segunda-feira, novembro 24, 2008

223 - VIVER BEM EM CASA OU VIVER BEM NUM DADO ESPAÇO URBANO - Infohabitar 223

Infohabitar 223
artigo de António Baptista Coelho

Série habitar e viver (melhor), II: VIVER BEM EM CASA OU VIVER BEM NUM DADO ESPAÇO URBANO

VIVER A CASA E VIVER A CIDADE


Podemos estar satisfeitos com uma casa e não estar satisfeitos com a respectiva vizinhança? É difícil que isso aconteça, pois vivemos a casa da porta para dentro e da porta para fora e a boa ou má influência que a envolvente residencial nos transmita irá, sem dúvida, reflectir-se na maior ou menor satisfação que sentimos com o sítio onde vivemos, que quer dizer o sítio que habitamos e que, claramente, abarca bastante mais do que as “quatro paredes” da nossa casa.

A ideia que fica é que podemos, eventualmente, considerar a nossa casa, a tal entre “quatro paredes”, grande parte do sítio que habitamos, e, fundamentalmente, como um verdadeiro refúgio. Tal condição acontecerá, provavelmente, em situações, aparentemente, tão distintas como num bairro caracterizado por um ambiente social complexo e, eventualmente, por más condições de segurança, mas também, por exemplo, num sítio em que vivamos, por exemplo, numa moradia isolada, que pode estar até muito bem equipada, mas onde a respectiva envolvente pouco ou nada nos ofereça em termos de outras dimensões residenciais e urbanas.


Fig. 01: num espaço urbano vitalizado e com excelente escala humana do centro de Coimbra (no decurso de uma visita do Grupo Habitar apoiada pela CM de Coimbra e pelo seu Gabinete para o Centro Histórico)

A comparação foi feita entre pólos tão distintos para que se sinta a importância do que está para lá da porta de entrada da nossa casa, um pequeno mundo de vizinhança que pode ser exactamente, isso mesmo, um “pequeno mundo de vizinhança”, pleno de cenários habitáveis e de relações potenciais, ou então uma espécie de terra de ninguém que só nos dá problemas.

Tal como nos diz M. Imbert (1), em França, nos quase sempre tristes "Grands Ensembles", os habitantes dirigiram a sua satisfação residencial para a habitação, salientando os problemas urbanos das respectivas áreas residenciais. Mas aqui os habitantes encararam, frequentemente, situações urbanísticas caracterizadas por uma crítica carência de vida urbana.

Nesta perspectiva os habitantes dos "Grands Ensembles" valorizaram os aspectos naturais do sítio e o conforto do fogo, apontando já alguns aspectos fulcrais dos erros urbanísticos (afastamento ao centro, problemas de vizinhança, sub-equipamento, etc.), mas esta era a geração cuja felicidade residencial estava em boa parte cumprida com a existência de uma habitação higiénica e funcional, era uma geração saída dos terríveis sacrifícios da guerra.

No entanto as gerações seguintes já tiveram outros termos de referência no que se refere à felicidade residencial, que não a destruição da guerra, e então, com certeza não só devido a essas condições de vizinhança, mas também por causa delas, a revolta começou a grassar nas periferias desumanizadas e soltas da cidade.


Fig. 02: a agradável continuidade urbana e residencial de Campo de Ourique, Lisboa.

Ainda antes de voltar a evidenciar esta fundamental alternativa de se poder viver uma vizinhança urbana viva, atraente, apropriável e ligada à cidade, qualidades estas que dificilmente se encontram em grandes conjuntos habitacionais periféricos, massivamente desenhados e sem vida, importa sublinhar que a referida situação relacional do “para lá das quatro paredes e da porta de entrada da nossa casa”, coloca uma perspectiva raramente interiorizada, mas que parece ser real e muito importante em termos de oferta de um amplo leque de soluções de habitar, referimo-nos à ideia de que o que realmente interessa a cada um de nós, habitante, é “a nossa casa” e, depois, provavelmente, o sítio que habitamos; e, desta forma, entre estes dois pequenos mundos – casa e sítio – uma outra dimensão arquitectónica e urbana fica, de certa forma, “no limbo”, referimo-nos ao edifício.

E podemos considerar mesmo que o edifício poderá ser uma realidade que tratemos de forma muito flexibilizada e operacionalizada considerando-o apenas na medida em que nos seja útil em termos de projecto de arquitectura e em termos de diálogo com os habitantes, porque o que realmente nos interessa é a nossa casa e o nosso sítio, um sítio que terá sempre a ver com uma vizinhança, com um bairro e com uma cidade, se estivermos a falar de um verdadeiro “sítio”.

Mas voltando à questão de uma potencial/teórica escolha entre felicidade doméstica ou felicidade residencial, considerando que esta última integra uma activa relação com o sítio que se habita, podemos “virar o bico ao prego” e lembrarmo-nos de sítios onde são as condições urbanas e de vizinhança que, de certa forma, equilibram negativas condições domésticas – situação que provavelmente caracterizou e caracteriza alguns bairros de barracas e casas abarracadas – e de sítios onde são as agradáveis condições urbanas que se assumem como verdadeiros complementos funcionais, espaciais e ambientais de condições domésticas espacialmente escassas.


Fig. 03: da velha cidade coesa e significante, no Bairro da Sé, no Porto, quando de uma outra visita do Grupo Habitar.

DA CIDADE COESA E SIGNIFICANTE

Etienne de Gröer escreveu que:"Avenidas que não conduzem a nada e cuja grande largura não corresponde a nenhuma função são sempre desertos cheios de poeira" (2).

Falar de cidades felizes, feitas de sítios felizes, é falar de Avenidas e ruas que levam a sítios específicos e cujas características físicas têm uma fundamentação adequada.

Sobre estas matérias de um tecido urbano coeso e sobre uma cidade habitada e bem marcada pelo homem Kevin Lynch (3) sublinha a falta de modelos intermédios de humanização, entre a zona urbana muito animada e o espaço residencial muito sossegado, e este autor reconhece o interesse de uma afirmada humanização da cena urbana que caracterize as ruas residenciais secundárias, apontando, mesmo, algumas soluções formais: a rua encurvada, a ruela sem saída com um remate ajardinado e a praceta residencial. Lynch vai, assim, ao âmago da questão da frequente falta de “sítios felizes” ou potencialmente felizes nas nossas cidades, pois a preocupação dirige-se ou para o “funcionamento” da cidade ou para o edifício, que, provavelmente, ainda não se libertou do anátema de ser considerado uma “máquina de habitar”.

Mas falar de cidades felizes é, acima de tudo, falar de bairros animados e atraentes e de vizinhanças que nos agradam, quando por elas passamos, por vezes sem entendermos a razão desta relação de atracção. E no entanto que ela existe e se exerce, felizmente, em muitos sítios, é um facto real e um facto que está bem aparente no seguinte comentário que um grupo de investigadores do CSTB escreveu e editou sobre os miolos urbanos vivos e felizes do interior do Bairro de Alvalade, em Lisboa:


Fig. 04: espaços urbanos que sejam espaços amigáveis e habitados.


