sábado, março 26, 2011

339 - A rua metropolitana transitória - Infohabitar 339

Infohabitar, Ano VII, n.º 339
Artigo de Gustavo de Casimiro Silveirinha

Notas iniciais:
É sempre com uma satisfação muito especial que o Infohabitar acolhe e edita um artigo de um novo participante activo na nossa revista semanal, neste caso o Arq.º Gustavo de Casimiro Silveirinha, que nos oferece um artigo sobre a rua de hoje na cidade de hoje, aquele feita de áreas urbana e suburbanas e um artigo que vem na linha directa dos vários textos ultimamente aqui editados, seja sobre as questões da segurança/insegurança urbana, seja das matérias ligadas ao convívio nas nossas cidades e vizinhanças, e tudo isto numa perspectiva global que nunca esquece a vontade actual da reconquista da rua para ser bem habitada e vivida por todos nós.

Com este artigo também se assinala mais um ano "oficial" de actividade do Grupo Habitar, uma associação técnica e científica sem fins lucrativos com sede no Núcleo de Arquitectura e Urbanismo (NAU) do LNEC, que tem contado com apoios muitos diversos, por parte de muitas pessoas e instituições, e que no dia 28 de Março irá realizar a sua 10.ª Assembleia-Geral em Matosinhos (indicações disponíveis em uma das últimas edições do Infohabitar), contando mais uma vez com o apoio da Federação Nacional de Cooperativas de Habitação Económica (FENACHE) e da Cooperativa As sete Bicas, às quais se apresentam os públicos e sentidos agradecimentos.
O editor do Infohabitar
António Baptista Coelho

Breves notas sobre o autor do presente artigo:
Gustavo de Casimiro Silveirinha nasceu em Aveiro, em 1982.
Colaborou com o Prof. Doutor Walter Rossa e o Arq. Mário Celso Albuquerque, previamente ao ingresso na faculdade. Licenciou-se em Arquitectura pelo Darq/FCTUC – Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra, em 2007. Foi Bolseiro Erasmus de Arquitectura em San Sebastian, Espanha.

Desenvolveu a Tese de final de curso na área do Urbanismo e Desenho Urbano com o título “In Absentia – Limite e Carácter da cidade do Porto”, tendo como orientador o Prof. Doutor Paulo Providência, procurando continuar a investigar nessa mesma área.

É actualmente Doutorando do programa Doutoral em Arquitectura do Instituto Superior Técnico/UTL; um programa apoiado e participado pelo NAU do LNEC.


A rua metropolitana transitória Gustavo de Casimiro Silveirinha (*),
(*) Arquitecto, Doutorando IST,
gustavosilveirinha@gmail.com

“A dicotomia entre aparência e realidade assumiu grande relevância na concepção do mundo material. A noção de que a função da ciência é dizer o que a humanidade pode dizer sobre a natureza e não o que ela realmente é, levanta questões acerca da relação entre a forma como se dá um fenómeno determinado e as limitações para o observar e entender com o máximo de precisão.” (1)

O modo como a cidade tem sido observada reflecte uma noção pouco estruturada, que se torna óbvia se se focar a atenção na envolvente das áreas metropolitanas nomeadamente a AML – Área Metropolitana de Lisboa.

Observar a cidade através do traçado e não do tecido edificado permitirá alguma abstracção, necessária num processo de análise de tensões e fenómenos urbanos ou metropolitanos, capaz de abarcar uma escala e conjunto.

Os ritmos económicos, culturais e sociais não permitem hoje uma unidade de desenho das cidades. Apesar de ligadas por infra-estruturas, dizemos que lhes falta um traçado unificador.

As cidades contemporâneas metropolitanas estão a dotar-se de centros de passagem de grandes infra-estruturas e cruzamentos de vias, onde se localizam recorrentemente interfaces que dispensam a necessidade de circulação até ao seu centro para se usufruir do serviço motivador da deslocação.

O que impede a cidade de se desintegrar morfologicamente podem ser elementos de transição: capilares metropolitanos, ruas e vias que permitem a circulação entre infra-estruturas metropolitanas que conferem à cidade escala humana, constituindo a cidade vivencial. É neste conjunto de elementos que se encontra a rua metropolitana transitória, com o sentido simultaneamente temporal e espacial.

Surgem espacialmente entre as vias viárias infra-estruturais e os aglomerados urbanos adjacentes, sendo por isso elementos de transição, mas o seu carácter e perfil não se encontra ainda definido, sendo por isso o actualmente transitório.

A passagem de escala entre infra-estrutura e traçado urbano deve ser assim assumida pelos capilares metropolitanos transitórios, complementados com espaços de descompressão como parques e praças, com identidade de desenho, com capacidade para se concretizarem como espaço público.

As grandes Infra-estruturas de distribuição
Por simplificação referimo-nos neste artigo como infraestrutura, os grandes “canais de distribuição dos fluxos viários à escala metropolitana e “ruas metropolitanas transitórias às vias rápidas e com capacidade elevada intermédias com os traçados urbanos de escala local.

O processo de urbanização aumentou a necessidade de aumento de tráfego entre as diversas partes da cidade. Este processo gradual culminou com o aumento do perfil das infra-estruturas, em função da distância e do tráfego. A infra-estrutura viária, que une partes da cidade cada vez mais dispersas mas também mais especializadas, foi a que maior crescimento aparente teve, se tivermos em conta a influência que esta teve em todo a tecido urbano, quer na malha de mobilidade quer na malha construída.

Perante a impossibilidade de individualizar as infra-estruturas por serviço ou função, estas servem todos as necessidades de deslocação sejam industriais sejam de lazer. Esta sobreposição transforma a infra-estrutura, principalmente a viária num elemento fundamental de ligação entre as diversas partes da cidade, concentrando assim muito do volume de tráfego de pessoas e bens em deslocação.

As necessidades que as áreas anteriormente chamadas subúrbanas apresentavam, no que se refere a actividades económico-sociais e de serviços, ainda se mantêm actualmente nas sub-cidades ou alvéolos urbanos. Esta situação recorrente não só impede uma necessária independência da cidade central, como sobrecarrega as infra-estruturas e não permite o desenvolvimento sustentável do processo de expansão da cidade. A esta falta de coesão há que somar o papel de ligação mas também de fronteira da infra-estrutura. O que a sua escala e existência permitem a nível de acesso à cidade central, retrai a verdadeira criação de equipamentos e serviços nos alvéolos metropolitanos, logo uma menor identificação com o espaço urbano.

