada daquela massificação, mas sem alterar muito o anterior paradigma.

Mas o que hoje se pede para as novas expansões e para a requalificação deste extenso património habitacional é mais do que isto. Pede-se uma alteração mais profunda do paradigma inicial nas áreas que são quase mono funcionais, alteração em duas direcções convergentes:

- de modo a que as zonas caracterizadamente habitacionais incluam factores funcionais e ambientais importados da melhor urbanidade praticada;

- e de modo a que as zonas caracterizadamente de centralidade urbana incluam mais residência e factores ambientais da melhor residencialidade praticada, em sentido amplo, envolvendo apartamentos, aparthotéis, residências, lares, hotéis, etc..



(fig. 22)

Quanto aos grandes conjuntos e bairros do séc. XX a reabilitação e a renovação urbanas deverão ir procedendo á sua requalificação segundo este novo paradigma, combinando a miscigenação funcional, a suavização da artificialidade, a integração ambiental de forma equilibrada com animação urbana e a sustentabilidade social.

Estes dois conceitos, o de Habitabilidade e o de Urbanidade, estiveram historicamente reunidos e foram-se separando com o crescimento urbano rápido e depois com o funcionalismo e o “zoning” determinado pela primeira modernidade urbanística muito racional. Finalmente, estão a aproximar-se e complementando-se com benefício para a revivificação do ambiente citadino com melhor qualidade de vida em toda a cidade, ou seja, em equidade em todas as suas zonas. Considera-se a cidade como o âmbito físico mais alargado e que é o domínio por excelência da urbanidade e que considera o edifício habitacional como o âmbito físico mais reduzido e que é o domínio por excelência da habitabilidade. Contudo em toda a hierarquia física da cidade, de um extremo até ao outro, os factores de Habitabilidade e de Urbanidade devem permanecer, embora enquanto um aumenta o outro diminui.



(fig. 23)


A Qualidade Arquitectónica Residencial (QUAR) a nível urbano e citadino

Este princípio teórico geral de extensão á escala urbana dos 15 factores de QUAR necessita de ser depois trabalhado e pormenorizado, recorrendo nomeadamente aos estudos do LNEC já referidos, á documentação científica associável aos 15 factores QUAR (vide Quadro 2) cuja recuperação para este efeito defendemos anteriormente.

Todos estes conhecimentos podem e devem ser operacionalizados para a qualificação da cidade habitável nos seguintes três níveis:

a) A habitabilidade residencial estrito senso que é qualificável facilmente pelos referidos 15 factores QUAR, porque ficarão quase como estão e que se irão desenvolver essencialmente no que se refere ao edifício habitacional e à sua vizinhança próxima. Nesta habitabilidade assumem peso mais determinante os factores de: Segurança; Privacidade; Apropriação; Convivialidade; Domesticidade.

b) A urbanidade citadina estrito senso que é também qualificável de forma extrema por um conjunto de factores, de que destacamos apenas dois dos principais e que têm sido estudados e definidos por autores tanto da teoria arquitectónica e urbanística como da sociologia e da antropologia urbanas:
- Publicidade/Anonimato;
- Densidade/Intensidade/Diversidade (física, social, funcional).

c) Finalmente, a conjugação da habitabilidade e da urbanidade em sentido lato, ou seja, a conjugação da Habitabilidade Citadina com a Urbanidade Residencial, que é o universo conceptual que aqui nos interessa. Os estudos do LNEC e os referidos em b), bem como a adaptação proposta para os 15 factores QUAR são o caminho em que apostamos. Realçamos nesta mudança de escala alguns factores QUAR mais promissores como: Acessibilidade; Funcionalidade; Integração; Comunicabilidade; Atractividade. Outros factores QUAR necessitam de maior aprofundamento e transformação, alguns destes já foram referidos em a), como a Segurança, contudo outros não referidos, como a Adaptabilidade.



