segunda-feira, abril 29, 2013

437 - ENTRE A RUA E A HABITAÇÃO, OS ESPAÇOS COMUNS - Infohabitar 437

Infohabitar, Ano IX, n.º 437
Artigo XXXI da Série habitar e viver melhor
ENTRE A RUA E A HABITAÇÃO, OS ESPAÇOS COMUNS: ELEMENTOS NEGATIVOS E POSITIVOS
António Baptista Coelho

Entrando no edifício habitacional e ainda sem se considerarem as suas diversas tipologias e opções organizativas e de imagem, vamos pensar um pouco e genericamente sobre ele.

Considerando um anterior estudo, realizado no LNEC e já várias vezes citado (ITA 2), podemos destacar os seguintes elementos negativos, como constituintes habituais do edifício multifamiliar, e a combater quando se visa a criação de um edifício que agregue um conjunto habitações agradáveis e estimulantes.
- as escadas comuns enclausuradas e sem janelas exteriores, escadas estas cuja função é reduzida, essencialmente, a aspectos de acessibilidade de segurança;
- os patins comuns enclausurados e sem janelas exteriores, espaços estes cuja função é também reduzida a aspectos de acessibilidade em segurança.

Tais soluções incorrem num “pecado quase capital”, é que o edifício multifamiliar, onde habitam muitas pessoas, não é uma “máquina de habitar” e os seus habitantes não podem fechar os olhos e imaginar que esses espaços comuns enclausurados e claustrofóbicos não existem, quando, diariamente, circulam entre a porta de casa e a porta do edifício; e tudo o que mais se diga faz realmente pouco sentido, pois em soluções como estas parece esquecer-se que habitar é também usar estes espaços com agrado, pelo menos “mínimo”, e dá vontade de dizer que mesmo esta opção minimalista é claramente condenável.


A circunstância de estas reflexões serem pouco compatíveis com alguns aspectos regulamentares existentes deverá implicar, quer a desejável revisão de tais regulamentos, quer um trabalho de concepção cuidadoso que, pelo menos, reduza tais situações muito pouco “felizes”, o que será, por exemplo, possível com a introdução de vãos nas escadas, entre o interior e o exterior e entre espaços interiores, bem como através da previsão de vãos exteriores nos patins dos fogos. Vãos estes que terão de ser devidamente concebidos em termos da segurança contra risco de incêndio, mas que são também essenciais para o conforto no uso desses espaços, através de uma adequada luz natural e de vistas estimulantes sobre o exterior.

Haverá também alguma culpa de quem projecta na ausência de soluções que aliem certos aspectos de enclausuramento de segurança contra riscos de incêndio, que são fundamentais, com o desenvolvimento de verdadeiros aspectos de conforto ambiental (luz natural e ventilação) nos espaços comuns.

A ideia que fica é que não há uma adequada escala de valores em termos do que é mais importante nos espaços comuns residenciais e aqui, não tenho dúvida em dizer que a segurança contra risco de incêndio não é mais nem menos importante do que poder-se ter luz natural e ventilação junto às portas de casa; trata-se de matérias distintas, mas ambas essenciais, quer para a adequada segurança em termos de risco de incêndio, quer para o adequado conforto no uso da habitação.

É, portanto, essencial para um melhor habitar num edifício multifamiliar que haja luz natural, ventilação e, já agora, algumas vistas exteriores nos espaços comuns de circulação.

Imagine-se, agora, uma solução multifamiliar deste tipo, enclausurada, e consequentemente triste, em que os espaços comuns são zonas “negras” e aplique-se esta solução num edifício com grande dimensão e, já agora, para cortar etapas, apliquem-se dimensões mínimas e acabamentos e equipamentos mínimos (ex., elevadores “claustrofóbicos”), quer nesses espaços comuns, quer na sua imagem pública: muito “triste” será, provavelmente, o resultado, muito triste porque muito pouco compatível com as formas que muitos de nós privilegiamos para viver.

Mas sejamos ainda mais negativos, para concluir, e imaginemos que numa tal solução residencial decidimos alojar pessoas muito habituadas a viverem o seu dia-a-dia numa forte relação com o exterior e com um diversificado leque de vizinhos, e, já gora, imaginemos, só para sermos mesmo negativos, que num dado realojamento, já marcado pelas situações anteriores, não se consideraram essas redes de amizade – e provavelmente é bem difícil, se não impossível, respeitá-las a todas.
Enfim, não teremos, com certeza, um edifício em que seja agradável e estimulante viver.

Fig. 1

Mas teremos, sem dúvida, edifícios muito mais estimulantes se tiverem pequena dimensão e se nos seus espaços comuns a luz natural entrar em quantidade, e se houver aí tantas plantas que parece que o exterior vem até à porta da habitação, e se no Verão tais espaços forem razoavelmente frescos e se no Inverno não forem muito frios e se houver vistas sobre o exterior e o exterior for atraente, e se as portas de acesso às habitações forem bem cuidadas e apropriáveis, proporcionando um sentido de “casa” e não uma imagem impessoal de mais uma porta “fria” e igual a muitas outras.

E lembremos que, evidentemente, não estamos aqui, nem podíamos estar, contra quaisquer medidas regulamentares necessariamente muito rigorosas, porque associadas a aspetos de segurança que podem colocar em risco a vida dos habitantes – como o caso das medidas associadas ao risco de incêndio. Estamos sim a procurar sublinhar que no desenvolvimento e na implementação destas vitais medidas de segurança na habitação e designadamente em edifícios multifamiliares há que ter bem presente o sentido habitacional do quadro que se está a desenvolver e consequentemente a sua agradabilidade e capacidade de atracção e mesmo de apropriação pelos seus habitantes; e consequentemente há que harmonizar as respetivas medidas de segurança com esse mesmo quadro não colocando as pessoas em risco, mas afectando no mínimo possível as respetivas condições de conforto e atractividade na vivência dos respetivos espaços comuns.