Fig. 05: um pormenor de Benfica, carregado de vida.

“C’est un urbanisme qui réussit à articuler et à hierarchiser, sur une grande échelle urbaine, les différents espaces – des avenues aux impasses, et des espaces les plus publics aux espaces les plus privés. Il est surprenant que cet exemple ne soit pas valorisé davantage, dans la littérature professionelle internationale; il représente en effet une forma idéalt/ypique de la ville urbaine moderne, comparable à celle élaborée par Haussman à Paris ou par Cerda à Barcelone.

A propos de l’Alvalade il faut d’abord parler du plaisir de la déambulation au hasard des avenues et des rues, jusqu’au coeur des îlots. Nous avons retrouvé ce plaisir typiquement urbain du promeneur qui flâne, erre, découvre un lieu inconnu, se laisse surprendre au milieu d’une placette aux allures villageoises, par la diversité des porches, par les mille détails de modénature, par l’échappée visuelle sur un clocher, par l’ambiance champêtre d’un jardin, puis par l’animation d’une grande avenue et qui se prend à rêver qu’il pourrait lui aussi vivre dans cet appartement dont la fenêtre est ouverte et dont s’échappe une odeur de cuisine qui lui évoque des souvenirs...

Peut-être est-ce là un indice subjectif, mais néanmoins bien réel, da la qualité d’un quartier: la capacité du promeneur à s’imaginer habitant le lieu et à l’investir?” (4)

Não é possível deixar de comentar, a propósito deste excelente texto, tão sintético como expressivo, que estão aqui identificadas boa parte das razões de as casas poderem ajudar a uma verdadeira e expressiva satisfação dos seus moradores, e boa parte dessas razões estão nas vizinhanças e no cuidado que houve no seu desenho público, isto é na coordenação entre todas as formas urbanas exteriores – edifícios e espaços exteriores.

Há, assim, já aqui uma tendência para o privilegiar dos espaços de vizinhança, numa sua força pública, que se retomará, noutros artigos desta série, de outras formas.

Notas:
(1) M. Imbert, "Mission d'Études de la Ville Nouvelle du Vaudreil", p. 17.

(2) Etienne de Groer, "Introdução ao Urbanismo", p. 61.

(3) Kevin Lynch, "La Buena Forma de la Ciudad", p. 299.

(4) GUIGOU, Brigitte, LAFORGUE, Jean Didier, SÉCHET Patrice, Qualité architecturale et urbaine et satisfaction résidentielle – Projet nº 233 H3, Rapport de mission”, Programme de Coopération Scientifique et Technique Luso-Française – Centre Scientifique et Technique du Bâtiment (CSTB) – Laboratoire National d’Ingénierie Civile (LNEC), Laboratoire de Sociologie Urbaine Générative, CSTB, Paris, Setembro 1999, p.10.

Edição Infohabitar
Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, de Novembro de 2008
Edição de José Baptista Coelho

segunda-feira, novembro 17, 2008

222 - A importância de um verdadeiro habitar - Infohabitar 222

Infohabitar 222

Série habitar e viver, I: A importância de um verdadeiro habitar

artigo de António Baptista Coelho


Introdução à série de artigos: “Habitar e viver”
Com o texto que se segue inicia-se o que se espera vir a ser uma nova e longa série de artigos, realizados numa perspectiva, que se considera fundamental, de se assumirem os espaços residenciais como factores decisivos numa vida pessoal e urbana verdadeiramente satisfatória e estimulante.

Ao longo de muitos textos iremos falar, aqui, de casas pensadas para serem bem habitadas, de como foram pensadas pelos seus autores e de como as pessoas as habitam e as pensam, quando as habitam. Iremos passear pelos espaços que medeiam entre a cidade e o habitar íntimo, e, naturalmente, num sentido contrário, físico e visual, num ciclo que se deseja virtuoso e não vicioso, embora lhe conheçamos, naturalmente, muitos vícios, quando lembramos tantos sítios que “habitamos”.

A ideia é irmos pensando sobre tais espaços entre a cidade e a casa e entre a casa e a cidade, em abordagens mais específicas sobre determinados níveis e cenários mais urbanos, mais de vizinhança, mais familiares ou mais íntimos, numa sequência de artigos que terá, por vezes, mudanças de sentido e de ritmo, assim como visará diferentes perspectivas, por exemplo, mais teóricas, mais práticas, mais ambientais, mais simbólicas, etc., etc.



Fig. 00: o jogo da glória diário, da casa às zonas mais animadas da cidade e em sentido contrário, num ciclo que não pode ser vicioso.

Falarmos dos ciclos ou do jogo da glória entre cidade e casa, ou melhor entre cidade, bairro, vizinhança e casa e depois na sequência inversa, dos interiores domésticos aos “interiores” urbanos, não significa esquecermos a natureza, seja numa perspectiva de paisagem global, na qual uma boa cidade se deverá integrar positivamente melhorando, pela cultura, a ordem natural, seja numa perspectiva pormenorizada da inserção da natureza no urbano, e das mil formas que tem de assumir a natureza na cidade, humanizando-a, é um facto, e aproximando-a da sua matriz natural; ainda que, eventualmente, pela quase-ausência de elementos naturais, possamos, por exemplo, centrarmo-nos num pequeno jardim urbano estratégico, que pode ser até uma única árvore rodeada da cidade do pormenor.

Num mundo globalizado e reduzido pelas tecnologias de informação, numa vida marcada pela falta de tempo para quase tudo, numa perspectiva estruturada por estratégias de consumismo geminadas com planos de vida rigidamente estruturados, num século que parece que se teria iniciado sem ideologias e com a ideia de que certas qualidades, como o convívio, a solidariedade e até a capacidade poética, seriam meras perdas de tempo sem sentido; e que afinal acorda para a mais que provável total insensatez de tais ideias e para problemas de qualidade de vida diária que muitos pensavam serem já fantasmas do passado, é talvez a boa altura de nos determos sobre a importância que pode ter uma verdadeira qualidade do nosso habitar no dia-a-dia.


Fig. 01

E ao entender que essa qualidade pode ser realmente muito marcante numa vida mais agradável e com mais significado, poderemos querer começar a ter muito mais cuidado com as características do habitar desse nosso jogo que se quer da glória e nunca de um desagrado, tantas vezes profundo, com tantos dos elementos que integram os nossos cenários de vida.

Aqui iremos sempre, numa “profissão de fé” clara sobre a certeza de que a qualidade residencial é fundamental para uma vida melhor e mais estimulante e que uma tal importância decorre de muitos, muitos mais aspectos para além dos funcionais, e será mesmo possível afirmar, desde já, que alguns dos principais problemas de inadequação e de rejeição de determinadas soluções de habitar têm a ver, exactamente, com ter-se dado, durante dezenas de anos uma inusitada importância à funcionalidade doméstica e residencial, num sentido estrito de funcionalidade “mecânica”, e de se ter considerado que a funcionalidade, por si só, seria capaz de qualificar uma dada solução residencial e urbana, o que foi e é, sem dúvida, um gravíssimo erro.