Fragmentação do Tecido Urbano
Com o avanço constante ou contínuo do processo de urbanização do território, assiste-se a uma aparente perda de controlo do desenho da cidade. O processo evolutivo, nem sempre constante e dependente de mais variáveis, levou ao aparecimento de franjas de território construído.

Alvéolos de tecido urbano isolado e aglomerados de elevada densidade e diversidade apresentam-se desconexos do tecido do core da cidade adjacente.

Com diferentes visões e definições tanto Ascher (2) como Sassen (3) coincidem que esta fragmentação resulta da especialização de partes do tecido metropolitano.

O espaço metropolitano tende a construir algo diferente da cidade, pequenos aglomerados, praticamente auto-suficientes, com uma estruturação espacial questionável, tendendo a expandir-se num sentido desconhecido. Deste modo assiste-se a um afastamento do carácter anterior da cidade quando esta era uma discreta unidade geográfica, política e social, facilmente identificada e delimitada. (4)

As cidades devem ter um planeamento que lhes confira identidade própria pelo simples facto de estas rapidamente se estarem a tornar desconexas, divididas em partes.

Diferenciação
Os novos centros metropolitanos carecem de identidade devido em muito à fraca estruturação do traçado.

A diferenciação pode conferir ao traçado da malha urbana características de âmbito social, para que nestas áreas outrora de periferia possa surgir um maior sentido de pertença.

"Ao longo de quase um século, a rua tem estado sob ataque persistente de diversos sentidos: os projectistas de Siedlungen e Cidades-jardim, os mestres modernos do CIAM, e do governo local e arquitectos dos países Anglo-saxónicos e Escandinavos terem tentado postular formas de assentamento urbano em que a rua foi sendo destituída da sua função passada ou analisada fora da existência. Houve um ataque correlativo por partes dos seguidores de Haussmann que subordinaram todas as funções de assentamento urbano à rua em si, particularmente para a rua como um transportador do tráfego. "Mas, por outro lado para atacar a rua significa atacar"o mais importante componente do padrão urbano: um padrão que só é consumido, aprendeu, e reconhecido pelo seu uso ““. (5)

Assim os capilares metropolitanos, vias de menor escala, mais urbanas voltam a ter o papel de caracterizar e conceder aos novos centros metropolitanos ou alvéolos urbanos identidade e qualidade. Estes capilares metropolitanos através da sua caracterização poderão atingir este objectivo.

A rua – Espaço público
A definição da palavra “Praça” como “Lugar largo e espaçoso, ordinariamente rodeado de edifícios”, que propicie a convivência ou a sua apropriação para recriação, complementada com a definição de Jane Jacobs dos quatro elementos necessários para que um parque ou praça funcione – complexidade, centralidade, insolação e delimitação espacial – concretiza o exemplo da Praça Cosme Damião. (ver Figuras 1 e 2)

No entanto a sua complexidade, não se refere ao sentido do uso mas no sentido da sua configuração, e delimitação espacial, mas deve-se às vias que simultaneamente a atravessam e delimitam.

Este surge como um dos exemplos de espaço público descaracterizado como consequência da influência da 2ªCircular, em Lisboa. Esta situação remete para a rua o papel de espaço público, uma vez que está patente uma clara sobreposição da mobilidade, e da acessibilidade à infra-estrutura em relação à verdadeira acepção do espaço “Praça”.





Fig. 01





Fig. 02

Figuras 01 e 02 - Praça Cosme Damião
Fonte: GoogleMaps, 2010

Assim para a concretização do planeamento que venha a conceder à rua o carácter de espaço público, as ruas dever-se-ão demonstrar atractivas com um perfil cuidado e com qualidade de desenho, nomeadamente a nível de mobiliário urbano mas principalmente a nível de espaços criados e de qualidade de vivência.

No que se refere à continuidade do tecido, Jane Jacobs refere que este deverá possuir uma escala tal de modo a que forme uma malha contínua que possibilite a constituição de uma sub-cidade em potencial. Assim, e perante a sub-cidade já constituída pelos alvéolos metropolitanos, resulta neste momento reflectir sobre o processo em curso.

Dado que a continuidade deve ser considerada chave, no sentido da mobilidade, torna-se imperioso a constituição de conjuntos de capilares urbanos, cujo carácter permita essa continuidade quer de tráfego, quer de leitura, o que conferirá à sub-cidade uma maior segurança e identidade.

Neste sentido de segurança e qualidade de vivência do espaço urbano, concretamente a rua, a contribuição do traçado que precederá a constituição da malha de rua, permitirá a qualificação das ruas, com a intensificação da constituição de elementos como parques e praças, como forma de descompressão da malha. A esta descompressão somar-se-á a complexidade de usos do tecido urbano, criando interacções adaptáveis entre o hardware urbano e o constantemente mutante software urbano. (6)

Deste modo o zoneamento (zoning) da cidade é facilitado, havendo uma malha definida e a alteração do uso dos solos acompanha as mutações do tecido urbano.
“Uma grande cidade não é uma colecção de cidades pequenas, justapostas: uma grande cidade é um local onde a grande maioria das pessoas com as quais nos relacionamos, fazemos trocas e compartilhamos os espaços públicos nos são predominantemente desconhecidos”. (7)

Fragmentando o tecido urbano edificado o urbanismo modernista contribuiu para a desarticulação da morfologia das cidades, destruindo ruas.

A escala intermédia de transição de escala no tecido urbano é a chave para o planeamento quer de edifícios, quer de infra-estruturas e espaço público.

A rua metropolitana transitória
A cidade é um sistema aberto, um organismo que necessita de energia e bens da envolvente.

Como sistema que é funciona como um conjunto de elementos interligados, interdependentes.

O grande objectivo das circulares e infra-estruturas viárias de localização exterior ao tecido consolidado era escoar a maior quantidade de tráfego do centro da cidade. A este objectivo soma-se o de evitar a necessidade de entrada na malha viária mais estreita para atravessar a cidade, congestionando-a. Ambos os objectivos aparentemente são cumpridos, por exemplo na 2.ª Circular, mesmo sendo que se denuncia a contradição e eminente esgotamento, estando muitas vezes congestionada.

A premissa inicial de serem infra-estruturas exteriores em relação ao tecido urbano consolidado actual já não se confirma, pelo que estas se tornaram parte desse mesmo tecido. Elas próprias criaram tecido, catalisaram o seu crescimento, mas também o condicionaram. Neste ponto surge a questão fundamental que se impõe no que se refere a tensões no tecido metropolitano actual, que se prende com a mudança de escala.