Naturalmente que nas situações existentes em que se detectem intervenções de habitantes que ponham em risco a sua segurança, há que intervir claramente na reposição das condições mais adequadas, aproveitando-se para esclarecer os habitantes relativamente à razão de ser das soluções escolhidas e ao crítico perigo que correm quando inviabilizam ou dificultam, com as suas intervenções, as condições de segurança programadas, tais como acontece com portas corta-fogo bloqueadas na posição de abertas e com escadas (fundamentais para evacuações e ações de emergência) densamente ocupadas com vasos de plantas.


É interessante reflectir que com os comentários acima apontados, relativamente ao aprofundamento da habitabilidade e da atractividade dos espaços comuns de edifícios multifamiliares, nos estamos a aproximar, passo a passo, mas claramente, de uma solução genérica em que parece que “a casa” está ali naquele andar, daquele prédio, sendo este constituído por um conjunto ou agrupamento de “casas”; sendo que fora de cada habitação/”casa” o espaço comum quase se dilui para fazer entrar o exterior e a natureza.

Ou então, alternativa ou complementarmente, estamos a aproximarmo-nos de uma solução em que há todo um “mundo” comum interiorizado habitável, envolvente, confortável e estimulante que prolonga e complementa o espaço doméstico estando fora dele – numa “figura” globalmente associável à de um agradável “hotel”, que nos disponibilze para além dessse interessante ambiente, um conjunto estimulante de serviços.

Talvez este seja um caminho para edifícios onde nos podemos vir a sentir mais satisfeitos e estimulados no dia-a-dia, talvez um dos caminhos principais, “interiorizando/domesticando” agradavelmente o espaço comum, pelo menos, através de uma pontuação estratégica com zonas de luz natural, pontos de vista sobre a paisagem exterior e elementos fortes de apropriação (naturais ou bem desenhados), e, naturalmente, através uma disponibilidade de espaços e de equipamentos que pouco terão a ver com áreas e custos mínimos.

Mas há situações onde luz natural, em quantidade, e excelentes vistas sobre o exterior seriam possíveis com muito pouca despesa suplementar, mas a opção foi fechar paredes, fazer panos de paredes cegos, ou quase cegos; e, realmente, não se entende, nem deveria ser aceite por quem decide e vai gerir, a seguir, tais edifícios.
E podemos também considerar que conforto e espaciosidade, nos espaços comuns, sendo qualidades desejavelmente associadas, podem também ser razoável e mutuamente compensatórias, sendo, por exemplo, possível programar uma escada comum extremamente agradável em termos de luz e de vistas e espacialmente mínima, embora estas escolhas se liguem, tendencialmente, a edifícios relativamente pequenos (pouco altos).


Fig. 2

Um outro aspecto a considerar nas soluções gerais de edifícios multifamiliares é que o percurso entre cada habitação e “a rua” deve ser funcional, seguro (aqui é fundamental a visibilidade de segurança), não intrusivo da privacidade nas habitações, confortável no apoio à movimentação e atraente (bem cuidado, equipado e limpo); desta forma será possível incentivar o seu uso, enquanto em situações contrárias as pessoas tenderão a reduzir tais percursos ao mínimo indispensável, podendo-se chegar a situações de verdadeiro entrincheiramento em casa (há, infelizmente, casos concretos), o que reduzirá drasticamente quer a vida no edifício, quer a vida nos espaços públicos vizinhos. E sublinha-se que nenhuma dessas condições tem a ver com mais despesas, mas sim com um melhor projecto.

Há aqui uma matéria complementar e importante a considerar, que por alguns pode ser considerada óbvia, mas que quem visite bairros e conjuntos habitacionais sabe ser verdadeira; é que fazer tudo isto só faz verdadeiro sentido se o exterior envolvente estiver adequadamente arranjado e cuidado, de outra forma a nossa única hipótese será usar os agradáveis espaços comuns para, rapidamente, aceder ao automóvel e ir dali para fora; mas isto evidentemente não é vizinhança nem é cidade.

E sobre esta matéria Pearl Jephcott diz-nos que se pode gostar de um certo anonimato e isolamento, que pode ser por exemplo oferecido por um grande edifício, ou, digo eu, pela organização específica (ex., “orgânica” e repartida) de um edifício com dimensões correntes, mas a autora defende que acabamos por nos ressentir de um isolamento excessivo, nomeadamente, no caso das pessoas que vivem sós e especificamente quando não há verdadeiras possibilidades de convívio ou animação urbana nos espaços públicos próximos.(1)

Os espaços comuns são, assim, elementos fundamentais da relação entre o exterior residencial público e os domínios privados domésticos, são espaços que podem ser mais agradáveis e estimulantes se criarem boas relações quer no sentido/percurso da dimensão pública, quer no sentido/percurso do mundo privado, e para tal devem relacionar-se com eles, das mais diversas formas – vãos, acabamentos, transições espaciais, etc. – e se com eles não se relacionarem activamente pouco agrado poderão proporcionar.