Fig. 02

Algumas notas de enquadramento sobre a importância e a natureza do habitar

Habitar deve poder ser feito na casa de cada um e na vizinhança de cada um, a vizinhança que, por um lado, amplia a casa e que, por outro, traz a cidade até essa vizinhança.

Habita-se, assim, uma espiral contínua de níveis físicos residenciais, desde os limites de um bairro aos espaços domésticos, passando pelos agrupamentos residenciais que, desejavelmente, devem constituir sistemas de vizinhança de proximidade, verdadeiramente coesos e atraentes em termos funcionais e visuais.

E nesta espiral do habitar não passamos só pelos principais mundos residenciais – o centro urbano, o acesso ao centro, o bairro, a vizinhança, o edifício e a habitação –, mas também usamos, intensamente, os limiares e os elementos de relação e de transição entre aqueles; e há até quem afirme que a Arquitectura está, privilegiadamente, nesses elementos de relação …, pois, afinal, são essas transições e ligações que verdadeiramente podem assegurar a continuidade e concatenação espacial, funcional e ambiental que deve caracterizar essa espiral.

Noutro trabalho, editado há alguns anos e onde faço uma apresentação sistemática, exaustiva e diversificada dessa espiral - “Do Bairro e da Vizinhança à Habitação”, ITA 2, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, 2000 –, chamei-lhe "jogo da glória" diário, um jogo que se desenvolve entre os as nossas casas, as ruas onde moramos, os cafés e quiosques onde, habitualmente, paramos um pouco, não só por qualquer necessidade, como será beber um café ou comprar o jornal, mas por qualquer outra vontade de parar e beber um café enquanto se passa os olhos pelo jornal, e, depois, a entrada nos grandes fluxos urbanos já mais estranhos ao nosso bairro, até, que finalmente, chegamos ao sítio onde trabalhamos.



Fig. 03

Mas o "jogo da glória" diário continua com os nosso percursos habituais a meio do dia, também pontuados pelos mais diversos ambientes, espaços e relacionamentos, até que, depois, no final do dia, fazemos o percurso inverso, que nos traz de volta ao nosso espaço de habitar familiar e pessoal, através de uma sequência de cenários urbanos desejavelmente vivos, seguros e estimulantemente encadeados.

Já aqui se regista algo que irá marcar toda esta reflexão, que é o diálogo constante que é necessário fazer e aplicar, em termos práticos, entre objectivos funcionais e outros objectivos essenciais para se viver com alegria e satisfação, e já Christian Norberg-Schulz escreveu que:

"A arquitectura preocupa-se com algo mais do que necessidades práticas e economia. Ela trata de significados. Os significados derivam de fenómenos naturais, humanos e espirituais, e são experimentados como ordem e carácter. A arquitectura traduz estes significados em formas espaciais. As formas espaciais em arquitectura não são nem Euclidianas nem Einsteinianas. Em arquitectura as formas espaciais significam lugar, percurso e domínio, isto é, a estrutura concreta do ambiente humano. Por isso a arquitectura não pode ser satisfatoriamente descrita através de conceitos geométricos e semiológicos. A arquitectura deve ser entendida em termos de formas significantes".

Nesta viagem por alguns modos de fazer boas casas e bons sítios de vida, afinal, bons sítios de habitar, iremos então pensar sobre formas significantes, mas também sobre formas e elementos que satisfaçam os habitantes, e, também aqui, nem tudo o que nos satisfaz é do foro funcional.

Iremos então aqui pensar um pouco sobre o "jogo da glória" urbano diário e sobre conjuntos diversificados de qualidades, umas mais mensuráveis outras menos, mas não iremos aqui tratar de fornecer os parâmetros dessas qualidades, que estão disponíveis no livro que referi, nem, por uma questão de opção, iremos andar a passear pela cidade. Um tal passeio citadino, sem dúvida útil, terá de ficar para outras oportunidades, mas nesta série de artigos falaremos apenas da cidade das vizinhanças e dos espaços residenciais pormenorizados dos edifícios e das habitações; sublinha-se, assim, que, embora se reconheça a importância determinante do espaço urbano, considerado numa perspectiva de continuidade urbana bem viva e caracterizada, esse papel protagonista da cidade habitada/humanizada não será aqui, nesta série, objectiva e extensamente comentado.

De facto a importância da “boa cidade” para um bom habitar é determinante, tal como ficou acima apontado nas referências feitas ao “jogo da glória" diário entre os nossos pequenos mundos domésticos, passando pela esquina da vizinhança onde dizemos bom-dia ao jornaleiro, até aos sítios da cidade onde trabalhamos e onde, afinal, também habitamos. Mas não se pode pensar sobre tudo ao mesmo tempo e assim iremos ficar pelo início e fim desse “jogo da glória" diário, e iremos, provavelmente, até essa esquina, embora focando, sempre mais, os mundos de proximidade que se desenvolvem dentro e na envolvente directa das nossas casas.




Fig. 04: as vizinhanças de Nuno Teotónio pereira e Pinto de Freitas em Olivais Norte, Lisboa

Mas além de um tal “jogo da glória" diário cidade-casa-cidade há mais a dizer, de forma destacada, sobre um habitar mais qualificado e que em nós produza verdadeira satisfação, pois a habitação não deve ser mais considerada somente como um bem de consumo que responde a imperativos funcionais, mas também como um bem cultural. O habitar deve deslocar-se, diz Jean Nouvel, “para o domínio dos bens de consumo culturais, domínio para o qual evolui realmente uma parte da sociedade” (Éleb e Chatelet, “Urbanité, sociabilité et intimité des logements d’aujourd’hui”, p. 247).


E, sinceramente, nunca acreditei que a habitação e o habitar pudessem ser considerados como bens de consumo funcionais e tenho mesmo a noção que quando tal aconteceu e acontece não houve nem há verdadeira satisfação com o habitar, haverá, sim, um habitar potencialmente influenciador de uma vida menos motivadora; pois há muito mais no habitar para lá da funcionalidade, diria mesmo que o verdadeiro habitar começa além da funcionalidade e quando a funcionalidade é verdadeiramente estruturadora é porque se conjugou com outras qualidades do verdadeiro habitar como os aspectos culturais, a versatilidade dos usos, a atractividade urbana, etc., etc.



Fig. 5: Uma vista do apartamento mobilado da Casa Milá, de Gaudi, em Barcelona.