A Habitabilidade Citadina

Haverá Habitabilidade Citadina sempre que a cidade acolher e servir com eficiência, conforto e segurança e num clima de equidade e coesão social. A cidade vai mudando de actividades, provavelmente sem ampliar muito o grau de diversidade embora aumente a sua entropia comunicacional. Contudo verifica-se que a diversidade sociológica e sociodemográfica têm aumentado significativamente e, portanto, a Habitabilidade Citadina para que possa existir com qualidade deve contemplar a riqueza desta diversidade. Curiosamente crescem paralelamente a uniformidade civilizacional internacional e a diversidade cultural urbana das cidades e regiões, fenómeno que as propostas para a qualidade de vida urbana devem integrar positivamente. Num estudo que fizemos recentemente no LNEC sobre a habitação urbana para o futuro (10), a preocupação inicial foi a de caracterizar e tipificar esta diversidade social e sociocultural da cidade como factor positivo a contemplar para uma melhor Habitabilidade Citadina.



(fig. 24)


A Urbanidade Residencial


A Urbanidade Residencial é o conceito complementar e simétrico da Habitabilidade Citadina. A Urbanidade Residencial que se pretende para a cidade surge na lógica natural da qualificação e humanização da cidade em todas as dimensões. É também um conceito positivo da nova modernidade, que resulta tanto dos avanços técnicos e económicos como de medidas diversas, por ex.º, da conjugação dos conceitos de mobilidade sócio urbanística e de acessibilidade urbana.

O desafio é o de os cidadãos, isoladamente ou em pequenos grupos, desfrutarem de toda a cidade e de poderem exercer um maior número de actividades económicas, culturais ou recreativas em boas condições ambientais, no sentido mais lato deste termo, similares e correspondentes ás da Habitabilidade Residencial, seja nos espaços interiores seja nos espaços exteriores.

Defende-se, portanto, que o cidadão possa viver/habitar com a máxima plenitude:

- A sua casa/habitáculo;

- Os seus sítios/lugares (na casa, no bairro, na cidade, o próprio bairro e a própria cidade);

- As suas residencialidades ( a sua casa na cidade, a sua casa de família fora da cidade, a sua casa de férias, o seu hotel preferido, etc.);

- O canto onde se sinta bem (em casa, no trabalho, no café, no automóvel, etc.);

- Onde está o seu grupo (familiar, de trabalho, de amigos, a sua equipa, etc.);

- O canto onde pode, ou tem de, estar sozinho para o bem e para o mal (o lar, o hospital, a prisão);

- No extremo, será também o lugar onde se imagina habitando (no sonho, na arte).





(fig. 25)

Esta preocupação de aprofundar a Habitabilidade a nível urbano tem prosseguido sucessivamente no LNEC e teve um importante desenvolvimento num trabalho recente de síntese que reuniu as principais contribuições teóricas e teórico-práticas , essencialmente portuguesas e europeias, numa ampla perspectiva multidisciplinar sobre o que se designou de “Habitação Humanizada” (11).

O título é um pouco enganador porque o que está ali em causa é uma preocupação de humanização e de habitabilidade ampla que é defendida, em grande parte do estudo, para o desenho do espaço público e para a concepção e requalificação dos bairros e da cidade. A preocupação é a mesma que aqui estamos a tratar e que consiste em identificar a coerência de um vasto conjunto de conceitos e factores, tendo em vista a sua articulação, complementaridade e convergência, no sentido de os aproximar, compatibilizar, ou mesmo de os unificar, como grandes conceitos qualificadores de Habitabilidade e de Urbanidade, portanto prosseguindo a linha de estudos recentes que vão no sentido de convergir a Habitabilidade Urbana com a Urbanidade Residencial.






(fig. 26)


A Cidade Habitável – Objectivos e estratégia


Estamos conscientes de que estamos no início de um longo processo de estudo que, no final, torne operacional um sistema coerente de informação técnica e processual para o desenho e requalificação de zonas urbanas, de grandes áreas urbanas e da própria cidade.

Nesta etapa inicial entendemos que se deve dar prioridade ao aproveitamento de todos os estudos e reflexões teóricas que, num amplo espectro disciplinar, produziram dezenas de conceitos e factores qualificadores, como adiante veremos. Devem ser escolhidos e trabalhados aqueles que possam convergir para um sistema global de conteúdos compatíveis e contribuintes do objectivo global que designaremos de Cidade Habitável.