No entanto, para além destes aspectos, os espaços comuns constituem, eles próprios, uma dimensão residencial específica que pode e deve ajudar as outras duas – exterior e habitação –, relacionando-se com elas e pode constituir, por si própria, um espaço residencial indutor de satisfação e de agrado/estímulo.
Só que, frequentemente, e com frequente excepção na entrada principal do edifício, os espaços comuns são tratados como verdadeiras sobras, espaços residuais e espaços “entre”, sem um sentido e uma razão de ser próprios. E, incrivelmente, nesta perspectiva a posição regulamentar e minimalista que tende a reduzir os espaços comuns a uma espécie de “máquinas de acessibilidade” seguras, acaba por fazer um triste sentido. E isto embora não nos possamos esquecer que os regulamentos indicam “mínimos”, não os impondo; mas evidentemente tais mínimos acabam por ser regra, seja em boa parte da habitação corrente de mercado, seja também em boa parte da habitação apoiada pelo Estado.

Mas o espaço comum tem de ser muito mais do que isso e é por esta razão que, muitas vezes, é preferível diluir os espaços comuns numa grande afirmação da relação entre natureza e habitações, com zonas comuns muito abertas, rústicas, simplificadas e duráveis, e mesmo em soluções que acentuam a relação directa entre habitações e exterior público, de do que encasular espaços comuns exíguos e pobremente acabados.


Neste texto procurou-se discutir soluções para os espaços comuns de edifícios multifamiliares, iniciando-se o comentário por situações frequentemente associadas a aspetos regulamentares e evoluindo-se, depois, para uma abordagem mais ampla do leque de possibilidades de projecto existentes, leque este sempre menorizado por opções que tendem a considerar que as tipologias mais correntes e recentes serão as “únicas” e as mais económicas, o que se julga não ser verdade.

Lembremos então e finalmente que toda esta teia, potencialmente muito rica, de relações entre espaços comuns e espaços públicos, que acabou de ser brevemente comentada, confronta, “simetricamente”, uma outra teia de relações e de possibilidades de relação entre espaços comuns e interiores domésticos.
Há toda uma diversidade de relações possíveis e tem de ser evidente que um vão de porta “cego” e com um acabamento “frio”, aberto num patim comum interior sem luz nem vistas, não é exemplo de elemento que suscite agrado e apropriação habitacional, nem que por trás da porta da casa haja uma “Caverna das Mil e Uma Noites.”

Em próximos artigos desta série iremos passar esta porta, mas voltaremos a olhar os patins e o exterior público, desta feita, mais a partir do interior da habitação.

Notas:
(1) P. Jephcott, "Homes in High Flats", p. 131.

Notas editoriais:

(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.

INFOHABITAR Ano IX, nº437

ARTIGO XXXI DA SÉRIE HABITAR E VIVER MELHOR

Entre a rua e a habitação, os espaços comuns: elementos negativos e positivos

Edição de José Baptista Coelho

Lisboa, Encarnação - Olivais Norte

domingo, abril 21, 2013

436 - Associar política habitacional e política urbana - I - Infohabitar 436


Infohabitar, Ano IX, n.º 436
Associar política habitacional e política urbana - I
António Baptista Coelho

A base deste pequeno artigo é a existência de dois problemas graves na nossa sociedade, um deles habitacional e ligado às ainda significativas carências de uma habitação condigna e/ou adequada, sentidas por muitas famílias, e o outro um problema urbano, associado à existência de grandes zonas desocupadas e/ou degradadas marcando os nossos centros urbanos e algumas das periferias das nossas cidades.


Não será neste texto que entraremos, a fundo, na forma como nos poderemos aproximar da solução destas duas graves questões, até porque tal aprofundamento exige a cooperação activa de especialistas em diversas áreas temáticas, mas tentaremos, aqui, deixar, uma reflexão e uma ideia global.


Uma reflexão que se liga, em primeira linha, à necessidade urgente de reativar uma verdadeira política habitacional, que ajude muitos no seu dia-a-dia, e que não pode esquecer a importância do sector habitacional como meio de dinamização da economia.


Globalmente, há aspectos básicos a considerar numa urgente política habitacional e urbana, que serão, em seguida, sinteticamente registados:


(i) Considerar que, hoje em dia, a promoção de habitação já nada tem a ver com a velha dominância dos aspetos quantitativos, ou até "massivos" e repetitivos; pois, por diversas razões, a quantidade foi já claramente substituída pela qualidade e pela adequação e adaptabilidade das soluções – desde o reduzido número de habitações em cada local, à boa integração urbana e à adaptabilidade do espaço doméstico.


(ii) Ter, no entanto, bem presente que esta mudança do quantitativo para o qualitativo não significa que estejam resolvidas carências habitacionais críticas, uma situação que, lembremos, está bem presente neste século das cidades, em que continuamos a assistir à chegada de novos habitantes às zonas urbanas, e em que convivemos com novas carências, que decorrem de várias "novas" situações (desde os jovens com dificuldade de poderem autonomizar-se aos idosos isolados e à "multiplicação" de habitações gerada pela fragmentação familiar) e, atualmente, de um forte aumento das situações de carência habitacional crítica e associada a situações de pobreza.


(iii) Ter em conta que uma "solução" de habitar é sempre global e tem as suas diversas e adequadas características, designadamente, em termos de: localização, acessibilidades, vizinhanças e contexto físico e social, equipamentos locais, agregação de fogos, espaços livres, espaços comuns e compartimentos domésticos. Só assim estamos a considerar uma "solução" de habitar.


(iv) Não esquecer que uma "solução" de habitar tem de ser, hoje em dia, muito diversificada, específica, adequada e adaptável a um amplo leque de necessidades, especificidades e desejos habitacionais, assim como a uma expressiva diversidade de modos de vida, associados seja a caraterísticas socioculturais específicas, seja a opções de vivência doméstica cada vez mais diversificadas.