Adaptando a situações urbanas concretas padrões de sistemas simples, que possam ser replicados ainda que adaptativamente, será possível que a cidade se constitua como um sistema complexo organizado. Actualmente como esses padrões são desconexos e não relacionáveis formalmente, temos um sistema complexo desorganizado. (8)

É neste contexto que surge o conceito de rua metropolitana transitória, uma vez que o carácter evolutivo não permite uma classificação final, e estes elementos surgem na sequência espacial imediata das grandes vias, assumindo-se como ramificações que os ligam às vias das massas urbanas construídas criadas por si.

Na regeneração do tecido urbano, a rua metropolitana transitória apresenta-se em processo transitório, num sentido de maior urbanidade, menos de acesso à infra-estrutura ou sobrante da malha do traçado, mas mais acessíveis e urbanos, no sentido de proximidade.

Os principais factores dinamizadores do aparecimento desta nova tipologia de rua, que no seu conjunto constituem uma rede de capilares metropolitanos são:
- a infra-estrutura
- o consequente desenvolvimento de novos tecidos e aglomerados urbanos
- a localização de novos equipamentos e tipologias de mobilidade (exemplo Interfaces de transportes, estações multi-modais)
- a alteração do uso dos solos.

Assim, no que se refere a rua metropolitana transitória o sentido de transição assume uma perspectiva dual, pelo sentido temporal relacionado com o carácter efémero do perfil actual da rua, como pelo sentido espacial relacionado com a localização espacial da rua relativamente entre a infra-estrutura e o tecido urbano adjacente. Apresentamos seguidamente alguns exemplos.

Casos
Rua Quinta de Santa Maria, Santa Maria dos Olivais




Fig. 03




Fig. 04

Figuras 03 e 04 – Rua de Quinta de Santa Maria
Fonte: GoogleMaps, Gustavo Silveirinha 2011
Legenda:
Pontos/Círculos vermelhos maiores: Infra-estrutura de elevado tráfego
Pontos/Círculos vermelhos pequenos: Rua Metropolitana Transitória avaliada

A rua Quinta de Santa Maria situada na freguesia de Santa Maria dos Olivais, apresenta-se como um exemplo mais completo de rua metropolitana transitória dada a sua situação em relação a uma infra-estrutura viária de elevada escala, a 2.ªCircular.

- Usos do solo envolvente
O uso do solo envolvente é quase exclusivamente habitacional, não havendo nenhum equipamento a destacar, nem acessível através desta rua.

- Sensibilidade/Adaptação ao Local
Apesar de o seu perfil não ser o final esta apresenta um elevado grau de consolidação, já que se aconselhava mais espaço de tráfego intermédio principalmente junto à entrada na 2.ªCircular, apresenta uma solução que resulta numa passagem de escala suave.




Figura 05 – Rua de Quinta de Santa Maria
Fonte: GoogleMaps, 2011

- Contribuição para o Local
O seu papel transitório está patente na forma como o tráfego viário é conduzido através de diversas fases de descompressão pelo facto de possuir placas centrais que permitam a distribuição gradual dos veículos em circulação. O estacionamento encontra-se previsto e devidamente projectado. Também o seu perfil a nível de interacção peão–automóvel demonstra desenho cuidado e funciona, bem como seguro para ambos.

- Futuro
É previsível que o seu perfil se altere ligeiramente pela alteração do uso quer de espaços desocupados nas imediações quer pela adaptação de pequenos edifícios não habitacionais na envolvente. Como consequência deverá haver um aumento de tráfego viário, que não deverá alterar a qualidade da rua, nem do espaço público que esta rua constitui.




Figura 06 – Rua de Quinta de Santa Maria
Fonte: Gustavo Silveirinha, 2011

Ligação Avenida de Berlim – Avenida Cidade do Porto, Alameda da Encarnação, Santa Maria dos Olivais
A Ligação Avenida de Berlim – Avenida Cidade do Porto situada na freguesia de Santa Maria dos Olivais, apresenta-se com uma função e perfil indefinido.

- Usos do solo envolvente
Acessível através desta rua encontra-se o Quartel dos Bombeiros da Encarnação, e a Alameda da Encarnação. Existem bastantes terrenos desocupados na envolvente da rua e acessíveis traves desta, presume-se com cariz habitacional. O troço inicial da Alameda da Encarnação apresenta também ainda um perfil pouco claro o que dificulta uma leitura da Alameda como um todo.




Fig. 07



Fig. 08

Figuras 07 e 08 – Ligação Avenida de Berlim – Avenida Cidade do Porto
Fonte: GoogleMaps, Gustavo Silveirinha 2011
Legenda:
Pontos/Círculos vermelhos maiores: Infra-estrutura de elevado tráfego
Pontos/Círculos vermelhos pequenos: Rua Metropolitana Transitória avaliada

- Contribuição para o Local
A sua contribuição é negativa para o local, e está patente na forma como o tráfego viário é conduzido, bem como pelo modo como se processa o estacionamento nesta mesma via. Também o seu perfil a nível de interacção peão–automóvel demonstra falta de desenho, bem como de segurança para ambos. A inexistência de passeios em parte da rua, bem como o seu dimensionamento reduzido não permite uma utilização fácil do espaço da rua.




Figura 09 – Ligação Avenida de Berlim – Avenida Cidade do Porto
Fonte: Gustavo Silveirinha, 2011

- Sensibilidade/Adaptação ao Local
Dada a sua situação em relação a uma infra-estrutura viária de elevada escala, ou seja de ligação ao acesso pela Avenida cidade do Porto à 2.ªCircular, apresenta um perfil desadequado á que alem do seu perfil ser indefinido, não possui actualmente escala de modo a funcionar como mediador de tráfego.




Figura 10 – Ligação Avenida de Berlim – Avenida Cidade do Porto
Fonte: GoogleMaps, 2011

- Futuro
É previsível que o seu perfil se altere pela alteração do uso quer de espaços desocupados nas imediações quer pelas intervenções a serem realizadas pela ligação do Metro entre a Estação do Oriente e o Aeroporto da Portela. Como consequência deverá haver um aumento de tráfego viário, o que deverá potenciar a melhoria de qualidade da rua, bem como do espaço público que esta rua constitui.

Deste modo poder-se-á antever o aparecimento de serviços ou comércio, nos terrenos envolventes a estas vias também o que catalisará uma maior vivência das mesmas e o seu carácter mais urbano.