Além disso, propomos que se prossiga uma linha de estudos que aprofunde todos estes conceitos que a seguir se apresentam, embora sem poder aprofundar os respectivos conteúdos por evidente falta de espaço/tempo. Referimo-nos não só aos 15 factores QUAR mas também a muitos outros factores qualificadores do espaço, do ambiente da vida e da imagem urbanas nesta perspectiva de melhorar as nossas cidades em termos de Habitabilidade, Residencialidade e Humanização.



Sistema conceptual para a Cidade Habitável


A reflexão que aqui apresento é individual e significativamente condicionada por uma visão muito uni disciplinar, a da experiência pessoal em Arquitectura/Urbanismo, mas é também resultante de vários estudos e reflexões multidisciplinares desenvolvidas essencialmente por muitos colegas do LNEC.

Para o avanço dos estudos acima referidos em Cidade habitável, há que considerar um vasto conjunto de conceitos e factores qualificadores que só será operacional desde que eles sejam agrupados em três novos subsistemas sequenciais, relacionados todos com a intervenção disciplinar de Arquitectura e Urbanismo, seja em processos de expansão ou de requalificação urbanas. Consideremos, portanto, os seguintes subsistemas de conceitos e factores:

A - O dos que dão enquadramento contextual geral;
B - O dos que dão o enquadramento contextual específico, mas já focando essencialmente os aspectos conceptuais e de conteúdo;
C - O dos que dão o enquadramento técnico político como suporte ao projecto de Intervenção Urbanística.





(fig. 27)





(fig. 28)

A extensão para a cidade deste tipo de estudos, com o necessário alargamento, primeiro, a nível multidisciplinar e depois a nível interdisciplinar, dará finalmente os contributos para um completo corpo de doutrina e depois para um mais amplo leque de conhecimentos práticos de suporte ao desenho da Cidade (ou grande área urbana) Habitável. Os conceitos e factores vão ser novamente interligados sem proceder á sua prévia definição por evidente falta de espaço/tempo, mas o seu conteúdo é suficientemente evidente para a abordagem genérica que se irá fazer, salvo pequenas explicações quando se julgar pertinente.


A - Enquadramento contextual
O primeiro nível, o de enquadramento contextual à intervenção disciplinar da Arquitectura e Urbanismo deve ainda ser dividido, para maior clareza, em dois novos subsistemas de conceitos e factores:

A1 – Relativo ás dimensões Social e Política;
A2 – Relativo ás dimensões de Imagem e de Território.

O subsistema A.1 – Dimensões Social e Política

O subsistema A.1 visa essencialmente dar conteúdo positivo ás noções abrangentes de Cidadania e de Sustentabilidade, no sentido pretendido de enquadrar conceptualmente a Cidade Habitável. A Cidadania corresponde ao pleno exercício dos direitos políticos e mais concretamente aos associados á Inclusão Social. Esta qualidade corresponde á plena integração individual no seio familiar e nos grupos comunitários, compatibilizando a diversidade/densidade das culturas e actividades urbanas com as exigências de equidade e solidariedade, para que haja também dinâmica e mobilidade sociais. A Sustentabilidade Social será o objectivo e também o resultado da plena e positiva aplicação dos outros conceitos deste subsistema.

São factores de suporte a estes objectivos o passado comum, a história partilhada com as suas referências mais significativas (como são os factos e lugares com valor histórico e cultural) que propiciam identidades, tanto mais amplas quanto mais diversas e ricas forem essas referências.

São estes factores, oriundos do passado e também uma dinâmica actual e partilhada, que criam o património de identidades urbanas necessário ás apropriações da cidade pelos seus habitantes, utilizadores e grupos societários, condição para a participação democrática e para uma maior disponibilidade para as consequentes intervenções, ambos os comportamentos necessários à boa governância.

O âmbito físico e social para o exercício destes objectivos políticos é toda a cidade, contudo eles são mais entendidos e criativos ao nível da vizinhança local e próxima onde o sentido de pertença e a participação geram comportamentos mais interventivos.

Estas são condições de satisfação social que tornam uma cidade habitável por ser acolhedora, tolerante, apoiante e, portanto, aberta e fomentadora de integração e mobilidade sociais em ambiente de sociabilidade e convivialidade que são os factores urbanos correspondentes á familiaridade residencial nos conjuntos habitacionais.