Fig.01: Alvalade, em Lisboa - urbanismo realizado pelo Arq.º e urbanista Faria da Costa - é um exemplo de uma excelente associação entre habitação e arquitectura urbana, no sentido de urbanismo de pormenor, adequado e sensível. 

(v) Tendo em conta o que foi referido nos quatro itens anteriores, fica assim bem expresso que uma dada intervenção habitacional corresponde sempre a uma solução urbana específica, num dado contexto "citadino" e de paisagem, e sendo assim, não fará sentido que uma dada intervenção habitacional não corresponda a uma dada intervenção urbana, uma intervenção em que se associa a resolução do problema habitacional de alguns à melhoria do contexto urbano preexistente dos respetivos vizinhos e, ainda, à melhria do contexto paisagístico também preexistente; conjugando-se, assim, a nova promoção habitacional, eventualmente, com a introdução/melhoria de equipamentos colectivos em falta ou deficientes no local - equipamentos estes onde marcam forte presença espaços públicos adequados e estimulantes e com uma "correcção" do respectivo quadro paisagístico construído e natural.

(vi) Lembrar que, hoje em dia, as nossas zonas urbanas sofrem com a desvitalização quer dos seus espaços mais antigos, quer já de alguns espaços periféricos, marcados pela frequente ausência de habitantes e de atividades comerciais diariamente conviviais e muito associadas a esses habitantes; situações que configuram possibilidade de reconversão e/ou preenchimento e/ou redensificação habitacional (habitação e outras atividades habitacionais e urbanas).


(vii) Lembrar, ainda, que no que se refere à promoção de habitação apoiada pelo Estado, não há já quaisquer dúvidas de que ela tem de se integrar social e fisicamente de forma o mais perfeita possível no espaço urbano, cooperando, ativamente, na sua melhoria, acima referida; e ter em conta que, provavelmente, boa parte deste tipo de promoção habitacional se terá de dirigir para a integração "pontual" e cuidadosa de grupos socioculturais e/ou etários específicos e em soluções de habitar também com a sua especificidade (ex., residências para pessoas idosas, para pessoas sós, etc.).E esta integração deve corresponder à reinvenção do próprio sector de promoção de habitação apoiada pelo Estado; uma condição bem urgente no quadro atual marcado por grandes carências financeiras e por carências sociais específicas e graves.


(viii) Ter bem presente que num possível e desejável processo duplo de promoção habitacional e intervenção urbana há que identificar e aproveitar todas as vocações, capacidades instaladas e sinergias que caracterizam, especificamente, municípios, cooperativas, empresas e instituições de solidariedade social, no que se refere à contribuição para a resolução dos problemas habitacionais e urbanos e para a melhoria da qualidade de vida local, seja em termos de programação, projecto e execução de conjuntos habitacionais, seja na sua gestão continuada e sensível.


(ix) Não considerar barreiras estanques entre construção nova e reabilitação, privilegiando fortemente esta última, mas numa perspetiva aberta e flexível, que conjugue a reutilização do edificado, a sua conversão em termos de usos e a sua associação a novos edifícios, ao serviço de uma lógica de respeito pela cultura e de escolhas adequadas em termos de custo-benefício; uma matéria que exige urgente aprofundamento.


(x) E, finalmente, privilegiar o preenchimento urbano, o reforço das continuidades citadinas, a densificação adequada e estratégica, o micro-urbanismo e o fazer de uma arquitectura urbana com adequada valia, que melhore as condições locais de funcionalidade, vitalidade e imagem urbana; associando-se, assim, o caminho da resolução das carências habitacionais a uma verdadeira acupunctura urbana, que vá mellhorando as respetivas condições locais de urbanidade.


Fig.02: Alvalade, em Lisboa

Parece ser, assim, oportuno e urgente apoiar um novo processo de intervenção urbana e habitacional, que se poderá caracterizar, globalmente, por uma acção muito pormenorizada, circunscrita e desenvolvida num grande número de casos, dedicada a uma disseminação estratégica de: (i) pequenos conjuntos de habitação com características tipológicas e sociais muito diversificadas (por exemplo, do realojamento, à habitação apoiada para idosos), (ii) de equipamentos locais e conviviais, úteis no contexto urbano preexistente, (iii) e de pequenas extensões de espaços públicos dinamizadores de um uso frequente e intenso do exterior.

As intervenções apontadas têm de ser desenvolvidas, por regra, de modo a dar maior coesão e vitalidade a zonas urbanas preexistentes, centrais e periféricas, e deverão, também por regra e sempre que possível, incluir e conjugar acções de reabilitação e de nova construção.


E assim considera-se que uma política consistente e activa ligada à habitação deve considerá-la em plena ligação com uma política de revalorização e de melhoria vivencial das cidades, e especificamente das suas zonas centrais e periféricas mais degradadas e desvitalizadas.


Notas editoriais:


(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.



Editor: António Baptista Coelho
INFOHABITAR Ano IX, nº436
Associar política habitacional e política urbana - I

Edição de José Baptista Coelho

Lisboa, Encarnação - Olivais Norte

domingo, abril 14, 2013

435 - EDIFÍCIOS HABITACIONAIS E URBANOS - UMA PRIMEIRA REFLEXÃO - Infohabitar 435

Infohabitar, Ano IX, n.º 435
Artigo XXX da Série habitar e viver melhor

EDIFÍCIOS HABITACIONAIS E URBANOS - UMA PRIMEIRA REFLEXÃO

António Baptista Coelho

Quando chegamos junto à porta do edifício, depois de atravessarmos o respectivo quarteirão e espaço de vizinhança, podemos tentar identificar e apurar os aspectos que, neste nível físico residencial e urbano, marcam soluções residenciais verdadeiramente satisfatórias e, até, antecipar um pouco alguns elementos que são fundamentais no desenvolvimento das soluções domésticas.