Rua Doutor João Couto, Benfica




Fig. 11



Fig. 12

Figuras 11 e 12 – Rua Doutor João Couto
Fonte: GoogleMaps, Gustavo Silveirinha 2011
Legenda: Pontos/Círculos vermelhos maiores: Infra-estrutura de elevado tráfego
Pontos/Círculos vermelhos pequenos: Rua Metropolitana Transitória avaliada

- Usos do solo envolvente
A rua Doutor João Couto situa-se na freguesia de Benfica, e o uso do solo da sua envolvente é maioritariamente habitacional excepção feita a pequeno comércio pontual e uma bomba de gasolina acessível pedonalmente também através desta rua. Não existem terrenos desocupados na envolvente próxima.

- Contribuição para o Local
A sua contribuição é para o local não é observável a não ser pelo serviço de circulação, uma vez que o seu perfil não inclui nem circulação para peões nem é definido, que não facilita nem a sua leitura, nem a segurança na interacção peão–automóvel nem de vivência. De referir que esta rua permite o acesso a uma passagem superior para atravessamento da 2ªCircular.

- Sensibilidade/Adaptação ao Local
Dada a sua situação em relação a uma infra-estrutura viária de elevada escala, ou seja extrema proximidade em relação à 2.ªCircular, apresenta um perfil desajustado uma vez que não possui actualmente escala de modo a funcionar como mediador de tráfego, numa eventual ligação.



Figura 13 – Rua Doutor João Couto
Fonte: Gustavo Silveirinha, 2011

Torna-se óbvia, no entanto, a influência simultaneamente negativa e positiva da envolvente na rua. A localização de um parque de estacionamento com alguma qualidade de desenho influência de forma positiva a leitura da rua. Negativa é também a proximidade da 2ªCircular que prejudica a qualidade do perfil da rua e da sua utilização.



Figura 14 – Rua Doutor João Couto
Fonte: GoogleMaps, 2011

- Futuro
A tendência de as ruas metropolitanas transitórias se tornarem mais urbanas, previsivelmente também se reflectirá aqui, com a colocação de passeios e a qualificação da ligação ao parque urbano já existente no inicio da rua.


Avenida Marechal Craveiro Lopes, Campo Grande




Fig. 15



Fig. 16

Figuras 15 e 16 – Avenida Marechal Craveiro Lopes
Fonte: GoogleMaps, Gustavo Silveirinha 2011
Legenda: Pontos/Círculos vermelhos maiores: Infra-estrutura de elevado tráfego
Pontos/Círculos vermelhos pequenos: Rua Metropolitana Transitória avaliada

- Usos do solo envolvente
Os usos do solo envolvente a esta rua são, maioritariamente, pequeno comércio e habitação, com alguma concentração de escritórios de serviços.




Figura 17 – Avenida Marechal Craveiro Lopes
Fonte: Gustavo Silveirinha, 2011

- Contribuição para o Local
A contribuição quase exclusiva desta rua para o local em que se encontra, é a de servir de local de estacionamento para o comércio e habitação da envolvente da envolvente. A nível de organização da circulação a contribuição actualmente é praticamente nula, bem como a nível do desenho de espaço público. Possui circulações para peões apenas junto aos edifícios do lado sul.

- Sensibilidade/Adaptação ao Local
Esta rua é paralela ao acesso à 2ªCircular pelo que não se relaciona directamente com a infra-estrutura de tráfego elevado próxima. No entanto a inexistência deste contacto não se reflecte na qualidade do espaço, funcionando apenas como cul-de-sac para inversão de marcha e alguma circulação pedonal residual de passagem dada a complexidade do espaço e de atravessamento do mesmo.

- Futuro
A inexistência de espaços desocupados não faria prever uma grande alteração no desenho e perfil da rua a curto prazo. No entanto, dado o seu carácter complexo, esta apresenta-se como uma solução viável para as tensões de circulação e ruas próximas (Figura 17), bem como apresenta espaço suficiente para permitir espaço de estadia, por oposição ao ser carácter confuso e de passagem para o tráfego pedonal.

Conclusão
A classificação de rua metropolitana transitória pode ser considerada temporária em relação às vias existentes, com a expansão da cidade, na medida em que elas poderão progressivamente “urbanizar-se”, ao transformar-se em “ruas urbanas”, avenidas ou até “mainstreets” de bairro, enquanto outras surgirão como novas ruas metropolitanas, com escala adequada a nova ligações supra-municipais.

Também no que se refere ao papel espacial transitório da rua em relação a uma infra-estrutura de elevado tráfego, o carácter desta é simultaneamente transitório espacial e temporalmente, uma vez que o seu posicionamento, dada expansão da cidade se foi alterando. Mas a médio prazo é previsível que o seu perfil se altere também e se torna também mais urbana e a sua escala adaptada à realidade envolvente, pelo que a ocorrer será uma alteração de escala em diversos graus da hierarquia viária.

Estes exemplos demonstram que a cidade funciona, mas poderia ser optimizada enquanto sistema, e enquanto elemento de vivência humana, pela qualidade de circulação, mobilidade, espaço público e identificação com o espaço urbano.

A concretização da cidade como um sistema funcional permitirá evitar o congestionamento das vias, facilitando a mobilidade e potenciando o funcionamento da cidade. A mobilidade cria qualidade de vivência e riqueza, factores que potenciam a expansão da cidade. Deste modo o sistema condicionar-se-á e controlar-se-á a si próprio.

O reconhecimento da cidade através da sua identidade não se deve à replicação pura e simples de soluções que funcionem em determinado momento e espaço, mas na qualificação de soluções parciais, na medida em que funcionem em conjunto de modo a transmitir essa identidade. A concretização do conceito de rua como espaço público e, permite a minimização dos custos a nível de desenho e espaço urbano pela implantação e influência das infra-estruturas, seja de que naturezas for. (ex. viária, ferroviária).

Assim a tendência da rua metropolitana transitória é a de se urbanizar, e ser um “condutor de urbanização”, de se adaptar à evolução da cidade, da alteração dos usos do solo, da localização de novos equipamentos.

Haverá no entanto que considerar um regresso progressivo a um centro das cidades cujo crescimento potenciou a sua desocupação. Esta reocupação implicará também reavaliar a relação das infra-estruturas viárias com o tecido urbano pré-existente através de ruas transitórias.

Deste modo será possível aproveitar as mudanças de paradigma urbano para concretizar novas soluções de desenho urbano e traçado que permitam a consolidação da cidade como sistema integrado de sistemas urbanos de menor escala.

Os novos territórios e tecidos urbanos criados por novas infra-estruturas deve-se referir que estes têm o potencial de adaptação que o tecido consolidado pode já não ter, de adaptação prévia e qualificação quer do espaço público, quer especificamente da das relações entre tecido urbano e infra-estrutura, com especial atenção às ruas transitórias e à cidade transitória que as engloba.