“Habitar e viver”

"Em caixas sobrepostas vivem os habitantes da grande cidade...O número da rua e a designação do andar fixam a localização do nosso «buraco convencional», mas a nossa casa não tem nem espaço à volta dela, nem verticalidade...A nossa casa não tem raiz...os arranha-céus não têm cave...Os edifícios na cidade só têm uma altura exterior. Os elevadores destroem os heroísmos da escada... falta aos diferentes compartimentos do alojamento refugiado num andar um dos princípios fundamentais para distinguir e clarificar os valores da intimidade. E o estar em casa não é mais do que uma simples horizontalidade"(1); neste texto Gaston Bachelard identifica um conjunto de aspectos potencialmente geradores de um mau habitar, ou, pelo menos, de uma crítica indiferença residencial, uma indiferença que, rapidamente, irá degenerar em más influências na nossa vida diária; não será um texto de síntese sobre esta matéria, mas nele fica evidenciado muito do que nos desagrada nas casas que habitamos, e ao longo desta série de artigos tentaremos ir reflectindo de forma prática sobre estes e outros aspectos afins, auxiliando-nos de muitos exemplos que provam ser possível viver em boas casas pelo mesmo custo financeiro do viver nessas tristes casas a que se refere Bachelard.

Keil do Amaral associou à qualidade arquitectónica as "conjugações significativas de edifícios correntes com boa qualidade arquitectónica e bem agrupados ao longo das ruas, ou envolvendo praças, ou enquadrando monumentos, ou valorizando parques e jardins, ou dispostos segundo critérios actuais, menos formalistas... " (2); e, muito provavelmente, boa parte do que caracteriza o bom habitar é consequência desta “normalidade” organizativa e formal, um excelente quadro onde as nossas vidas podem ser protagonistas.

E partilha-se a opinião do Arq.º George Ferguson, Presidente do RIBA (em 2004), que referiu estar convencido que de um melhor desenho resulta um melhor habitar, através de uma mais ampla e profunda satisfação com o habitar, seja esse habitar exercido numa escola, num escritório ou, naturalmente, numa habitação (3). Todos estaremos, porventura, de acordo que, se assim for, e considerando conjuntos habitacionais que são frequentemente dedicados a pessoas socialmente desfavorecidas, é provável que a promoção de habitação de interesse social, apoiada pelo Estado, possa e deva assumir um papel de relevo como ferramenta de apoio ao desenvolvimento pessoal e social dessas pessoas e das respectivas vizinhanças e comunidades locais, e, nesta perspectiva, é fundamental desenvolverem-se e aplicarem-se neste tipo de promoção habitacional verdadeiras linhas de humanização do habitar, linhas estas que pouco têm a ver com os custos, mas sim, essencialmente, com uma verdadeira qualidade do projecto urbano e doméstico.

Trata-se de um facto conhecido, mas parece que tem sido pouco interiorizado pela própria sociedade, em termos da importância que tem no que se refere à evolução de soluções de forma/função em ligação, por um lado, com a história da cultura e do sequencial enriquecimento do nosso património urbano, e, por outro, com os aspectos da satisfação das necessidades e dos desejos de uma grande diversidade de grupos socioculturais; pois tem de ficar claro que viver numa obra de boa arquitectura residencial é realmente uma experiência muito positiva.

Sobre a construção dos nossos pequenos mundos domésticos o arquitecto e o habitante P. Céleste refere que se trata “de ocupar um sítio, de estar em sua casa, de produzir uma habitação calorosa. O contexto é o que nos anima. Há peças que devem ver o exterior e esse exterior deve fazer sonhar. Há que ter atenção a uma distribuição simples que proporcione dar um nome a cada peça e que se ligue a comportamentos habitacionais muito flexíveis... não é possível a circulação dupla se as áreas não o permitem... é preciso encontrar uma certa forma de deambulação, estar atento à arte de colocar uma porta, uma janela, atento aos gestos quotidianos. O habitar de hoje não é mais pensado como no século xix para a festa e a recepção, mas para a relação com a vida quotidiana” – uma citação extraída do excelente livro de Monique Eleb e Anne Marie Chatelet . (4)

Repare-se que Céleste nos fala de “ocupar um sítio”, de o apropriarmos, mas também, e naturalmente, de “produzir uma habitação calorosa”; e a seguir refere que é o contexto que nos anima; um conjunto de aspectos que nos falam de um habitar “único”, não monótono, não mudo e em relação, em continuidade. Todos estes aspectos determinantes num habitar que verdadeiramente nos entusiasme; e porque não deveríamos pedir ao habitar menos que isso: que nos entusiasme!



Fig. 06: o tecido urbano denso e vivo de Barcelona.

E o mesmo Céleste, depois de falar um pouco sobre o arquitectar dos espaços do habitar – pensando talvez mais nos interiores, mas podemos, todos, imaginar aqui vizinhanças, pracetas e curiosas sequências citadinas habitadas – refere que o habitar de hoje é pensado, menos para a festa e a recepção e mais para a relação com a vida quotidiana; e aqui deixo, para já, duas reflexões.

A primeira sobre a eventual falta que hoje temos, verdadeiramente, de alguma festa e algum convívio, que equilibre tanta dureza e tanto excesso de gratuita funcionalidade urbana, como se máquinas fôssemos e não seres de carne e osso e mente e sentimentos.

A segunda reflexão tem a ver com uma pergunta que quero aqui sublinhar e que se refere a saber se os nossos espaços vivenciais e residenciais são, hoje em dia e de forma geral, razoavelmente adequados às nossas vidas quotidianas?

E aqui tenho de apontar, desde já, que julgo que não! Porque desde há algumas boas dezenas de anos e com naturais excepções positivas, tem havido um constante distanciamento entre o que realmente precisaríamos para melhor viver na cidade e aquilo que nos é “oferecido” e tantas vezes em prol de uma sociedade nova, moderna, funcional e “adequada”; e as verdadeiras necessidades humanas estão muitas vezes criticamente ausentes.

A ideia que fica é que parece ter-se criado, provavelmente no início do século XX, uma distância entre as verdadeiras necessidades humanas residenciais e urbanas e meio urbano residencial, e depois essa distância acabou por se ir ampliando tantas vezes por razões funcionais, frequentemente ligadas às necessidades dos veículos e eventualmente a outras necessidades ditas “económicas”, mas muito pouco humanas, nisso não haja dúvida; e hoje em dia há que acrescentar a este hiato, entre verdadeiras necessidades residenciais e urbanas, uma discrepância entre os modos como hoje se vive a cidade e a casa e as ideias ainda vigentes sobre o que é habitar e viver a cidade e a casa.

E, por fim, há sempre que lembrar que para além das “simples” necessidades há os desejos e há os sonhos e são estes, parece, que fazem rodar o mundo.
Realmente há muito mais num habitar amplo e bem qualificado para além das matérias racionais e funcionais, e está na hora de aprofundarmos e debatermos esse muito mais pois, por um lado já se viu onde essa parcialidade na abordagem do habitar nos levou; e se há hora mais adequada de tratarmos tal assunto é agora neste nosso novo século das cidades, das grandes cidades.