O que se pede ao leitor é que se abstraia do que está habituado a viver/ver - as soluções correntes e "tipo" que vão da "moradia" isolada ao prédio de apartamentos com habitações "esquerdo-direito" - e pense um pouco no que poderia ser o edifício habitacional; matéria a que dedicaremos vários dos próximos artigos desta série.


De certa forma trata-se de pensar genericamente o que no edifício residencial mais marca, habitualmente, como aspectos agradáveis e motivadores, e antecipar, um pouco, o que importa considerar no edifício para podermos ter, depois, estimulantes e adequadas habitações.


E depois, e finalmente, ponderar quais as linhas de objectivos que devemos privilegiar no caminho de uma intensa satisfação residencial, que possam ser servidos mais directamente por uma adequada solução de edifício residencial (e urbano); pois há que lembrar, sempre, e tantas vezes o esquecemos, que o edifício habitacional contém habitações e é contido e pode até conter a sua vizinhança específica, o seu espaço urbano mais próximo.


Naturalmente que se dá uma atenção específica ao edifício multifamiliar, pois o unifamiliar isolado constitui uma família/tipologia específicas, a ser tratada em artigo próprio.




Fig. 01: o edifício é protagonista da cidade e espaço privilegiado dos seus habitantes

Um aspecto importante e básico é que a habitação tem aspectos que pouco mudam com as diversas soluções utilizadas e, assim, talvez que se deva estimular um sentido de maximização de identidade de cada habitação, quando esta se integre num edifício multifamiliar e, inversamente, talvez possamos e devamos estimular os aspectos de coesão urbana, quando se opte pelo unifamiliar ou por soluções de transição; talvez que estes dois caminhos de maior apropriação no multifamiliar e de maior gregarismo no unifamiliar sejam caminhos de qualidade, não só para a cidade e a paisagem, mas também para a própria qualidade da vivência oferecida nessas habitações.

E imaginemos casos extremos de grande anonimato, por integração de habitações em grandes edifícios, ou de isolamento expressivo; e mesmo nestes casos, a identidade de cada unidade (ainda que muito sóbria, o que não implica que mão seja bem marcada) e o sentido de pertença a uma dada comunidade (que pode ter diversas formas de registo), são, respectivamente, aspectos a considerar com especial atenção.


Fig. 02: os edifícios residenciais constituem o principal quadro urbano; e tantas vezes são esquecidos nesse seu papel tão sóbrio como importante.

A meio caminho destas soluções “extremas”, ligadas ao favo gregário e à liberdade de cada um ou de cada família, talvez que um caminho recomendável seja o desenvolvimento de agradáveis e protectoras soluções de vizinhança, baseadas numa agregação, diversificada (horizontal e vertical) de “casas”, que proporcione:

(i) uma grande variedade de espaços domésticos;


(ii) uma forte diversidade de relações com o espaço exterior privado e público;


(iii) um amplo leque de relações visuais com outras habitações – que poderão variar da ausência das mesmas até o compartilhar de espaços comuns;


(iv) e um excelente sistema de acessibilidades, que conjugue, designadamente, aspectos de cerimónia e representatividade, aspectos de super-funcionalidade – reflectidas no uso por pessoas com mobilidade condicionada e no abastecimento das habitações – e alternativas de acessibilidade, que são essenciais seja em termos funcionais seja na dinamização das condições de privacidade e de convívio no edifício e na sua vizinhança.


A ideia que fica é que, mais do que uma escolha de tipos de edifícios, considerando a "cartilha" que todos aprendemos e que por vezes repetimos até quae à náusea – moradias, blocos baixos alongados e com galerias, blocos com patins interiorizados, torres, etc., etc. –, importará conceber cada edifício residencial no cuidado de:


• se desenvolverem espaços comuns que possam fomentar, estrategicamente e com um máximo de harmonia, a privacidade e o convívio;


• de se criarem associações de habitações fortemente viáveis, que, em cada andar, ou em cada ala, não integrem um número excessivo de vizinhos (1);


• de se desenvolverem associações de habitações cujas soluções de agregação proporcionem um máximo de condições para o eclodir, com um máximo de naturalidade, de boas relações de vizinhança;


• de se introduzirem soluções edificadas e construídas, que conjuguem habitações, mas que para além disso articulem, verdadeiramente, espaços de vizinhança e de relacionamento urbano.


E para tais condições há importantes aspectos a ter em conta, designadamente, no que se refere às questões globais e bem integradas de funcionalidade, segurança natural e imagem urbana, ligadas ao adequado projecto dos espaços de circulação e em termos de desafogo e formatação espacial, organização clara, adequadas relações de vistas mútuas e oferta estratégica de elementos de apropriação e de identidade, com destaque para elementos naturais e de design de comunicação.


Nesta sequência de ideias, e utilizando um trabalho de Pearl Jephcott, defende-se que é possível e desejável explorar as potencialidades conviviais dos espaços de circulação comum, que são as zonas mais usadas, por todos, no edifício multifamiliar, e exemplifica-se esta matéria com o "átrio do elevador", que a referida autora considera que não deve ser um espaço frio e ventoso de passagens fugidias, mas sim um ponto estratégico de contacto social, bem relacionado, tanto nos patins que ligam ás habitações, como nos principais acessos e na ligação aos estacionamentos de veículos (2).