Nota do autor
Neste artigo e seguindo a etimologia da palavra, do latim transitorius, o uso feito do adjectivo transitório refere-se a elementos cujas características que os constituem se focam especificamente na mobilidade e passagem que estes proporcionam e permitem.

Simultaneamente este adjectivo foi utilizado na sua acepção com sentido de algo cuja duração é passageira ou pouco duradoura, o que concretamente neste caso se refere ao carácter indefinido mas em mutação do perfil das ruas.

Num contexto menos lato poder-se-ia talvez considerar a rua como um elemento transitário, no entanto poderia levar a uma consideração redutora quer do papel da rua no desenho da cidade.
Assim como seria redutora pelo do carácter social, espacial e complexo da rua no que se refere também a ser espaço público apropriável e de estada e relação pessoal. Deste modo o conceito de transitário está implícito daí a sua não consideração.

transitório (9) - (latim transitorius, -a, -um, que serve de passagem, por onde se passa)
adj.
1. Que dura pouco.
2. Passageiro, breve.

transitário (10) - (trânsito + -ário)
adj.
1. Relativo ao trânsito.
2. Atravessado gradualmente pelo trânsito ou por mercadorias em trânsito.
adj. s. m.
adj. s. m.

Notas:
(1) Kosso, P. – Appearence and reality, An Introduction to the Philosophy of Physics, New York: Oxford university Press, 1998

(2) Ascher, François – Métapolis ou l’avenir des villes, Paris: Editions Odile Jacob, 1995.

(3) Sassen, Saskia – The Global City: New York, London, Tokyo: Princeton University Press, 1991

(4) Chambers, Iain -: Migrancy, Culture, Identity, London and New York: Routledge, 1994

(5) Rykwert J. The Street: the Use of its History. In: Anderson S, editor. On streets. Cambridge, Mass.: M.I.T. Press, 1978.Rykwert J. The Street: the Use of its History. In: Anderson S, editor. On streets. Cambridge, Mass.: M.I.T. Press, 1978.Rykwert, J. – The Street: the Use of its History. In: Anderson S, editor. On streets. Cambridge, Mass.: M.I.T. Press, 1978.

(6) Brandão, P. – Manual de Metodologia e Boas Práticas para a Elaboração de um Plano de Mobilidade Sustentável

(7) Jacobs, Jane – The death and life of great American cities, Londres, Pimlico, 2001

(8) Weaver, Warren, “Science and Complexity”, American Scientist 36: 536, 1948, (Recolhido em 19-01-2011);
http://www.ceptualinstitute.com/genre/weaver/weaver-1947b.htm
“Warren Weaver sugeriu que a complexidade de um determinado sistema é o grau de dificuldade em prever as propriedades do sistema, se as propriedades de partes do sistema são dadas.“

(9) in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa,
http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=transit%C3%B3rio,
[consultado em 2011-03-06]

(10) in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa,
http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=transit%C3%A1rio,
[consultado em 2011-03-06

Notas editoriais:
(i) A edição dos artigos no âmbito do blogger exige um conjunto de procedimentos que tornam difícil a revisão final editorial designadamente em termos de marcações a bold/negrito e em itálico; pelo que eventuais imperfeições editoriais deste tipo são, por regra, da responsabilidade da edição do Infohabitar, pois, designadamente, no caso de artigos longos uma edição mais perfeita exigiria um esforço editorial difícil de garantir considerando o ritmo semanal de edição do Infohabitar.
(ii) Por razões idênticas às que acabaram de ser referidas certas simbologias e certos pormenores editoriais têm de ser simplificados e/ou passados a texto corrido para edição no blogger.
(iii) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.

Infohabitar a Revista do Grupo Habitar
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte
Infohabitar, Ano VII, n.º 339, 26 de Março de 2011

O Grupo Habitar - APPQH, é uma associação técnica e científica sem fins lucrativos, que tem sede no Núcleo de Arquitectura e Urbanismo (NAU), do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC)

domingo, março 20, 2011

338 - O convívio no habitar e no espaço urbano - Parte II - Infohabitar 338

Infohabitar, Ano VII, n.º 338
Novos comentários sobre a qualidade arquitectónica residencial
Melhor Habitação com Melhor Arquitectura X:

O convívio no habitar e no espaço urbano - Parte IIArtigo de António Baptista Coelho
NOTA IMPORTANTE: POR SE TRATAR DE UM ARTIGO COM MAIS DE 20 PÁGINAS FOI DIVIDIDO EM DUAS PARTES - A PRIMEIRA PARTE EDITADA NA SEMANA PASSADA (EMBORA SEMPRE DISPONÍVEL ON-LINE) E A SEGUNDA E ÚLTIMA PARTE ESTA SEMANA, JUNTANDO-SE UM ÍNDICE PARA ORIENTAÇÃO: A BOLD/NEGRITO A PARTE DO ARTIGO EDITADA ESTA SEMANA.

Habitação e Arquitectura X: O convívio no habitar e no espaço urbano - Parte II

Índice

1 - Entre convivialidade e privacidade, um equilíbrio vital
2 - Introdução à convivialidade arquitectónica residencial
3 - Aspectos estruturadores da convivialidade
4 - A convivialidade: da habitação, à vizinhança e ao bairro
5 - Estratégias de convivialidade
6 - A rua convivial: matéria base do bom urbanismo
7 - A convivialidade nos espaços públicos versus a espaciosidade nos espaços edificados
(i) A convivialidade nos espaços públicos
(ii) A convivialidade na vizinhança de proximidade e na relação desta com os edifícios
(iii) A convivialidade nos espaços edificados
8 - Carácter e importância específica da convivialidade
9 - Notas de reflexão e para desenvolvimento sobre a convivialidade arquitectónica residencial




Fig. 08

5 - Estratégias de convivialidade arquitectónica residencial e urbanaProvavelmente a principal estratégia de convivialidade será a dinamização do uso dos espaços públicos por inúmeras actividades potenciais, contíguas às habitações e residentes no próprio espaço público; actividades essas que se caracterizem por um expressivo sentido de atractividade e de potencial de afectividade, pois estamos a lidar com eventuais espaços de "expansão" da vida doméstica.

Para se desenvolver uma efectiva afectividade citadina e residencial é importante favorecer, como defende Larry Ford (2000) (11), “uma cidade com fachadas permeáveis e com grande variedade de acessos ao nível da rua, que é muito mais dinamizadora da vida cívica do que uma cidade caracterizada por estruturas do tipo fortalezas com paredes cegas e portas invisíveis”, porque “a vida nas ruas é definida e guiada pelas características dos edifícios envolventes.” E lembremos, a propósito, que as ruas são praticamente impossíveis de formatar com grandes edifícios relativamente isolados.

Visa-se, assim, uma rua cívica, humanizada e diversificada, pois, tal como é apontado por Rapoport (1977) (12): “o desenho deveria gerar a maior variedade possível de signos de actividade humana. O uso de canais de informação polisensoriais aumenta a capacidade de congruência", enquanto… "a predominância de signos automóveis reduz e empobrece a referida congruência … outras razões" (de incongruência residencial) "são a falta de jardins, a densidade excessiva, a regulamentação exagerada… (Sieverts 1967) ... Para os adolescentes e as crianças as áreas com signos de actividade humana são elementos centrais da percepção urbana, os edifícios…recordam-se com facilidade se estiverem relacionados com alguma actividade vital.”

Temos, assim, caminhos estratégicos de dinamização do uso do espaço público e, consequentemente, da convivilidade no habitar, mas a montante desta estratégia de diversificação e, especialmente, intensificação do uso das desejáveis continuidades de espaços públicos, aplicável sistematicamente numa escala micro-urbana, está uma preocupação de ordenamento que podemos definir como de multifuncionalização e vitalização do espaço urbano.

Visa-se um desenho humanizado e diversificado, configurado numa aliança de objectivos de vitalidade urbana e de vitalidade e agradabilidade residencial, tal como foi defendido por Jane Jacobs (1961): “Planeamento para a vitalidade: a maior diversidade de meios, usos e pessoas em cada bairro; interpenetração contínua de vizinhanças com segurança nos espaços públicos o mais possível dada pelos seus usuários; combater a existência nociva de zonas de fronteira desertas e ampliar a identidade dos bairros; recuperar cortiços convencendo assim seus moradores a ficarem; transformar a autodestruição da diversidade em forças construtivas; explicitar a ordem visual das cidades.” (13)

E Jane Jacobs sublinha que para se favorecer uma positiva diversidade nas ruas e nos bairros: “o bairro deve atender a mais de uma função principal e de preferência a mais de duas; a maioria dos quarteirões devem ser curtos; as ruas e as oportunidades de virar esquinas devem ser frequentes; o bairro deve integrar edifícios com diferentes idades e estados de conservação (diferentes rendimentos e oportunidades) numa mistura que deve ser compacta; e numa densidade suficientemente alta de pessoas” (Jacobs, p.165).

Mas, provavelmente, a melor estratégia para se dinamizar a convivialidade residencial é continuar a apostar em boas ruas, pois, afinal, e como defende Jaime Lerner, a rua deve ser a melhor invenção no que se refere a um espaço urbano vivo e eficaz; e sobre a rua convivial apontamos, em seguida alguns aspectos.


Fig. 09

6 - A rua convivial: matéria base do bom urbanismoCitando Hertzberger (1991) (14), “o conceito da rua de convivência está baseado na ideia de que os moradores têm algo em comum, que têm expectativas mútuas… (p. 54)... Casas e ruas são complementares! A qualidade de uma depende da qualidade da outra (p.63). …Dar igual atenção à casa e à rua significa tratar a rua não apenas como espaço residual …, mas sim como elemento fundamentalmente complementar” (p.64).


A rua urbana com continuidade constitui o cenário básico para a integração de equipamentos colectivos muito diversos, não apenas na sua perspectiva funcional, mas também numa perspectiva integrada, tanto em termos de aspecto (quadro de fundo, composição variada, etc.), como em termos sociais de animação e de apropriação – equipamentos mais frequentados que são usados como animadores das cenas urbanas (exº, paragens de transportes públicos, jardins urbanos colaborando fortemente na integração entre edifícios).

Diferentes tipos de habitar e de gostos de habitar encontram, também, na rua o seu espaço público comum, lugar de consenso possível, elo de continuidade urbana, sítio de conciliação entre o lazer e o trabalho, espaço de ligação entre vizinhanças, que, cada vez mais, não se agregam e usam em torno dos tradicionais equipamentos colectivos de bairro ou de "célula" (escola do bairro em que se reside, comércio local, etc.).

As funções da rua podem constituir-se no principal elemento de adequação entre diversas vontades de convívio, que são expressas por muitas pessoas; desde aquelas que pretendem fortes laços de convívio, entre vizinhos, nos próprios edifícios habitacionais, até às outras, que nos devem merecer idêntico respeito, e que pretendem uma extrema condição de privacidade e anonimato no edifício urbano (escolhendo, por vezes, o "grande multifamiliar", exactamente para obter tais condições). Mas a rua, como sabemos, teve ultimamente muitas das suas funções menorizadas.

Para além da rua mais “corrente”, se é admissível utilizar uma tal expressão, há outros convívios bem possíveis e desejáveis em outras arquitecturas expressivamente “conviviais”, que importa aprofundar na extensa complexidade e riqueza das suas caracterizações, entre as quais é possível, desde já, apontar algumas – faz-se notar que não foi possível identificar o autor do excelente artigo referido e do qual se retiraram grande parte dos elementos que são, em seguida, apontados: (15)

- Ruela: se a rua que limita quarteirões é o espaço de animação por excelência a ruela tem a vocação à escala da vizinhança; mais que uma passagem pode ter algumas das funções da rua, tolerando alguns automóveis.

- Passagens e impasses privativos: agrupamento em torno de uma pequena rua privativa com habitações unifamiliares em banda ou pequenos multifamiliares com escala reduzida, sempre sob a forma de intervenções pontuais na organização urbana tradicional, relacionadas com situações de preenchimento urbano.


- Pátio: forma de agrupamento semelhante à “passagem”, mas com uma escala mais pequena, convindo quer a situações menos urbanas, quer a certas disposições do terreno.

- Pequenos multifamiliares com escala humana: tipo de habitar ligado à rua e ao quarteirão urbano, constituindo o centro de todas as pequenas povoações; soluções mais isoladas ou mais em banda e nestas mais rígidas ou menos rígidas e estruturadoras do espaço colectivo.

- Edifícios de cidade: condições idênticas às anteriores mas agrupando maior número de fogos, participa de uma certa convivialidade no modo como se integra na cidade, e a sua concepção designadamente a nível dos seus espaços comuns pode incitar à criação de relações estreitas entre os habitantes.

- Conjuntos de casas: alusão à tradição de certas regiões, numa tentativa de recuperar o potencial poético das casas individuais mas (re)inventando instrumentos ao serviço de uma prática colectiva do conjunto graças à disposição das escadas e aos arranjos que as acompanham.