Esta nova série de artigos quer ajudar a um tal aprofundamento e a uma tal discussão e quer, assim, contribuir para que se possam (re)fazer partes de cidade verdadeiramente humanizadas e vitalizadas por um habitar que seja, simultaneamente, uma outra nossa pele pessoal, doméstica e uma outra “nossa” pele social, cívica e urbana.

Notas:
(1) G. Bachelard, "La Poétique de l'Espace", p. 30.
(2) Francisco Keil Amaral, "Lisboa uma Cidade em Transformação", p. 58.
(3) Artigo de Rita Jordão Silva no Jornal Público de 29 de Novembro de 2004, citando George Ferfuson, Presidente do Royal Institute of British Architects na inauguração da nova galeria do Victoria and Albert Museum, dedicada a uma exposição permanente de arquitectura, num significativo retorno ao passado pois até 1909, e tal como se refere no artigo, “a arquitectura era a alma do Victoria and Albert Museum”.
(4) Monique Eleb e Anne Marie Chatelet, “Urbanité, sociabilité et intimité des logements d’aujourd’hui”, 1997,, p. 238

1.º Artigo da Série “Habitar e viver”.
Edição Infohabitar: Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 16 de Novembro de 2008.
Editor, José Baptista Coelho

segunda-feira, novembro 10, 2008

221 - A Exemplaridade dos Sistemas Construtivos Tradicionais para a Inovação em Sustentabilidade na Arquitetura – um artigo de Hélio Costa Lima - Infohabitar 221

Infohabitar 221
Segue-se um artigo do colega Prof. Arq. Hélio Costa Lima, intitulado “A Exemplaridade dos Sistemas Construtivos Tradicionais para a Inovação em Sustentabilidade na Arquitetura”.

O colega Doutor Costa Lima, é Professor Associado do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal da Paraíba e apresentou este artigo, muito recentemente, no Seminário Internacional NUTAU 2008, um Seminário que tem já uma excelente tradição de qualidade, organizado pelos amigos e colegas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP).

O colega Doutor Costa Lima encontra-se, actualmente, numa visita de estudo em Portugal, com o enquadramento do Núcleo de Arquitectura e Urbanismo do LNEC e o apoio de vários amigos e colegas, entre os quais se faz uma referência especial ao Eng. António Vilhena do LNEC e ao Prof. Arq. Virgolino Jorge da Universidade de Évora.

Agradece-se ao colega Hélio Costa Lima a gentileza de se ter tornado mais um dos companheiros que editam no nosso Infohabitar, deseja-se a continuação de uma execelente viagem de estudo, um seu óptimo refresso a casa e que volte rapidamente a Portugal para novas colaborações em tantas áreas técnicas e de investigação nas quais, como é o caso do tema tratado neste artigo, temos um triplo caminho comum: na língua, nas tecnologias e na cultura.

E aqui ficam expressos os desejos das melhores felicidades pessoais e académicas ao colega Costa Lima.

António Baptista Coelho

A Exemplaridade dos Sistemas Construtivos Tradicionais para a Inovação em Sustentabilidade na Arquitetura

Hélio Costa Lima (1)

Introdução
No âmbito da arquitetura, como em outros domínios da produção, uma espécie de vácuo separa os historiadores dos que estudam tecnologias sustentáveis. Não obstante, alguns pesquisadores de técnicas tradicionais de construção (2), vêm chamando a atenção para a exemplaridade dos sistemas construtivos do passado para a pesquisa atual em sustentabilidade na arquitetura. De fato, o repertório de estratégias de economia de energia dos sistemas construtivos tradicionais – tais como a gestão de entulhos, a apropriação de técnicas, e a logística, entre outras – deveria ser analisado com mais interesse pelos que investem hoje em estudos sobre o impacto ambiental da construção.

Não se trata aqui de estimular um revival, de pregar uma volta às práticas tradicionais de construção. Mas de advogar que o entendimento da lógica de produção que as animava, dentro de uma matriz energética em que não constavam as fontes “modernas” de energia, pode ser útil hoje para o desenvolvimento de novas estratégias de sustentabilidade na produção do edifício e da cidade.

No nosso entender, é esta condição de subordinação a uma matriz energética pré-moderna que abona o interesse científico das estratégias construtivas tradicionais para a pesquisa atual em sustentabilidade na arquitetura. Acreditamos que, por terem sido desenvolvidas em um cenário em que simplesmente não se contava com petróleo, nem com eletricidade, estas estratégias podem apontar caminhos para o desenvolvimento de alternativas ao uso, ou para a redução do consumo destas energias, de que prescindiam os antigos, para erguer edifícios.

Neste trabalho apresentamos argumentos para uma aproximação entre a história e a tecnologia da arquitetura, que não é aquela de interesse da preservação/restauração de edifícios de valor histórico, e que não se ocupa de construir uma história da tecnologia da arquitetura; mas que visa estudar a construção tradicional como referência para a inovação tecnológica em sustentabilidade na arquitetura. E isto, com base no simples fato de que no legado histórico está contida uma experiência laboratorial da maior importância para a pesquisa neste campo, posto que permite estudar estratégias construtivas desenvolvidas em situação de absoluta falta (por inexistência) das energias que hoje se quer poupar!

Argumentos para uma aproximação entre a história e a tecnologia da arquitetura

A criação de um ambiente propício, de uma cultura científica favorável a uma aproximação entre a história e a tecnologia, com vistas à pesquisa e desenvolvimento, requer, além da concepção de métodos e instrumentos de investigação apropriados, a superação de preconceitos e idealizações muitas vezes criados por desinformação ou descontextualização.
A pesquisa em tecnologia, impregnada do seu nobre compromisso com a solução de problemas presentes ou futuros, tende a fazer tábua rasa do saber tradicional. Não é raro, no campo da arquitetura, referências aos sistemas construtivos tradicionais como ineficazes, improdutivos, irracionais, precários, etc.

Vistos e analisados a partir das condições de produção atuais, eles podem até nos parecer assim. Porém, observados dentro do seu contexto histórico, eles nos revelam muita eficácia e produtividade, grande racionalidade e pertinência.

Este último prisma analítico requer, de imediato, que se supere a tendência a uma idealização do passado, isto é, a tendência a se imaginar que a escassez de energia e o alto custo dos insumos, do trabalho e dos transportes, não afligiam os antigos construtores. Que todos os recursos estavam à mão, em abundância, e baratos.

Nada mais equivocado. Documentos históricos e evidências de campo demonstram que os materiais de construção eram muito caros (3); e que ao custo da manufatura somava-se o do transporte como um fator fortemente determinante do seu preço elevado. Tal fato condicionava estratégias de construção as mais diversas e inventivas, cujo interesse para a pesquisa atual é evidente.

Exemplo inequívoco disso são as paredes de alvenaria de pedra dos primeiros séculos da colonização do Brasil, que exibem fragmentos de tijolos cerâmicos, ladrilhos e telhas, agregados a elas como embrechamento, ou como camadas de nivelamento (Figura 1).