(fig. 29)


Na literatura técnica e sócio-plítica sobre estes temas há um conjunto de termos que habitualmente surgem relacionados com intenções diversas mas na sua maioria convergentes para os objectivos e conteúdos que temos defendido neste caso particular das dimensões sociais e políticas para requalificação da cidade e da vida citadina.

Reúnem-se na lista seguinte alguns ou os principais desses termos. Apresenta-se depois uma hipótese da articulação desses mesmos termos formando um possível subsistema com intenções de estudo visando a sua ligação com a “Habitabilidade/Urbanidade”



IDENTIDADE participação, intervenção,
boa governância, tempo
IMAGEM
APROPRIAÇÃO
INTERVENÇÃO
HISTÓRIA: referências comuns, lugares
com história
SOCIABILIDADE
PERMANÊNCIAS
CONVIVIABILIDADE
DINÂMICAS PRÓPRIAS
SUSTENTABILIDADE SOCIAL
CIDADANIA: solidariedade, equidade, diversidade (densidade), abertura e
Disponibilidade do EP
INCLUSÃO: mixitude, mobilidade física e social, culturas urbanas
DIVERSIDADE SOCIAL
COESÃO SOCIAL






(fig. 30)


Um esquema ilustrativo deste subsistema de conceitos factores ligados às dimensões Social e Política que dão o enquadramento contextual geral, será






(fig. 31)


O subsistema A.2 – Dimensões de Imagem e de Território

Este subsistema A2 visa essencialmente dar conteúdo positivo aos conceitos de Território e de Imagem urbanos e de Sustentabilidade Ambiental, todos muito abrangentes e que também contribuem para o enquadramento urbano e contextual, portanto para a sua caracterização prévia á intervenção disciplinar de Arquitectura e Urbanismo.

A cidade está inserida no Território através de uma coerente e equilibrada integração de todas as suas partes. Esta integração é multidimensional (física, social, ambiental) e é esta integração que lhe confere uma Imagem de referência a preservar e a valorizar numa perspectiva dinâmica e evolutiva, nomeadamente na resposta aos desafios do desenvolvimento e da sustentabilidade ambiental. A Imagem positiva que se deseja para a cidade é fruto de equilíbrios entre expressões de coerência física e coesão social e expressões da riqueza dos lugares e das culturas urbanas.

Esta Imagem é feita tanto á escala mais ampla do território da cidade como das suas áreas urbanas constituintes, devendo reflectir, ambos os níveis, o carácter desse Território (relevo, textura urbana, malhas, escalas) e a contribuição identitária dos seus elementos referenciadores (ruas, quarteirões, monumentos, limiares).






(fig. 32)

O objectivo deste subsistema contextual é o de identificar como a estrutura do Território e a sua Imagem contribuem para conferir á cidade e a cada uma das suas grandes áreas um suporte físico, um ambiente, no sentido mais amplo e cultural, e uma imagem forte e positiva, factores que permitam maior identidade e adesão aos seus cidadãos.

O objectivo é promover um suporte físico coerente e integrado no território, um ambiente seguro, estimulante, confortável e equipado, uma imagem atractiva com diversos graus equilibrados de Urbanidade versus Domesticidade e de Publicidade versus Privacidade. E´ este conjunto de conceitos e factores que associamos á desejada Habitabilidade Urbana na dimensão contextual de Território e Imagem.

Contudo, o contexto está sempre em evolução, que deve ser controlada e positiva. Por isso, factores como o Ambiente, em sentido amplo, e a Imagem não são dados imutáveis e portanto haverá que manter a identidade e a adesão num processo evolutivo do Território, face aos desafios do desenvolvimento sustentável, a novas escalas do espaço urbano, ao Verde Urbano, á qualidade visual do espaço público, etc..