- Entrada: transição entre a rua pública e o espaço aberto e o interior do fogo, essencialmente, privado e fechado, usa elementos situados entre a rua e o edifício (ex., jardinetas privadas, tratamentos de pequena escala); depois são as entradas com os seus prolongamentos exteriores, como por exemplo: murete de sentar e falar, iluminação nocturna, garagem para bicicletas, revestimento de solo mais cuidado relacionado com o do próprio hall, efeitos de luz, etc. Sítio muito frequentado de encontro, mais ou menos fortuito, entre vizinhos e de agrupamento dos adolescentes. Sítio importante para os habitantes porque dá do edifício uma imagem “de primeira linha”.

- Escada e patim: o arranque da escada pode, ou não, convidar a subir, é importante que a escada e sobretudo os patins tenham luz natural, que se tenha vista exterior e que os patins tenham um bom tamanho para suscitarem paragem e, potencialmente, algum convívio, podem ser também integrados elementos que suscitem a integração de plantas e/ou o estar sentado e a observação, por exemplo, da rua.

- Galeria: bem tratada e dimensionada pode ser um prolongamento elevado da rua, para isso tem de ter adequadas dimensões e ser tratada com uma certa transparência, mas também tem de ser um sítio abrigado e agradável, e que sirva um número reduzido de fogos.

- Superfícies comuns: na proximidade dos átrios comuns para os adolescentes, em posições elevadas para jogos de crianças ou actividades comuns (lavagem, passatempos, etc.), ou eventualmente apropriáveis por pessoas de certos fogos (ex., quartos para estadas curtas); tudo isto exige como base uma boa estrutura de gestão local.


Fig. 10

7 - A convivialidade nos espaços públicos versus a espaciosidade nos espaços edificadosWilliam Mitchell (2000) (16) lembra a história do homem, quando o espaço junto ao poço perdeu a sua função e se inventaram outros sítios urbanos conviviais como o café, e defende que a história se repete, hoje, pois antes tínhamos de sair de casa para trabalhar e para ir ao cinema e ver os amigos e hoje tudo isto se pode fazer na nossa casa. Isto é bom, por um lado, mas, por outro, Mitchell sublinha que as organizações e os sistemas citadinos fragmentam-se e dispersam-se e a vida nos espaços públicos parece disseminar-se e perigar. E William Mitchell defende que, mais uma vez, devemos (re)inventar os espaços públicos, os povoados e as cidades deste novo século.

A convivialidade tem, assim, uma importante presença ao nível dos espaços públicos, quer mais intensamente urbanos, quer vicinais; no entanto também há uma convivialidade doméstica e, entre uma e outra, até, alguma convivialidade condominial poderá fazer todo o sentido, tanto em condições habitacionais correntes, como em condomínios socialmente específicos: será o caso de residências para seniores, estudantes e pessoas isoladas, será o caso de edifícios para famílias monoparentais; será o caso de soluções para determinados grupos socioculturais; e afinal poderá ser o caso de apostas específicas em “segundas e/ou terceiras vias” de convívio (urbano, vicinal, condominial e doméstico)...

(i) A convivialidade nos espaços públicos

O espaço público é por natureza gregário, havendo definições de territórios e pólos de actividade e animação dos mesmos que serão, sem dúvida, favorecedores de uma predisposição para o convívio....fazer espaços predispostos para o convívio assumidamente urbano ou de um grupo de vizinhos são situações bem diferentes.

Não se trata de fazer condomínios de convívio obrigatório, mas sim de configurar troços urbanos estratégicos e recintos de vizinhança próxima que sejam naturais geradores de convivência informal, por exemplo, á volta da mesa do café ou da esplanada, a participar num jogo de grupo ou simplesmente a assistir ao mesmo. Mas que fique bem claro que tal “naturalidade” tem de ser cuidadosamente projectada (ex. no interior de quarteirões ou em pracetas residenciais).

(ii) A convivialidade na vizinhança de proximidade e na relação desta com os edifíciosUma bem afirmada e agradável vizinhança de proximidade (ex. interior de quarteirão, impasse ou praceta residencial), como o nome indica, é um local muito favorável para a geração de laços de convívio, que por vezes nascem entre crianças e depois se prolongam a outros residentes.

Em termos de uma reflexão geral sobre esta matéria apuram-se, para já, os seguintes aspectos retirados de um artigo do pediatra Mário Cordeiro e do colega Tiago Queiroz (17):

"O melhor ambiente vivido nas cidades teve um impacto muito positivo na saúde das populações ... Actualmente, o conceito de cidade e a sua prática sofreram algumas distorções e desvios, criando novos e intensos problemas, no cerne do qual estão os sistemas de transportes, a poluição, a perda de identidades e de sentimentos de pertença, e a descaracterização do espaço público, designadamente a «perda da rua» enquanto espaço lúdico, relacional e estético. As crianças e jovens são os primeiros, a par dos idosos, a sofrer com isso. Não se creia, contudo, que a culpa está nas cidades, mas sim na forma como por vezes estão a ser planeadas e geridas.

E os autores apontam o caminho: Há que "Redimensionar os espaços de habitação, a sua articulação e a multiculturalidade e carácter transgeracional, redimensionar os espaço comercial, lúdico e laboral, e fazer cada vez mais da cidade um aglomerado de «pequenas aldeias» (bairros), como ainda existem em tantas delas, em que as grandes deslocações sejam muito mais limitadas e os percursos a pé sejam privilegiados, e em que as hipóteses de encontro de pessoas da família, amigos.”
E Mário Cordeiro e Tiago Queiroz sublinham, assim, a importância da construção e reconstrução de vizinhanças de proximidade bem definidas e agradáveis, tornando-se a cidade um espaço estrategicamente mais compartimentado, apropriado, diversificado e atraente.

(iii) A convivialidade nos espaços edificados

Ao nível do edificado é possível conceber um edifício, mais ou menos, convivial. É possível sugerir o interesse de se passar por um espaço de estar e lazer que é de todos antes de nos recolhermos aos nossos mundos privativos e é possível, mesmo nestes mundos, sugerir, física e ambientalmente diversas opções de convívio doméstico. Mas tais sugestões não podem ser mais do que isso, pois sendo imposições, sem alternativas, terão maus resultados.
E há que ponderar as formas e modos de habitar em termos da sua compatibilidade com as soluções de estruturação dos espaços comuns e do seu respectivo relacionamento com as habitações.

(iv) A convivialidade na habitação
Ao nível do fogo é possível e muito desejável criar pólos diversificados e articulados de convivialidade no mesmo espaço doméstico e/ou em espaços distintos.
E não tenhamos dúvida de que é fundamental cuidar especificamente da existência de condições propícias ao convívio doméstico estrategicamente distribuídas pela habitação e designadamente: na cozinha, na sala comum e na zona de entrada.


Fig. 11

8 - Carácter e importância específica da convivialidadeA convivialidade é uma qualidade apenas em parte subjectiva, que se liga a distâncias inter-pessoais e à percepção territorial, sendo essencial para a coesão citadina, vicinal, condominial e doméstica.

A convivialidade tem de ser uma qualidade expontânea ainda que sugerida pelos espaços e ambientes, pois do seu excessivo enquadramento só resultarão, em situações correntes, efeitos perversos e opostos aos desejados; até porque há diversos níveis de convivialidade e alguns deles têm de ser objectivamente desejados pelos próprios habitantes.

Ficam para ponderação situações especiais eventualmente adequadas a grupos socioculturais muito específicos, e mesmo neste caso ficará por resolver a respectiva integração urbana.

Tal como se salientou no início detes ítem, convivialidade e privacidade são aspectos fortemente complementares e que interagem muito positivamente, numa gradação de territórios e de limiares que, entre os extremos da cidade animada e do recanto doméstico individual, têm forte expressão ao nível do convívio em locais de passagem, transição e paragem natural, como são o café na esquina, o espaço de recreio no interior do quarteirão e o átrio exterior que antecede a entrada no edifício.


Fig. 12

9 - Notas de reflexão e para desenvolvimento sobre a convivialidade arquitectónica residencial
Como notas de reflexão sobre a convivialidade urbana e residencial, salientam-se os seguintes aspectos.
A convivialidade numa perspectiva arquitectónica e residencial tem a ver com o viver em comum, com o ter familiaridade e camaradagem, com a entreajuda natural, a sociabilidade entre vizinhos e o trato diário espontâneo e fácil em unidades de convizinhança. Através do viver em comum relaciona-se com a convizinhança, que é o estado ou situação de quem é vizinho com outrem, de quem está próximo e/ou é semelhante.

A convivialidade relaciona-se com o conceito de comunidade, entendida como sociedade, agremiação e lugar onde vivem indivíduos agremiados, que se "ajuntam" em assembleias; e devemos ter presente que há diferentes graus e diversas expressões físicas de convivialidade.

Deve sempre destacar-se que a condição de convivialidade residencial tem de ser inteiramente espontânea e natural; o desenvolvimento de qualquer tipo de convivialidade fisicamente imposta é, basicamente, um factor negativo, a combater, porque tem como consequência o arrastar dos indivíduos obrigados ao convívio para posições extremadas de isolamento e de rejeição desse mesmo convívio.

Há no entanto que afirmar, com clareza, a importância de uma convivialçidade reforçada ao nível do habitar, com todas as implicações a ela associadas – espaciais, conforto, etc. - pois, afinal, e como escreveu Joaquín Arnau (2000) (18): “É na convivência, e não na simples vivência, que Vitrúvio refere estar a origem da cabana primitiva” (p. 30).

E a convivlidade é tão pública como privada, sendo que provavelmente aquilo em que muitas casas/habitações falham é na iexist~encia de adequadas condições de convivialidade doméstica, condições que promovam um encontro diário, consistente e securizador, do tipo daquele a que se refere José Gomes Ferreira (“Poesia VI”, Lisboa, Diabril, col. Obras de José Gomes Ferreira, 1976, 255p): “À tardinha acendemos o fogo na lareira/ e é como se fosse de novo o princípio do mundo / quando o silêncio / ainda criava pedras / para depois haver tempo concreto,/ tempo alheio” (p. 50).

Em termos dos desenvolvimentos considerados mais interessantes nestas matérias da convivialidade urbana e residencial, salientam-se os seguintes temas de estudo.

- A convivialidade liga-se ao viver numa relativa ou afirmada comunidade, ao ter familiaridade ou camaradagem vicinal, à entreajuda natural ou à simples e civilizada sociabilidade entre vizinhos, bem como ao trato diário espontâneo e fácil em unidades de convizinhança.

- O convívio urbano e na vizinhança é um trunfo essencial para a construção e reconstrução de espaços urbanos vitalizados e motivadores e, actualmente, um trunfo urgente mas difícil de lançar, quer porque o espaço urbano é residual e não comporta determinados elementos constituintes, quer porque o projecto é incompleto e defeituoso e/ou o promotor não considera que tal qualidade é importante.

- O convívio doméstico, em espaços alternativos, por exemplo à volta da mesa e com a possibilidade de fuga à poluição televisiva, é um trunfo valioso para a coesão familiar, mas colide, frequentemente, com espaços unifuncionais, relativamente apertados e dominados pela “caixa mágica”.
- O convívio condominial é mais complexo e, eventualmente, discutível, mas um número reduzido de fogos e a possibilidade de uma ou outra actividade de vizinhança, que pode ser até a conversa breve de circunstância, serão sempre aspectos positivos....há muito a aprender com soluções experimentadas, embora entre nós e infelizmente a tendência seja sempre para uma renovada tábua rasa.

Notas:(11) Larry Ford, “The Spaces between Buildings”, 2000.
( 2) RAPOPORT, Amos Rapoport, “Aspectos humanos de la forma urbana – Hacia una confrontación de las Ciências Sociales com el diseño de la forma urbana”, 1978 (1977), p. 320.
( 3) Jane Jacobs, “Morte e vida das grandes cidades” , trad. Carlos Mendes Rosa, 2001 (1961), pp. 454 e 455.
( 4) Herman Hertzberger, “Lições de Arquitetura”, trad. Eduardo Lima Machado, 1996 (1991), várias pp.
( 5) Autor não definido, “Architectures conviviales”, in Habitat Social, Paris, s.d., pp.9 a 22.
( 6) William J. Mitchell, “E-topía - Vida urbana, Jim, pero no la que nosotros conocemos”, 2001 (2000).
( 7) Mário Cordeiro e Tiago Queiroz, "A cidade, a criança e a saúde: contributos para uma mudança de paradigmas", em Cadernos edifícios, n.º 4, "Humanização e vitalização dos espaços públicos", pp. 83 a 108.
( 8) Joaquín Arnau, “72 Voces para un Diccionario de Arquitectura Teórica”, 2000.

Notas editoriais:(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.

Infohabitar a Revista do Grupo Habitar
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte
Infohabitar, Ano VII, n.º 338, 20 de Março de 2011