Fig.03: o enorme leque tipológico residencial e urbano existente; que está aí para ser identificado, estudado e "reaplicado" - mas atenção tratamos de tipologias residenciais e urbanas.

Podemos, de certa forma, considerar que o investimento em edifícios multifamiliares que potenciem condições de verdadeira adequação residencial e urbana deverá ser feito através de uma cuidada solução de agregação de habitações e de um criterioso e desenvolvido projecto dos respectivos espaços comuns.

A questão da escolha tipológica e das soluções de tipologia mista será posteriormente abordada. O que se pretende propor aqui, desde já, é uma forma diferente de considerar a tipologia residencial, associando-a a uma tipologia urbana e de integração que crie laços fortes com o respectivo tecido citadino e com o respetivo quadro paisagístico; uma matéria que carece de desenvolvimento, e que tudo tem a ver, seja com a capacidade de satisfação de uma dada solução habitacional, seja com a respetiva qualidade arquitectónica (e urbana).


E aliás toda esta matéria, que está bem a montante da opção entre uni ou multifamiliar, ou por soluções intermediárias, depende de uma muito significativa qualidade arquitectónica.


Notas:


(1) Pearl Jephcott, comparou níveis de convivialidade em dois edifícios multifamiliares muito diversos, em Glasgow: boas situações de convívio numa torre habitacional com 6 fogos por piso; problemas conviviais num bloco alongado com 14 fogos por piso, onde a vizinhança pouco ultrapassava seis habitações contíguas .


(2) P. Jephcott, "Homes in High Flats", pp. 142 a 144.


Notas editoriais:


(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.



Editor: António Baptista Coelho

INFOHABITAR Ano IX, nº435
ARTIGO XXX DA SÉRIE HABITAR E VIVER MELHOR
EDIFÍCIOS HABITACIONAIS E URBANOS - UMA PRIMEIRA REFLEXÃO
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte



segunda-feira, abril 08, 2013

434 - SÍTIOS DE PASSAGEM, LIMIAR, TRANSIÇÃO E VIVÊNCIA - II - Infohabitar 434

Infohabitar, Ano IX, n.º 434


(2.ª parte do) Artigo XXIX da Série habitar e viver melhor


(dando continuidade ao artigo publicado na semana passada aqui no Infohabitar)


SÍTIOS DE PASSAGEM, LIMIAR, TRANSIÇÃO E VIVÊNCIA - II

António Baptista Coelho

Aproveitando um estudo realizado, há alguns anos, e sponível na Livraria do LNEC (1), apontam-se, em seguida, mais algumas considerações sobre os aspectos arquitectónicos que devemos considerar a este nível micro-urbano das vizinhanças associadas a quarteirões.

É muito importante interiorizar e fazer reflectir na intervenção que o carácter e o sentido especial/espacial que deve estar associado a cada vizinhança de proximidade resulta, em grande parte, da combinação entre exterior e edifícios.



Fig. 1

Sublinha-se que esta relação micro-urbana tem de aproveitar e expressar os aspectos mais específicos e determinantes do carácter do lugar com destaque para a topografia, a vegetação e os aspectos específicos do solo e da rocha locais, as suas preexistências construídas estruturantes e, naturalmente, as suas vistas paisagísticas e urbanas.

Nunca nos podemos esquecer que, para poder viver realmente, o exterior é também um “interior” mais público ou vicinal cujas “paredes” e “tectos” são definidos em grande parte pelas edificações que o marcam ou demarcam, e o êxito de uma dada solução é em boa parte determinado pelo grau de coerência atingido na integração entre exterior e edifícios.


Esta matéria da integração é extremamente sensível numa vizinhança de proximidade e muito especialmente numa vizinhança delimitada por um quarteirão, pois é, de certa forma, a esta escala, já muito pormenorizada, que grande parte da vida citadina deve acontecer, qualificando-se, assim, a cidade através de micro-vizinhanças estimulantes, porque cuidadas, diversificadas e feitas, assim, realmente à escala física e de usos do homem.


Estas palavras procuram ajudar a clarificar a importância que tem a existência da vizinhança de proximidade na luta, sem tréguas, que a cidade habitada e humanizada tem de travar contra a desvitalização e a descaracterização urbanas.


A inexistência destes espaços de vizinhança próxima, ou o seu negativo desenvolvimento, corresponde a um gravíssimo erro de projecto, pois, de tal forma, não existe um espaço de vizinhança intermédio, entre o espaço privado de cada fogo e o vasto espaço público, caracterizadamente anónimo e avesso a qualquer tipo de apropriação colectiva. E assim, podemos afirmar que a ausência de efectivas e afectivas vizinhanças próximas inviabiliza que, tal como defende Monique Eleb, “exteriores e interiores possam ser vividos numa estimulante unidade bipartida, em relações frequentes e naturais entre interiores comuns e domésticos e exteriores urbanos de proximidade, fazendo-os dialogar, e harmonizando-os em funcionamento e caracterização.”



Fig. 2

Outro dos aspectos arquitectonicamente caracterizadores de uma vizinhança de proximidade que seja boa para se habitar e boa para a cidade habitada, é a noção, que importa reforçar, que os percursos do habitar têm um dos seus principais pontos de partida e de chegada nas entradas dos edifícios e nos acessos a equipamentos conviviais potencialmente muito usados no dia-a-dia; pois tratamos, aqui, de pólos fundamentais na desejável integração entre edifícios e espaços exteriores contíguos, integração esta que tem de resolver em pormenor as questões de harmonização dos mais diversos tipos de acessibilidade, com natural destaque para a criança e o idoso a pé, mas sem se ostracizar, de forma “gratuita” ou não fundamentada, o veículo.