Na literatura técnica sobre estes temas há um conjunto de termos que habitualmente surgem relacionados com intenções diversas mas na sua maioria convergentes para os objectivos e conteúdos que temos defendido neste caso particular das dimensões ligadas à Imagem e ao Território enquadradoras da requalificação da cidade e da vida citadina. Reúnem-se na lista seguinte alguns ou os principais desses termos. Apresenta-se depois uma hipótese da articulação desses mesmos termos formando um possível subsistema com intenções de estudo visando a sua ligação com a “Habitabilidade/Urbanidade”


AMBIENTE: agradável, confortável, seguro
PRIVACIDADE - PUBLICIDADE
INTEGRAÇÃO (física e social)
VERDE URABANO
IMAGEM: referência culturais, de habitabilidade, de interioridade, de paisagem, de vitalidade
LUGAR EXISTENCIAL: estrutura, carácter, eixos, pólos, barreiras, sequências
DOMESTICIDADE – URBANIDADE:
hierarquia de graus de domesticidade
SUSTENYABILILIDADE AMBIENTAL
ATRACTIVIDADE
TERRITÓRIO: tempo, imagem escalas do habitar

Um esquema ilustrativo deste subsistema de conceitos e factores ligados às dimensões de Imagem e Território do enquadramento contextual geral, será






(fig. 33)






(fig. 34)


B – Enquadramento em aspectos conceptuais e de conteúdo


Este segundo nível de conceitos e factores que permite dar enquadramento conceptual á intervenção disciplinar da Arquitectura e Urbanismo será apresentado como um subsistema de objectivos, valores e indicadores de suporte ás intervenções urbanísticas visando privilegiar a habitabilidade, ou a humanização, das soluções e dos processos que a elas conduzem. Trata-se de harmonizar conceitos e factores que visam o bem estar dos cidadãos com os factores que apoiam a dinâmica social e socioeconómica da cidade.

Tal consegue-se no quadro disciplinar da Arquitectura e Urbanismo, harmonizando a diversidade multidimensional da cidade (física, funcional e sociocultural) com a flexibilidade e qualidade das suas morfologias e respectivas tipologias de edificado e espaço público.

Este subsistema de conceitos e factores de apoio disciplinar á Arquitectura e Urbanismo pode e deve ser dividido, para maior clareza e operacionalidade, nos seguintes três novos subsistemas da mesma natureza interligados:

1) Um subsistema, de âmbito mais geral, que articula conceitos e factores ligados a objectivos conceptuais muito gerais:

- de funcionamento da cidade: Diversidade Social; Modos de Vida Urbana; Actividades; Animação Urbana; Acessibilidades.

- de suporte físico da cidade: Densidade; Espaço Público; Unidades Tipológicas; Diversidade Física; etc..

2) Um subsistema de âmbito mais específico por ser mais disciplinar, a partir do subsistema mais geral acima referido, pormenorizando aqueles e outros objectivos de ordem conceptual:

- sociais, como são os de: Bem Estar; Saúde Plena; Interacção Social;

- urbanísticos como são os de: Diversidade; Densidade Construtiva; Transportes;

- definidores das políticas de intervenção combinando Requalificação e Reabilitação com Renovação e Modernização.

3) Um subsistema igualmente mais específico que visa clarificar e harmonizar conceitos e factores conceptuais ligados á forma urbana (morfologias e tipologias do espaço público e tipologias definidoras do suporte edificado) visando a maior satisfação dos moradores/cidadãos (o seu bem estar, saúde, convivialidade) e a melhor realização das suas actividades de trabalho, lazer, cultura. Este objectivo deve fazer-se, nomeadamente, através:

- da clarificação da estrutura e do carácter das zonas urbanas;

- da correcta aplicação da noção de escala nas hierarquias tipológicas;

- da clarificação da hierarquia de unidades tipológicas urbanas (rua, praça, quarteirão, etc.);

- da diversidade de tipologias e suas variantes;

– da definição de unidades de proximidade.






(fig. 35)

Estes três níveis de conceitos e factores conceptuais (A, B,C) quando definidos no sentido mais correcto e humanizador e devidamente conjugados para a gestão urbana corrente, propiciam a desejada Urbanidade Residencial sustentável, contudo sem prejuízo das, ou antes favorecendo as, dinâmicas urbanas positivas. Tal deve ser feito sem desvirtuar as sociabilidades e as formas urbanas identitárias.

Cria-se assim um ambiente e uma prática técnico política e programática que estabelece ligações coerentes entre vida urbana, quadro físico e prática urbanística em defesa do bem estar dos cidadãos numa perspectiva humanizadora e de Habitabilidade Urbana a nível individual e comunitário.