Figura 1- Ruínas do Almagre, Cabedelo-PB (esq.) e Ruínas dos Milagres, Igaraçu-PE (dir.) – fotos do autor


Isto nada mais é do que o testemunho de uma estratégia de gestão de entulhos, das mais eficazes. A reciclagem dos entulhos porventura gerados se dá no próprio ciclo da construção: na contramão da tendência de parte da pesquisa atual a apostar na reciclagem dos entulhos depois de retirados do canteiro. Sem prejuízo dos esforços de redução de entulhos na construção, ou de qualquer alternativa de manejo sustentável dos entulhos (sem dúvida um dos maiores problemas de impacto ambiental do setor), esta constatação pode nos instar a investir na pesquisa de sistemas construtivos “auto-limpantes”, isto é, que tenham a propriedade de consumir/reciclar seus próprios rejeitos.

O impacto do fator transporte – hoje a ser considerado não só em sua dimensão econômica, mas, sobretudo, em sua dimensão ecológica, pelas emissões de gases que implica –, cujo custo é particularmente alto no caso dos materiais de construção, por causa do seu peso, se confirma como um dos mais fortes determinantes das estratégias e técnicas de construção do passado. E por isso os sistemas construtivos tradicionais são profícuos em soluções criativas para reduzi-lo.

A própria escolha dos sítios para a fundação de povoamentos, vilas e cidades, levava em consideração, entre outros requisitos fundamentais à vida urbana, a disponibilidade, in loco, de materiais de construção de boa qualidade. Podendo mesmo, este requisito, vir a ser determinante de adaptações criativas das técnicas construtivas então em uso.

Recentemente, encontramos em empenas e paredes divisórias de casas datáveis dos primórdios da fundação da capital da Paraíba (hoje João Pessoa), no final do século 16, o emprego de um curioso tipo de enxaimel, utilizando fartamente a madeira (fato raro no enxaimel luso, vindo do sul de Portugal, pobre em matas), e tendo como preenchimento rachas de pedra calcária amarela (Figura 2).


Figura 2 - Enxaiméis com pedra calcária na Paraíba – fotos do autor


Rico em pedras calcárias da melhor qualidade, e em excelentes madeiras para construção, encontradas na porção de Mata Atlântica que o recobria, o planalto onde foi implantada a Cidade, deu ensejo a este fato, inédito (4), em se tratando das construções do período colonial brasileiro.

Tudo isso indica uma perspicaz adaptação das técnicas de construção tradicionais aos materiais disponíveis no sítio, e a outras variáveis de situação.

No caso em apreço, o uso intensivo de rachas de pedras calcárias sugere o aproveitamento, na arquitetura civil ordinária, da abundante “bugalhada” produzida pelo intenso trabalho de cantaria (talha de pedras), então em curso na construção dos grandes edifícios administrativos e religiosos da Cidade, cuja pedreira era no local. Isso que hoje seria entulho, e que representa um transtorno nas construções modernas, era “reciclado” nas construções mais modestas das proximidades, por ser um material, ali e naquele momento, abundante e barato.

A determinação da tecnologia pelo alto custo dos transportes é bem nítida na construção tradicional. Até em sítios muito próximos entre si, diferentes escolhas técnicas podem ser constatadas em função deste fator: Recife usou o arenito, tirado ali dos arrecifes, para suas construções; enquanto a pedra calcária, abundante na vizinha Olinda, a menos de dez quilômetros, era o material de eleição dos construtores olindenses. Nas Minais Gerais, algumas cidades ao longo da Estrada Real exibem variações de estratégias construtivas em função da disponibilidade local de materiais: Diamantina tem enxaiméis preenchidos com tijolos cozidos, e São Gonçalo do Rio das Pedras, distante menos de trinta quilômetros, tem enxaiméis preenchidos com adobe (Figura 3).


Figura 3 – Enxaimel em Diamantina - MG (esq.) e em São Gonçalo do Rio das Pedras – MG (dir.) – fotos do autor


Sabemos que o princípio da utilização de materiais locais é hoje largamente aceito e proclamado como uma das estratégias básicas para uma arquitetura sustentável. Assim, quando evocamos acima exemplos de sua proeminência como determinante dos sistemas construtivos tradicionais, o fizemos para reforçar a potencialidade desses sistemas como celeiro de referências para o desenvolvimento, hoje, de estratégias de sustentabilidade na produção do edifício e da cidade.

Algumas experiências pioneiras em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias construtivas vêm também reforçar essa nossa convicção e ilustrar nossos argumentos. Primeiramente, podemos citar a conhecida experiência do CEPED (BA) (5), em que foi desenvolvido um sistema de construção de baixo custo com solo-cimento, que consiste numa atualização, numa adaptação ao contexto tecnológico atual, de uma técnica lusa secular: a taipa de pilão (Figura 4).


Figura 4 – Construções de solo-cimento em Camaçari - BA, adaptação de técnica tradicional – fotos Projeto THABA/CEPED 1978


Noutro universo de pesquisa, podemos citar uma experiência conduzida pelo IPT (SP) sobre estanqueidade de fachadas. Em artigo sobre a prevenção de penetração de água pelas fachadas, o autor da pesquisa (6) chama a atenção para a eficácia dos detalhes construtivos em uso na arquitetura desde a antiguidade clássica, que criam uma cortina de respingos paralela ao plano da parede, que, por sua vez, diminui a incidência da água das chuvas sobre a fachada (Figura 5).


Figura 5 – Tipos de saliências nas fachadas que dissipam a água das chuvas (fonte: PERES, 1988)


Não contando com tintas e revestimentos impermeabilizantes, os antigos construtores criaram elementos arquitetônicos (cimalhas, cornijas, lacrimais...) capazes de reduzir o impacto das fortes chuvas sobre as fachadas. Hoje, a aplicação deste princípio poderia acarretar uma redução do uso de tintas e revestimentos impermeabilizantes, normalmente oriundos da indústria química e petroquímica, e da indústria cerâmica. E toda redução do uso de materiais destas origens industriais, sabe-se, significa redução de impacto ambiental.

No que tange a arquitetura, é importante observar que o alcance de investidas deste tipo pode ir além de uma simples interferência nas técnicas de construção em si, e chegar a provocar mudanças na própria fisionomia do edifício. Porém, não no sentido da adoção de uma linguagem formal do passado, como fizeram os arquitetos historicistas, mas da busca de uma nova linguagem arquitetural, de uma nova arquitetura, partindo da articulação de elementos construtivos concebidos para o incremento da sustentabilidade do edifício.

Considerações finais

Os argumentos acima encorajam a fundação de uma linha de pesquisa que explore as potencialidades dos sistemas construtivos tradicionais, como referência para a inovação tecnológica em sustentabilidade na arquitetura. Porém, mais do que apenas entusiasmo e desejo, isto requer o desenvolvimento de um ferramental teórico e metodológico específico, para a construção de um quadro analítico apropriado.