Há, assim, que proporcionae e evidenciar um máximo de funcionalidades, garantindo-se, sempre, um agradável carácter residencial e adequadas condições de visibilidade de segurança no espaço público, seja entre zonas deste espaço público, seja a partir da habitação e das lojas e outros equipamentos que devem “rodear”e “securizar”, naturalmente, o espaço público, através de uma teia densa e contínua de relações físicas, visuais e vocalizadas.


Muito nesta última perspectiva se liga, também, à ponderação e ao aproveitamento das relações exteriores/edifícios que resultam as melhores situações de integração de equipamentos realmente viáveis e vitalizadores, tanto interiores (ex., esquina comercial), como exteriores (ex., recinto de recreio no interior de um quarteirão), como interiores/exteriores (ex., esplanada de "café").


Afinal no sub-nível físico de relacionamento entre os espaços exteriores e os edifícios da respectiva vizinhança jogam-se muitos dos aspectos de algum pormenor que são fundamentais para o êxito do habitat humano no seu conjunto.


E sobre isto basta referir que a porta principal do edifício e os seus principais acessos exteriores são os sítios onde toda a gente tem de parar, mesmo que momentaneamente, para estacionar o veículo, para puxar da chave, ou para comunicar com a respectiva habitação; e talvez falte, frequentemente, retirar-se um adequado partido arquitectónico destas situações.



Fig. 3

Tal como apontei no referido estudo do LNEC, os pontos e os limiares de relacionamento entre os recintos exteriores de vizinhança e os edifícios contíguos são, portanto, naturais pólos de atenção, para os respectivos moradores, relativamente às características gerais, ambientais e funcionais, proporcionadas nos átrios e sequências de aproximação aos edifícios habitacionais, e, também, relativamente aos pequenos, e apenas aparentemente supérfluos, pormenores dos seus arranjos específicos e dos arranjos das suas envolventes.

Realmente, nas zonas de acesso aos edifícios a nossa atenção é suscitada pelos mais diversos pormenores tais como, por exemplo, uma funcional e intimista cobertura do átrio exterior, uma certa textura, cor ou desenho elaborado do pavimento, uma assinalada, digna e bem desenhada estrutura sinalética, um atraente elemento de instalação da "botoneira" do condomínio (integrando, por exemplo, elementos de identificação dos moradores e uma esquematização da organização do edifício), ou um interessante e evocativo tratamento toponímico do edifício ou da zona de condomínio.


Podemos ainda apontar, lembrando o incontornável Christopher Alexander, que os locais públicos serão mais usados se "ficarem no caminho", permitindo e fomentando, com naturalidade, permanências, que não sejam apenas funcionalmente justificadas e ligando-se, sempre, a objectivos claros e acessíveis (2); e numa mesma perspectiva, de criação de sequências urbanas e residenciais sustentadas, podemos referir que os acessos aos espaços residenciais serão mais agradavelmente usados se também “ficarem no caminho”, facilitando aquelas sequências e vitalizando-as.


Esta pequena mas densa teia de acessibilidades é que assegura a vida das vizinhanças e dos quarteirões que, frequentemente, as albergam. E é interessante comentar, ainda, que também nesta matéria fica provado que uma tal teia não pode ser rigidamente organizada em termos funcionais, tem de ter motivos de surpresa e situações que, por estarem fora da normal hierarquia das sequências urbanas, são geradoras de diversidade ambiental, identidade, curiosidade e animação urbana estratégica, numa fundamental aproximação à variedade citadina e com um interessante potencial em termos de soluções de micro-preenchimento urbano.


Notas:

(1) “Do bairro e da vizinhança à habitação”, Lisboa, LNEC, ITA 2, 1998.
(2) Christopher Alexander; Sara Ishikawa; Murray Silverstein; et al, "A Pattern Language/Un Lenguaje de Patrones", pp. 445 a 447.

Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.

Editor: António Baptista Coelho

INFOHABITAR Ano IX, nº434
ARTIGO XXIX DA SÉRIE HABITAR E VIVER MELHOR
SÍtios de passagem, limiar, transição e vivência - II
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte



segunda-feira, abril 01, 2013

433 - SÍTIOS DE PASSAGEM, LIMIAR, TRANSIÇÃO E VIVÊNCIA - I - Infohabitar 433

Infohabitar, Ano IX, n.º 433
Artigo XXIX da Série habitar e viver melhor

Considerar espaços de vizinhança amigáveis e bem relacionados com as habitações e com a cidade, leva-nos, obrigatoriamente, a considerar o tecido urbano tradicional e assim se faz, em seguida, uma citação relativamente longa de um excelente livro de Jean-Charles Depaule, onde o autor descreve um pouco de uma cidade norte-africana.


"A partir de uma artéria principal, de rua em ruela e de ruela em impasse, a circulação reduz-se, as lojas e as oficinas rarefazem-se, tornam-se mais directas ou, pelo contrário, apropriam-se do exterior. A via, ou as suas ramificações, penetra num mundo reservado, à margem do movimento geral, para eventualmente acabar em impasse. Mas há surpresas! Uma rua que parece servir um bairro dá também para se chegar a outra parte da cidade. Outras mais largas e abertas levam a que tenhamos de justificar a nossa entrada e outras há que embora largas e não parecendo vicinais, terminam abruptamente em impasse ou portão...as portas de bairro que à noite garantiam a segurança durante períodos turbulentos estão definitivamente abertas...Entra-se em certos pátios de imóveis tão facilmente como em ruas, mas as ruas são pouco menos fechadas que as habitações...". (1)


Depaule inspirou-se muito na cidade moura ou berbere, mas entre nós, podemos evocar muitas ruas, ruelas e outros espaços intestinos de cidades e de povoações portuguesas, entre a Sé e a Ribeira, no Porto, Alfama e o Bairro Alto em Lisboa, Castelo de Vide e Monsaraz, Lagos e Loulé, só para dar alguns exemplos.