Na literatura técnica sobre estes temas há um conjunto de termos que habitualmente surgem relacionados com intenções diversas mas na sua maioria convergentes para os objectivos e conteúdos que temos defendido neste caso particular das dimensões conceptuais enquadradoras das intervenções urbanísticas visando a requalificação da cidade e a vida citadina. Reúnem-se na lista seguinte alguns ou os principais desses termos. Apresenta-se depois uma hipótese da articulação desses mesmos termos formando um possível subsistema com intenções de estudo visando a sua ligação com a “Habitabilidade/Urbanidade”

ESTAR: realizando-se, estar bem
ATRACTIVIDADE
FRUIR
ESPAÇO PÚBLICO (EP): ruas, praça,
alameda,
SAÚDE FÍSICA E MENTAL
UNIDADES TIPOLÓGICAS: edifício, quarteirão, banda
CIDADANIA
CIDADE EQUIPADA
RELAÇÕES SOCIAIS
ACTIVIDADES URBANAS
CONVIVABILIDADE:comunicabilidade,
proximidade
DIVERSIDADE FUNCIONAL
VIDA URBANA: animação, vivificação
do EP
RENOVAÇÃO URBANA
INTERACÇÃO SOCIAL: sociabilidade
REQUALIFICAÇÃO URBANA
DINAMISMO E MUTAÇÕES:
Acessibilidades, equipamento, renovação
INOVAÇÃO
DIVERSIDADE FUNCIONAL: inovação
modernização, mixitude


Um esquema ilustrativo deste subsistema de conceitos e factores que dão enquadramento conceptual à intervenção disciplinar de Arquitectura e Urbanismo, será





(fig. 36)


C - Enquadramento técnico político como suporte ao projecto de Intervenção Urbanística.
Este terceiro e último subsistema de conceitos e factores é o que dá suporte ás intervenções disciplinares de Arquitectura e Urbanismo ao nível de Pré-projecto e de Projecto, seja para operações de extensão urbana, seja para operações de Renovação, Reabilitação ou Reconversão urbanas, seja ainda para operações mistas que são as mais naturais e desejáveis.

Estes conceitos e factores procuram definir e reforçar a Habitabilidade Urbana destas intervenções urbanísticas, o que necessita da correcta contribuição dos subsistemas, antes apresentados, que visavam a criação de condições contextuais no mesmo sentido.

Este subsistema é igualmente vasto e, por isso, o seu eficaz funcionamento e aplicação depende da correcção e da clareza de cada um dos seus elementos conceptuais e qualificadores e da sua coerente interligação em apoio ao processo de Projecto Urbano.

Para cumprir este objectivo o subsistema de conceitos e factores de apoio ao processo de Projecto é a seguir descrito dividindo-o em cinco novos subsistemas da mesma natureza, visando:

1. Objectivos estratégicos

2. A concretização programática de actividades;

3. A qualidade técnica disciplinar em Arquitectura e Urbanismo;

4. O suporte ao Desenho Urbano;

5. O suporte processual.

1. O subsistema dos objectivos estratégicos de suporte ao Projecto de Intervenção. Trata-se essencialmente de reunir e integrar um conjunto de objectivos gerais e estratégicos, de índole técnico política, que devem marcar o entendimento e a definição do tipo de intervenção. Deverá por isso clarificar o papel e o grau de aplicação dos seguintes objectivos, conceitos e factores:

- A Sustentabilidade Ambiental ao nível urbano e da edificação;
- O Verde Urbano e o Desenho Bioclimático;
- A Sustentabilidade Económica envolvendo o apoio á Vitalidade Urbana, a Reciclagem/Reutilização/Redução e a Durabilidade física e funcional;
- A Sustentabilidade Social ao nível da inclusão e da Programação Participada.

2. O subsistema da concretização programática das actividades e seus conteúdos (residência, trabalho, lazer, circulação, etc.) em que, além da já referida Programação Participada, deve figurar a Programação Realista e Evolutiva (tipologias habitacionais, espaços para serviços, etc.) que deverá ser cruzada com os Factores de Qualidade Arquitectónica Residencial (QUAR), já estudados e ensaiados pelo LNEC (1) em avaliações á micro escala urbana, mas que será de estudar e aplicar agora á macro escala urbana, valorizando características, por ex.º, de Neutralidade e de Flexibilidade no âmbito do factor Funcionalidade.

3. O subsistema de suporte á qualidade técnica disciplinar de Arquitectura e Urbanismo do Projecto de Intervenção. Trata-se aqui de proceder ao estudo e aplicação da maioria dos Factores de Qualidade Arquitectónica Residencial (QUAR) já estudados e ensaiados pelo LNEC (1) em avaliações á micro escala urbana, a estudar e aplicar, agora à macro escala urbana, juntamente com outros factores mais técnicos e quantitativos que os completam. Propõe-se assim o desenvolvimento de todos estes factores visando a Habitabilidade Urbana do Projecto Urbanístico, nomeadamente com o estudo de novas características a associar aos conceitos e factores seguintes:

- Segurança Urbana, com relevo para a clareza do desenho espacial, a segurança nas acessibilidades e a iluminação;
- Conforto/Agradabilidade, agora com os factores ambientais e de higiene a colocarem-se noutra dimensão (ambiente urbano, saúde pública, saneamento urbano);
- o conjunto de outros factores de QUAR ainda não referidos, com relevo para a Acessibilidade e o Desenho Inclusivo e para a Integração Física (relevo, envolvente urbana, escala, continuidades construídas, etc.).

4. O subsistema de suporte ao Desenho Urbano numa perspectiva estratégica, reunindo o conjunto de conceitos e factores que podem informar a qualidade visual/formal a nível disciplinar da Arquitectura e Urbanismo. Trata-se de vários conceitos ligados a muitos dos factores QUAR, acima referidos, que se podem fundir com eles ou ter aqui uma evolução autónoma. Estes factores assim ampliados devem apoiar o objectivo aqui pretendido de Habitabilidade Urbana no Desenho da Cidade, da micro á macro escala, qualificando especialmente os seguintes aspectos:

- o conceito arquitectónico e urbanístico de Escala, nomeadamente com a contribuição de noções como adequação, relacionamento, representatividade, enraizamento cultural, significância espacial e formal;
- os conceitos de Desenho Urbano e de Composição, nomeadamente através das noções de estrutura, áreas coesas, pólos e eixos urbanos, diversidade tipológica, continuidades construídas, envolventes comunicantes, etc.;
- o conceito de Pormenor, nomeadamente através das noções de dedicação, cuidado, equipamento, adequação, inclusão, decor, etc..

5. Finalmente, o subsistema de conceitos e factores de suporte ao desenvolvimento processual, que promove e acompanha uma Intervenção Urbanística e que pode ser um elemento fundamental para reforçar a Habitabilidade e a Humanização urbanas. Contudo, há que acautelar este nível processual porque, por incúria, pode inverter ou anular as boas intenções pressupostas nos outros quatro subsistemas de conceitos e factores acima referidos. Trata-se essencialmente de:

- assegurar a Programação Participada, já referida;
- dar o suficiente suporte ao Processo de Intervenção Urbanística, de forma mais aproximada dos cidadãos, percorrendo cuidadosamente as várias fases e a transição entre fases;
- assegurar uma participação mais alargada nas fases de concepção, de realização, de promoção e de gestão;
- promover a interdisciplinaridade;
- aceitar os procedimentos evolutivos;
- interiorizar as noções de subsidiariedade e de endogenia.




(fig. 37)




(fig. 38)






(fig. 39)


Na literatura técnica sobre estes temas há um conjunto de termos que habitualmente surgem relacionados com intenções diversas mas na sua maioria convergentes para os objectivos e conteúdos que temos defendido neste caso particular das dimensões enquadradoras da prática projectual das intervenções urbanísticas visando a requalificação da cidade e a vida citadina. Reúnem-se na lista seguintes alguns ou os principais desses termos. Apresenta-se depois uma hipótese da articulação desses mesmos termos formando um possível subsistema com intenções de estudo visando a sua ligação com a “Habitabilidade/Urbanidade”


DESENHO: pólos, eixos, áreas coesas,
continuidades, diversidade
PROCESSO: preparação, participação,
evolução, interdisciplinaridade
ESCALA: adequação, relacionamento,
prioridade pela escala média, enraizamento cultural
ESPACIOSIDADE: física e psicológica
SEGURANÇA URBANA: desenho claro, boa iluminação
CAPACIDADE
CONFORTO/AGRADABILIDADE:
envolventes comunicativas,
SUSTENTABILIDADE ECONÓMICA:
apoio à vitalidade económica
SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL
CAPACIDADE EVOLUTIVA
DURABILIDADE: reciclagem, redução,
reutilização
PROGRAMAÇÃO: participada, realista
FUNCIONALIDADE: possibilidades evolutivas
DESENHO URBANO: morfologia clara e hierarquizada, uso completo do léxico tradicional
NEUTRALIDADE
PORMENOR
FLEXIBILIDADE
Outros Factores QUAR: acessibilidade, desenho universal, integração física


Um esquema ilustrativo deste subsistema de dimensões de suporte processual ao Projecto de Intervenção Urbanística disciplinar de Arquitectura e Urbanismo, será






(fig. 40)


CONCLUSÃO

Este texto é uma contribuição pessoal, a partir de algumas contribuições minhas mas sobretudo de múltiplas contribuições de colegas do Departamento de Edifícios do LNEC, essencialmente arquitectos e sociólogos, não esquecendo os engenheiros que estudam os temas de conforto ambiental. É uma reflexão sobre o tema da Cidade Habitável que visa estimular a continuidade dos estudos até aqui desenvolvidos ao nível da habitação, mas agora no sentido amplo a nível multidisciplinar e macro urbano.

Haverá, nomeadamente, que confrontar os conceitos e factores estudados, essencialmente habitacionais, com os que têm sido estudados apenas numa perspectiva citadina ou macro urbanística. Com este objectivo movimentaram-se, ao longo da exposição, dezenas de conceitos e factores qualificadores que se foram organizando em subsistemas de um sistema geral abrangente de toda esta problemática, dirigida a tornar a cidade mais habitável. Não foi possível no curto espaço/tempo desta exposição fazer uma explicação de cada conceito ou factor envolvido, mas a noção geral que se tem da maioria deles na teoria da arquitectura e do urbanismo é de fácil apreensão e é suficiente para fazer transmitir a mensagem pretendida. Um ou outro necessitaria de maior explanação e aprofundamento para tornar o discurso, nesses casos, mais eficaz e mais circunscrito ao objectivo pretendido e, pontualmente, isso foi feito.






(fig. 41)


O objectivo principal é o de transferir os conhecimentos e os conceitos já desenvolvidos para conceber, qualificar e avaliar as pequenas intervenções arquitectónicas e urbanismo habitacional para a escala da cidade ou, pelo menos, a das grandes áreas urbanas. Há aqui um largo caminho de estudo e de investigação multidisciplinar a percorrer com o objectivo de tornar a cidade actual mais agradável, acolhedora, sustentável, enfim mais habitável e humanizada.

António Manuel Reis Cabrita
Lisboa, Dezembro de 2007

Notas:
(10) MORGADO, Luís – “Habitação para o futuro – Tipologias emergentes“, estudo orientado A. M. Reis Cabrita, Lisboa, LNEC, 2003.

(11) COELHO, António Baptista – “Habitação Humanizada”, Lisboa, LNEC, 2006.


Este texto sobre a “cidade habitável” foi realizado por Reis Cabrita, primeiro, para enquadramento de uma conferência em Sevilha, no âmbito de um conjunto de conferências, sob o título “Cidade Viva” promovido pela escola de Arquitectura dessa cidade em Janeiro de 2008.

Mais tarde Reis Cabrita reinterpretou o mesmo texto para apoio a uma outra conferência, que teve lugar no Centro de Congressos do LNEC, em 4 de Março de 2008, no âmbito da apresentação do livro “Habitação Humanizada”.

O texto foi articulado em duas partes sequenciais e formatado para ser editado no Infohabitar no início de Abril de 2008; as figuras que ilustram o texto referem-se à apresentação de Power Point que foi feita por Reis Cabrita para apresentação nas referidas conferências (manteve-se o mais possível o formato de Power Point para se conseguir uma certa estruturação do próprio artigo).

Editado no Infohabitar em 20 de Abril de 2008 por José Baptista Coelho.