Nenhuma interpretação será confiável se feita a partir apenas da análise do artefato arquitetônico. Porque os “sinais tectônicos” (7), nele identificados, só ganham significação se analisados dentro do quadro histórico que os produziu. Para tanto, devem convergir diversas competências do campo da história e do campo da tecnologia da arquitetura, cada uma com suas ferramentas e métodos específicos, o que, por sua vez, engendra uma nova competência.

A mobilização desta nova competência, visando o entendimento dos sistemas construtivos do passado, segundo as condições de produção que estavam em jogo, demanda um trabalho sistemático de identificação e leitura de documentos históricos de diversas naturezas (iconográfica, textual, contábil...), e o estudo dos artefatos construídos e das reminiscências técnicas. Isto presidido por um conceito de sistema construtivo que integre os universos produtivos de dentro e de fora do canteiro: os saberes, os materiais, o equipamento, o processo de trabalho, as relações de trabalho, a logística, as políticas públicas, o ecossistema, etc.

Além disso, é fundamental que – sem demérito do estudo das técnicas em si, do qual esta natureza de investigação depende diretamente – se dirija o foco desta linha de pesquisa para o porquê (histórico) do procedimento técnico, e não para o como (técnico) ele se realiza.

O porquê histórico dos sistemas construtivos tradicionais, assim entendemos, é chave para o desenvolvimento de novas estratégias de sustentabilidade na produção do edifício e da cidade.

Referências bibliográficasPERES, Ary Rodrigo: “Umidade nas edificações: recomendações para a prevenção da penetração de água pelas fachadas”. In: Tecnologia de Edificações: São Paulo, PINI/IPT, 1988. (pp. 571-574).
SMITH, Robert: “Arquitetura Civil do Período Colonial”. Separata da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Vol. 17. Rio de Janeiro, 1969.

Notas:

(1) Arquiteto, Doutor, Professor Associado do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal da Paraíba (Brasil).


(2) A exemplo de Roberto Dantas de Araújo e Jorge Tinoco, do CECI, em Pernambuco.

(3) Em sua Arquitetura Civil do Período Colonial, Robert Smith nos dá pistas para inferir o alto custo dos materiais de construção em Salvador no século 16: em 1550, um certo Pero Martins, telheiro, fazia telhas de cobrir, vendendo-as a dois mil réis o milheiro (p. 32, nota 29); e em 1552, Pedro de Carvalhais fôra nomeado “mestre de obras de Salvador”, com vencimentos anuais de vinte mil réis (p. 33, nota 31). Note-se, que um ano de vencimentos de um alto funcionário da Coroa só compraria dez milheiros de telhas!

(4) Consultado sobre o assunto, o Professor José Luís Mota Menezes, autoridade em arquitetura do período colonial, afirmou não conhecer similares desta ocorrência em outros sítios históricos brasileiros. O enxaimel luso, muito utilizado no Brasil colonial, normalmente usava tijolos cozidos ou adobe como preenchimento.

(5) Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Bahia. Projeto THABA – Tecnologias Habitacionais de Baixo Custo.

(6) PERES, Ary Rodrigo: “Umidade nas edificações: recomendações para a prevenção da penetração de água pelas fachadas”. In: Tecnologia de Edificações: São Paulo, PINI/IPT, 1988. (pp. 571-574).

(7) Utilizamos o termo “sinais tectônicos” para definir vestígios do cabedal técnico e artístico mobilizado na construção, deixados no construído. Estes sinais compreendem, em conjunto, características morfológicas, estereométricas e estilísticas, materializadas, através das técnicas de construção, nos elementos arquitetônicos. Eles compreendem relações de cheios e vazios, proporções de aberturas, alturas dos pontos, estereotomia e estereometria das cantarias, espessuras das paredes, etc., assim como os materiais empregados e as técnicas construtivas utilizadas, identificáveis em fragmentos e partes de edifícios, muitas vezes em ruína ou submersos por sucessivas intervenções, reformas e desfigurações ao longo do tempo.

Edição no Infohabitar:Preparação por António Baptista Coelho, em 2008/11/09
Edição por José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação, Olivais-Norte, 2008/11/10

segunda-feira, novembro 03, 2008

220 - Sobre as fundamentais vizinhanças amigáveis I - Infohabitar 220

Artigo de António Baptista Coelho

Infohabitar 220

Sobre as fundamentais vizinhanças amigáveis I 


Continua a notar-se nos espaços públicos uma crítica dificuldade ao nível da sua essencial qualificação, desde o projecto urbano e paisagístico a uma adequada execução e equipamento, visando a sua durabilidade e o estímulo a uma ampla diversidade de actividades exteriores. O que importa salientar é que, hoje em dia, não há um conhecimento verdadeiramente adequado e muito menos sedimentado sobre como fazer, por exemplo, uma praceta ou rua residencial, verdadeiramente amigável e apropriável.

E aqui se sublinha que os conhecimentos continuam a estar, a este nível, mais dirigidos e mal dirigidos, designadamente, para os aspectos funcionais do tráfego de veículos. Estamos agora apenas a começar a ultrapassar a medo uma tal estrita e fictícia funcionalidade numa perspectiva de simples defesa da segurança pedonal, falta-nos todo um caminho de humanização de conteúdos funcionais e de imagens; e é neste caminho que se encontrarão muitas das virtualidades em termos de novas ou renovadas soluções tipológicas aqui numa perspectiva urbana.

Em todas estas matérias é fundamental tornar o exterior residencial útil, portanto equipado, apelativo, portanto adequadamente projectado e executado e, também, naturalmente convivial, porque afinal o convívio na vizinhança é motivo e consequência de muitas actividades exteriores, desde o recreio infantil, ao desporto e ao simples, mas fundamental, lazer.



Fig. 01


Um último aspecto, a este nível, refere-se à exigência de uma perfeita e contínua manutenção do espaço público, condição extremamente favorecida pelas referidas condições de uso intenso e de sentido efectivo de vizinhança, num afirmado espaço público de lazer, recreio e convívio que tem de ligar os edifícios e que deve corresponder a grupos favoráveis no incentivo de um agradável e seguro conhecimento mútuo, servidos por uma cuidadosa pormenorização das vizinhanças de proximidade (espaços comuns e espaços públicos), porque os espaços exteriores de vizinhança são espaços muito próximos do nosso olhar directo e do olhar a partir das habitações e estamos a abordar escalas comuns e públicas com exigências fortíssimas, entre as quais se destaca o privilegiar da global funcionalidade e da convivialidade natural, a introdução do “verde urbano” e a clara definição de zonas de influência/gestão.

Apenas a título de exemplo do muito que é possível fazer nesta perspectiva de criação de vizinhanças residenciais amigáveis referem-se edifícios geradores de ruas equipadas enquanto no interior dos quarteirões permitem humanizados espaços públicos de convívio e recreio, numa eficaz aliança com os sempre estimulantes pátios privados (servindo os pisos mais baixos, e não apenas o R/C), proporcionando ainda extensões térreas privativas bem enquadradas (ex. para espaços conviviais dos condomínios como salas de jogos), e proporcionando, ainda, eventualmente, o aproveitamento inferior como garagem comum. Este tipo de espaços é também ideal para se desenvolver um arranjo "natural" dos espaços exteriores: com menos asfalto e zonas impermeáveis, com grande variedade de plantas povoando fachadas varandas e terraços e criando um microclima muito favorável em zonas urbanas.

É interessante ponderar aqui que mais do que prever uns tantos metros quadrados por habitante, ou uns tanto equipamentos padronizados e frequentemente muito exigentes em área e especificações técnicas, o que talvez interessa, pelo menos logo numa “primeira linha”, num entorno residencial é a criação de um espaço exterior verdadeiramente incentivador do seu uso diversificado e visual, ambiental e caracterizadamente agradável e atraente para um amplo leque de gostos e de modos de uso e/ou a previsão de um pequeno espaço destinado a um equipamento expressivamente convivial, como por exemplo um pequeno “café”, estrategicamente colocado num local onde apeteça estar e/ou onde até por vezes “dê jeito” estar.

Embora haja aspectos fundamentais a considerar na previsão dos equipamentos – ex., distâncias desejáveis para crianças até 9 anos: 100/200m, vigilância natural a partir das habitações só é eficiente em grupos de 20/30 alojamentos e na contiguidade de zonas pedonais muito usadas e relativamente centrais; nesta matéria é interessante considerar que mesmo numa perspectiva de previsão de acessibilidades e de raios de influência há diferenças “abissais” entre soluções que respeitam os mesmos aspectos regulamentares e recomendativos, a não ser que as recomendações avancem numa muito cuidadosa proposta de soluções globais, provavelmente um caminho da “regulamentação” fortemente qualitativo.

Afinal áreas de jogos atraentes evitam que as crianças usem espaços viários para brincar; as crianças estão sentadas com frequência e são atraídas pelas escadas; há que servir os gostos das crianças e não um objectivo de decoração espacial e as zonas de circulação pedonal devem considerar o recreio livre das crianças usando variados tipos de elementos. Todas estas constatações fortemente qualitativa.

E tudo isto até levanta a questão objectiva de para quem se fazem conjuntos residenciais e com que objectivos fundamentais? E nestas matérias não devia haver quaisquer dúvidas, pois há que proteger ao máximo e incentivar ao máximo o uso do exterior público por crianças e por idosos, seja porque isso é fundamental para esses usos e designadamente para a formação da criança e para o lazer diário do idoso, mas também porque são eles os habitantes que mais vitalizam o exterior público; são, afinal, as fundamentais vizinhanças urbanas amigas. Mas há muitas dúvidas quando funcional e objectivamente se multiplicam metros quadrados e se “despacha” a desejável vitalização do espaço público apenas através de soluções de catálogo, que por vezes são implantadas verdadeiramente “à martelada”.


Fig. 02: o constante retorno ao exemplar Alvalade, em Lisboa


Ainda outro aspecto eminentemente qualitativo e crucial nesta escala da vizinhança é a questão da fundamental presença do verde urbano, e aqui não devemos ter quaisquer tipos de dúvidas nem resvalar para qualquer tipo de desculpa, até, porventura, formal: a cidade e a vida na cidade e o habitar na cidade precisa de um verde urbano efectivo e afectivo, portanto intenso e apropriável, pois tratamos aqui de uma matéria cuja importância dita funcional, em termos de amenização e de conforto ambiental e cuja importância para a saúde física e psíquica do habitante não merecem discussão (até as empresas privadas o reconhecem e os hospitais psiquiátricos o reconhecem); e atente-se que nem se referiu a importância em termos visuais e estéticos, aliás uma importância que está na própria razão de ser do jardim urbano. E que não haja desculpas por eventual incompatibilidade formal com determinada solução de desenho, pois a diversidade do verde urbano é riquíssima nos mais diversificados aspectos formais, espaciais e de exigências vitais.

Há ainda que considerar que tipos de equipamentos são os mais desejados e os mais eficazes nas vizinhanças? equipamentos conviviais, como pequenos cafés, equipamentos funcionais como lojas de comércio diário, pequenos e íntimos jardiins de vizinhança, eventualmente, na contiguidade de escolas básicas (como acontece na Fig. 03). Esta é, novamente, um matéria expressivamente qualitativa, pois uma opção é programar metros quadrados de equipamentos de apoio diário ou ocasional, e outra será privilegiar equipamentos que, pelas suas condições de localização, configuração, imagem e funcionamento, possam constituir verdadeiros pólos de convívio natural e, simultaneamente, de dinamização do uso do exterior público; não se indica aqui que não são necessários esses tais equipamentos de apoio “diário e ocasional”, de que nos lembramos dos velhos “planeamentos” dos anos setenta do Século. XX, só que não deve ser possível fazer mais frentes de equipamentos vazias e tendencialmente deterioradas e é, de facto, especialmente importante prever os “terceiros espaços” entre a casa e a rua pública, são eles que fazem muita da vivência da cidade.


Fig. 03: e novamente um “recanto” de Alvalade, neste caso um jardim de vizinhança.


Um último aspecto, a este nível, refere-se à exigência de uma perfeita e contínua manutenção do espaço público, condição extremamente favorecida pelas referidas condições de uso intenso e de sentido efectivo de vizinhança, num afirmado espaço público de lazer, recreio e convívio que tem de ligar os edifícios e que deve corresponder a grupos favoráveis no incentivo de um agradável e seguro conhecimento mútuo, servidos por uma cuidadosa pormenorização das vizinhanças de proximidade (espaços comuns e espaços públicos), porque os espaços exteriores de vizinhança são espaços muito próximos do nosso olhar directo e do olhar a partir das habitações e estamos a abordar escalas comuns e públicas com exigências fortíssimas, entre as quais se destaca o privilegiar da global funcionalidade e da convivialidade natural, a introdução do “verde urbano” e a clara definição de zonas de influência/gestão.

Apenas a título de exemplo do muito que é possível fazer nesta perspectiva de criação de vizinhanças residenciais amigáveis referem-se edifícios geradores de ruas equipadas enquanto no interior dos quarteirões permitem humanizados espaços públicos de convívio e recreio, numa eficaz aliança com os sempre estimulantes pátios privados (servindo os pisos mais baixos, e não apenas o R/C), proporcionando ainda extensões térreas privativas bem enquadradas (ex. para espaços conviviais dos condomínios como salas de jogos), e proporcionando, ainda, eventualmente, o aproveitamento inferior como garagem comum. Este tipo de espaços é também ideal para se desenvolver um arranjo "natural" dos espaços exteriores: com menos asfalto e zonas impermeáveis, com grande variedade de plantas povoando fachadas varandas e terraços e criando um microclima muito favorável em zonas urbanas.


Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 2 de Novembro de 2008