 



Fig. 01: sequência de imagens de Castelo de Vide

Naturalmente estamos a pensar em zonas velhas dessas povoações, mas também nos podemos lembrar da pequena Bouça portuense de Siza Vieira e dos misteriosos interiores de quarteirão do grande Alvalade lisboeta, só para citar conjuntos relativamente recentes e bem conhecidos, e aqui, como mais algumas outras excelentes intervenções mais recentes, encontraremos essas sequências, essas surpresas, essas “cores”, essa vitalidade e esse sossego, quase lado a lado. E, portanto, o que fica provado é a, muito provável, boa capacidade de réplica de tais condições
É interessante considerar que o referido autor, Jean-Charles Depaule, tem trabalhado em conjunto com um dos autores que mais têm aprofundado as matérias da estruturação urbana, mas numa perspectiva, que bem nos interessa, já muito próxima da geração de diversas formas de edifícios habitacionais; um tema que merece ser explorado.





Fig. 02: sequência de imagens de Castelo de Vide

Quando pensamos sobres estas matérias várias vezes chegamos a esta espécie de fronteira entre os espaços públicos e privados que se dilui, seja em tipos de soluções urbanas diversificadas, seja em diversas soluções ou tipos de edifícios, mas por esta vez iremos ficar pelos aspectos específicos que num e noutro lado dessa fronteira são responsáveis por uma afirmada satisfação habitacional, sem dar nomes específicos a tipos de soluções.

Num já citado livro de Monique Eleb e Anne Marie Chatelet, as autoras referiram, objectivamente, como já se referiu, que o grande interesse dos quarteirões tem muito a ver com “esse prodigioso concatenar de actividades e de construções estabelecidas longe das vistas, ao abrigo dos panos de fachadas dos edifícios da rua” e ao longo do referido livro as autoras vão conseguindo, da parte de diversos projectistas, contribuições objectivas para uma boa definição desse “prodigioso concatenar de actividades e de construções”.






Fig. 03: sequência de imagens de Castelo de Vide

E assim e tal como referem as citadas autoras:


- Alain Sarfati “explicita o prazer que espera oferecer aos habitantes propondo percursos embebidos no habitat: «o convite à descoberta, à exploração exprime-se no atravessar de diferentes passagens, ligações, escadas, galerias, áleas e caminhos»”; (2)

- “F. Soler e J Bernard propõem ... um pátio central muito amplo em torno do qual se organizam os apartamentos” … para “prolongar a cidade até ao âmago das casas através de espaços intermediários, escavados no coração dos edifícios, verdadeiros locais de convivialidade, interstícios indispensáveis entre a cidade e a família”; (3)


- e Roland Simounet, falando sobre o projecto de Saint-Denis Basilique, refere que “os pátios, as mudanças de nível, a pormenorização das galerias e a chicana na entrada dos fogos são limites sucessivos relativamente fechados ao exterior e abertos ao interior”. (4)


Voltaremos a estes temas quando falarmos dos espaços comuns dos edifícios, pois há, felizmente, uma ténue separação entre espaço comum ou público de um quarteirão e espaço comum de um edifício muito estruturado pelo espaço exterior; e é esta ténue diferença responsável por excelentes e motivadoras soluções residenciais e urbanas …


A ideia que fica é que se falarmos com muitos projectistas eles irão enriquecendo este fazer dos miolos de quarteirões, praticamente, sem limites, pelo menos de vocabulário e de conceitos de qualificação arquitectónica. E se nos colocarmos como habitantes e visitantes – e é sempre boa uma perspectiva de visitante que se imagine habitante – então a dúvida será qual a razão que justifica a reduzida aplicação de soluções de miolo de quarteirão tão variadas e tão excelentes em termos urbanos e residenciais; pois é, afinal, aqui que se faz uma boa parte das melhores relações, mais estimulantes e mais úteis, quer com os espaços domésticos, quer com os citadinos.


E se considerarmos as actuais tendências no sentido de uma maior densificação então esta matéria surge ainda como mais oportuna e estruturante, mas atenção que estamos aqui num nível arquitectónico que exige muito do projecto, pois temos de fazer realmente pequenos pedaços de cidade, atraentes, qualificados e estimulantes, integrando diversos tipos de espaços interiores, exteriores e de transição; e julgo mesmo ser um nível de projecto que deverá obrigar a um apurado controlo público da sua respectiva qualidade.


(Estas matérias terão continuidade na segunda parte desta artigo, a editar no próximo domingo.)


Notas:

(1) Jean-Charles Depaule, "À Travers le Mur", p. 107 e 108.
(2) Monique Eleb e Anne Marie Chatelet, “Urbanité, sociabilité et intimité des logements d’aujourd’hui”, 1997, p. 239.
(3) Id. ibid.
(4) Id. p. 81.

Notas editoriais:

(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.


Editor: António Baptista Coelho

INFOHABITAR Ano IX, nº433
ARTIGO XXIX DA SÉRIE HABITAR E VIVER MELHOR
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte